A camisa 12 no Flamengo é da torcida. Para a 12a crônica, eu poderia ter escolhido Júlio César como ídolo, que vestiu a camisa 12 na sua volta ao clube, justamente para homenagear a torcida. Júlio César é muito ídolo do Flamengo e ele merece a crônica dele aqui. Mas hoje eu vou de um jogador antigo, de uma época tão antiga que nem tinha número nas costas dos jogadores, mas eu vou de um jogador que se confundiu com a torcida, que representou a torcida como ninguém, Leônidas da Silva. Vale começar a crônica com essa fala de um gênio do jornalismo, Luiz Mendes: “Leônidas não foi melhor do que Pelé. Mas também não foi pior”.
Leônidas não vestiu a camisa 9, não vestiu a camisa 10, não vestiu a camisa 12, Leônidas vestiu o Manto Sagrado. Nasceu no Rio de Janeiro em 1913, apenas 25 anos após o fim da abolição oficial do escrevidão. Cresceu nos subúrbios pobres, onde começou a jogar peladas, descalçado, com bola de papéis. Futebol já era paixão das crianças humildes, mas nos campos oficiais, era coisa de ricos. Na elite do futebol carioca, tinha poucos clubes que aceitavam negros no time deles: Bonsucesso, Syrio e Libanez, São Cristóvão, Bangu, Vasco. E, com exceção do Bangu, Leônidas passou pelo todos esses clubes, com muito brilho.
Jogando no Bonsucesso, Leônidas foi chamado na seleção carioca e foi o destaque do campeonato brasileiro de seleções estaduais de 1931, com 2 gols na final contra São Paulo. No mesmo ano, Leônidas falou para Globo: “O elemento de cor entre num grande clube nunca é bem recebido. O único clube grande que recebe com simpatia esses elementos é o Vasco. Nos outros grandes teams, o elemento negro não muda de cor. É um negro… Portanto, é melhor ficar onde se é cercado de consideração. E é por isso que eu ficarei no Bonsucesso”. No ano 1932, Leônidas assinou com o America, mas por causa do racismo, não foi bem recebido. Ainda foi acusado de ter roubado a coleira de uma senhora da alta sociedade, de ser uma vergonha para os ricos espectadores nas arquibancadas. No salão nobre dos clubes, a presença de Leônidas e dos outros jogadores não era bem-vista.
Em 1932, Leônidas fez seu primeiro gol de bicicleta. “É possível que o gol de bicicleta não seja criação minha, mas antes de mim não vi ninguém fazê-lo”, explicou Leônidas. Na Argentina, a jogada é conhecida como “chilena”, por causa do chileno Ramón Unzaga, que fazia esse gesto antes de Leônidas. Mas no Brasil, e nos meus livros franceses de futebol quando eu era criança, o inventor foi Leônidas. Porque ninguém fazia a bicicleta com tanta facilidade, tanta classe e tanta frequência do que Leônidas. Nesse mesmo ano de 1932, Leônidas foi convocado na Seleção brasileira, o que virou problema para o presidente da CBD, que até tentou impedir a convocação de Leônidas. Não conseguiu, e, ao lado do zagueiro Domingos, Leônidas brilhou no Uruguai, com dois gols no Centenário contra os campeões mundias para conquistar a Copa Rio Branco. Leônidas virou o Diamante Negro, Domingos virou o “melhor back do continente”, Peñarol comprou Leônidas, Nacional comprou Domingos. Domingos foi campeão uruguaio, e Leônidas brilhou mais nas noitadas alcoolizadas de Montevidéu do que nos campos.
Leônidas era carioca de alma, voltou ao Brasil, voltou no Rio, no único grande clube que aceitava negros e pobres: Vasco. Com a Seleção brasileira, Leônidas jogou a Copa do Mundo 1934. O Brasil foi eliminado após apenas um jogo e Leônidas fez o único gol do Brasil na Copa na Itália. Leônidas foi campeão carioca 1934, e assinou com o Botafogo, onde foi campeão carioca 1935. Era o melhor jogador do país, mais ainda não era o ídolo do país. Faltava alguma coisa divina, faltava Flamengo.
Leônidas se declarou flamenguista na imprensa e o dirigente botafoguense Carlito Rocha mandou ele embora. Obrigado Carlito. Leônidas assinou em 1936 com o Flamengo, onde o presidente José Bastos Padilha transformou o clube, abrindo as portas para os jogadores negros. Fausto no início do ano, Domingos depois, mas sobretudo Leônidas. Mais do que Fausto e Domingos, mais do que a imprensa escrita e o rádio, foi Leônidas que fez do Flamengo o clube do povo. Fez a alegria do pobre, o orgulho do negro, com gols, carisma, luta em campo e fora do campo contra o racismo. Em apenas três meses, fez 23 gols. Leônidas foi um fenômeno, como apareceu um a cada geração. Foi o maior de seus tempos, a ligação entre Friedenreich, que vestiu o Manto Sagrado em fim de carreira, e Pelé, que vestiu o Manto Sagrado uma vez, em 1979. Leônidas nem precisava ganhar títulos para ganhar o coração do povo, viu o Fluminense dos ricos, dos brancos, dos italianos, dos paulistas, conquistar o tricampeonato carioca entre 1936 e 1938.
