Times históricos #24: Flamengo 1944

Os primeiros anos do profissionalismo no futebol carioca foram divididos entre Flamengo e Fluminense. O Tricolor foi tricampeão carioca entre 1936 e 1938, com o rubro-negro vice nos três edições. Flamengo conquistou o título em 1939, Fluminense o bicampeonato 1940-1941, de novo com Flamengo como vice nas duas edições. Flamengo perdeu o ídolo Leônidas, vendido pelo presidente Gustavo de Carvalho, mas conquistou o bicampeonato 1942-1943.

Depois, outro ídolo saiu do clube, Domingos da Guia, que ainda hoje pode ser considerado como o maior zagueiro da história brasileira. Esta vez, foi o presidente Dario de Melo Pinto que mandou Domingos embora. Em 1971, Domingos falou para Placar que Dario de Melo Pinto era “o único dirigente que nunca conseguiu me compreender”. Já em 1941, quando Domingos reclamou da cama pequena durante uma excursão, Dario de Melo Pinto lhe respondeu: “Eu vou te arranjar um clube que tem uma cama maior para você”. Uma loucura. Outra loucura de Dario de Melo Pinto foi vender outro ídolo, Zizinho, em 1950. Enfim, como Leônidas, Domingos foi fazer sucesso em São Paulo, no Corinthians, e Flamengo também perdeu em 1943 o argentino Válido, que pendurou as chuteiras com 29 anos. Em compensação, Flamengo contratou já no final de 1943 um futuro ídolo, que já tem a crônica dele no Francêsguista, o paraguaio Modesto Bría.

Flamengo iniciou o ano de 1944 com vitória 3×1 sobre Canto do Rio, gols de Zizinho, Nilo e Quirino. Depois, perdeu duas vezes no Pacaembu contra o Corinthians de Domingos, que já mostrava que ia fazer muita falta na defesa do Flamengo. Mas a venda de Domingos, a maior do futebol sul-americano, permitiu ao Flamengo de quitar as dividas e ampliar a capacidade do estádio da Gávea para quase 25 mil pessoas. Nessa época, não tinha ainda o torneio Rio – São Paulo, muito menos o Brasileirão. Fora alguns amistosos, o futebol era exclusivamente estadual. E antes do campeonato carioca, tinha alguns torneios com times cariocas. O Torneio Relâmpago foi disputado pelo cinco times, Flamengo, Fluminense, Botafogo, Vasco e o America. E o campeão foi Vasco, que conquistou o titulo graças a uma vitória 5×2 sobre Flamengo na final. No Torneio Início, torneio disputado em apenas um dia com jogos de 20 minutos e final de 60 minutos, Flamengo chegou na final, mas perdeu 3×1, de novo contra Vasco. E no Torneio Municipal, agora com os mesmos 10 times que inscritos no campeonato carioca, de novo o campeão foi Vasco, de novo com último jogo contra Flamengo, agora um 2×2. Parecia que tinha um novo dono da cidade, o Vasco de Augusto, Lelé, Isaías e Jair Rosa Pinto.

No campeonato carioca, o Flamengo de Flávio Costa estreou com derrota sobre o America. Flamengo fechou o primeiro turno com mais uma derrota contra Vasco, agora 2×1 apesar de um gol de Pirillo, que substituiu Leônidas em campo mas não nos corações rubro-negros. Flamengo fechou o primeiro turno com 5 vitórias, 2 empates e 2 derrotas. E pior, perdeu o atacante Perácio, “o homem do chute mortal” por causa da guerra. Perácio foi um dos 25.334 soldados da Força Expedicionária Brasileira que foi lutar na Itália. Flamengo contratou três argentinos, Coletta, Sanz e De Terán, sem muito sucesso. E pior, no início do segundo turno, Flamengo perdeu 5×2 contra Botafogo no “Jogo do Senta” quando os jogadores do Flamengo, depois do quinto gol botafoguense litígio, sentarem-se em campo e recusaram-se a jogar. Com 7 pontos a menos do que o líder, o título estava muito longe da Gávea.

Mas Flamengo se recuperou, venceu São Cristovão, venceu Canto do Rio, venceu Bonsucesso, venceu Madureira. No General Severiano, goleou Bangu 7×1 e voltou a acreditar ao título. E um pedido inocente mudou a história do Flamengo. O aposentado Valido foi pedir ao Flávio Costa o empréstimo do campo da Gávea para uma pelada com o time da companhia dele. Já contei em detalhes essa história na crônica sobre o jogo eterno contra Vasco. Valido, que nem devia jogar a pelada, acabou jogando, e jogou muito, a ponto de Flávio Costa lhe pedir para jogar o jogo decisivo contra Fluminense. Inscrito como amador e depois de apenas dois treinos com o time, Agustín Valido jogou muito na goleada 6×1 sobre Fluminense. Jogou e se cansou, parecia impossível jogar o último jogo, contra Vasco. “Passei a semana com febre […] Eu estava magro, abatido, mas me obrigaram a entrar” explicou depois Valido. Flávio Costa tinha outras opções com Jacir, Nilo e Tião, mas queria Valido. O elenco queria Valido também, para validar o tricampeonato