Em 1938, Leônidas tornou-se definitivamente o ídolo do povo com a Copa do Mundo, na minha França. No primeiro jogo, fez três gols contra a Polônia. Fez um gol de novo contra a Tchecoslováquia, e marcou de novo contra a mesma Tchecoslováquia no jogo desempate. Machucado, desfalcou o jogo contra a Itália e o Brasil deixou escapar a taça. No jogo pelo terceiro lugar, Leônidas fez 2 gols na vitória 4×2 contra a Suécia e o Brasil fez sua melhor campanha em Copa. Leônidas merecia uma Copa, mas a Segunda Guerra mundial o impediu de ter uma outra chance. Mesmo sem o título final, foi suficiente para voltar como o herói do povo, para voltar como o Homem-Borracha, apelido dado pelos franceses, ainda maravilhados com a “magia negra” de Leônidas. Escreveu A Gazeta no 14 de julho de 1938: “O povo arrancou Leônidas do automóvel na praça Mauá. O grande center-forward nacional rogava que se afastassem porque queria respirar. Os fuzileiros navais, na impossibilidade de o isolar, usaram cassetetes e conseguiram metê-lo num carro-forte. Não obstante, a massa popular acompanhou o veículo na esperança de abraçar Leônidas. É um fato inédito. Não há memória na cidade de que nenhum vulto proeminente necessitasse socorro da polícia, a fim de evitar que morresse nos braços do povo”.
Leônidas era um dos três homens mais famosos do país, com Getúlio Vargas e Orlando Silva. Politica, música e futebol. Leônidas virou garoto-propaganda de várias empresas, teve o chocolate Diamante Negro da Lacta, vendeu a goiabada Peixe, fez apresentações num cassino. Quem relembre é Zizinho, que estreou no Flamengo em 1939 e sucedeu ao Leônidas como o ídolo da Nação: “Depois que terminou o campeonato carioca de 1938, o Leônidas foi contratado pelo Cassino da Urca para mostrar como foram feitos os gols dele no campeonato. E Leônidas foi lá para o palco e cada dia fazia um lance de um jogo. Foi uma atração enorme. Mas quando Leônidas terminou o contrato dele, ele um dia foi lá no Cassino da Urca. Eles disseram assim: ‘Aqui não. Negro não entra.’ […] Ele tinha dinheiro para entrar, só que não deixaram”. Mais uma vez, a aberração e a vergonha do racismo.
Em 1939, o Flamengo acabou com um jejum de 12 anos e enfim conquistou o campeonato carioca, com uma rodada de antecedência. Com 10 gols, Leônidas não foi o artilheiro do time, mas foi a principal figura, alimentando os companheiros do ataque, os argentinos Alfredo González, com 13 gols, e Valido, com 12 gols. No 24 de dezembro de 1939, numa derrota 3×4 contra o Independiente na Argentina, também jogo de estreia de Zizinho com o Manto Sagrado, Leônidas fez um gol de bicicleta. “O gol de Leônidas não surpreenderia tanto se não constituísse uma dessas jogadas históricas, inéditas em matches de futebol. […] Dentro da área, antes que o couro chegasse ao solo, estando mesmo mais alto do que um homem de estatura média, o Diamante Negro salta espetacularmente de costas para o gol e de bicicleta, num verdadeiro salto mortal, consagra o terceiro gol” escreveu o Globo Sportivo.
Em 1940, Leônidas foi pela primeira vez o artilheiro do campeonato carioca, com 30 gols, igualando o recorde de Nilo em 1927. Mas Fluminense foi o campeão, com um ponto a mais do que Flamengo. Nesse ano, num amistoso contra a Portuguesa vencido 9×1, Leônidas fez 6 gols, um recorde do clube na época. Leônidas também tornou-se o maior artilheiro da história do Flamengo, ultrapassando Nonô, que tinha feito 123 gols entre 1920 e 1930. Mas o ápice da glória já tinha passado, Leônidas começava a ter problemas com a diretoria do Flamengo. Em 1941, machucado no joelho, recusou-se a entrar num jogo amistoso na Argentina. Rebelde, ou apenas sensato, seguiu firme quando o autoritário Flávio Costa sugeriu que Leônidas podia entrar em campo alguns minutos, a fim de preservar a cota oferecida ao Flamengo pelos times argentinos. Leônidas foi criticado pelo presidente Gustavo de Carvalho, também autor do primeiro gol da história do Flamengo em 1912, e que acusava Leônidas de fazer corpo mole. Leônidas deixou de receber a diária e respondeu ao presidente com uma carta: “Eu estava doente. Eu não podia jogar […] Profissional de football não é escravo”.
Ainda pior para Leônidas, o ídolo no povo foi na cadeia. Em 1935, por ser arrimo de família, o único a sustentar a família, Leônidas, 21 anos na época, podia escapar do serviço militar. Precisava de um documento, e Leônidas foi enganado por um sargento, comprando um falso documento. Leônidas foi na prisão militar, foi operado no joelho realmente machucado e passou 8 meses na prisão, jogando todos os dias peladas, uma vez com o time dos oficiais, uma vez com o time dos soldados. Leônidas era o povo, com a classe do rico, comprando vários ternos de primeira qualidade. No Flamengo, Leônidas foi substituído com sucesso pelo Pirillo, que bateu o recorde do próprio Leônidas, fazendo 39 gols no campeonato carioca 1941. Mesmo assim, Pirillo às vezes era vaiado pela própria torcida e era vítima das críticas do locutor flamenguista Ary Barroso. Não tinha nada a ver com ele, o povo só não podia ver um outro jogador do que Leônidas no ataque do Flamengo, ninguém representava o povo como o Leônidas fazia. O ídolo da Nação saiu da cadeia, mas não voltou ao Flamengo. Recusou-se a jogar no maior do mundo se o presidente ainda era Gustavo de Carvalho. Perdeu a queda de braço, deixou o Flamengo como maior artilheiro do clube, com 153 gols em 149 jogos. Hoje, fica na sétima posição, com seu lugar ameaçado pelo Gabigol. Mas ainda é hoje, e provavelmente para sempre, o artilheiro com a maior média de gols, mais de um gol por jogo. Com 37 gols em 37 jogos, Leônidas também tem a maior média de gols da Seleção brasileira.
Leônidas jogou depois no São Paulo, onde foi ídolo do povo já na chegada dele na cidade, mais de 100.000 pessoas participaram na sua recepção na estação de trem. “Nem um ministro de Estado, nem o maior escrito vivo, nem Portinari já tiveram recepção tão vibrante” escreveu o Jornal dos Sports. Leônidas bateu vários recordes, fez muitos gols, ganhou muitos títulos, foi o primeiro ídolo do São Paulo. Mas infelizmente para a maior torcida do Brasil, não era mais do Flamengo. Jogou até 1949, pendurando as chuteiras quando viu que não tinha chance de participar da Copa do Mundo 1950 depois de vários conflitos com o autoritário Flávio Costa, já no Flamengo, ainda mais na Seleção. Talvez com Leônidas no ataque, o Brasil teria vencido sua primeira Copa no Maracanã.
Quando se fala dos ídolos do Flamengo, já falei que é mais fácil de separar a Era pré-Zico da Era Zico e o que foi depois. No meu top 5 de ídolos de 1978 para cá, Zico obviamente no topo, e Leandro com a camisa 2. E depois, sem ordem particular a não ser alfabética de tanto é difícil escolher: Adriano, Gabigol e Júnior. E para a Era pré-Zico, outros cinco nomes, também pela ordem alfabética: Carlinhos, Dida, Domingos, Leônidas, Zizinho. Mas acho que o nome de Leônidas seria um dos primeiros escolhidos se tinha que escolher mesmo. Não vou escolher hoje, mas Leônidas também faz parte de um dos outros tops 5 meus. Jogador da Era da pré-televisão, existem poucas imagens do Leônidas. Mas existem algumas, e já pode ver toda a classe dele, a facilidade no domínio, a ginga no drible, a determinação na hora de fazer o gol. Até apenas em fotos, Leônidas respira a classe do autentico craque. “Leônidas era, em termos de estilo, um misto de Pelé e Romário. Organizava jogadas com o mesmo brilho com que as concluía. Era do tamanho de Romário e, no entanto, fazia muitos gols de cabeça”, explicou Luiz Mendes. Imagina só, Pelé e Romário no mesmo corpo, na mesma cabeça para pensar e nas mesmas chuteiras para driblar, gingar, marcar, maravilhar os espectadores, o povo. Vira até injustiça para os adversários.
Voltando ao meu top 5, se eu tinha a chance de assistir os melhores lances e partidas inteiras de jogadores dessa Era, acho que vou de Leônidas, Garrincha porque também tem poucas imagens dele nos jogos, Heleno de Freitas e outros dois flamenguistas, Domingos e Zizinho. Mas se tinha que escolher apenas um jogador, acho que seria Leônidas. Porque, para fechar a crônica sobre o ídolo do povo, vou corrigir o que escrevi precedentemente: Leônidas não é um fenômeno que aparece uma vez a cada geração, é um craque que apareceu apenas uma vez e não vai aparecer mais.








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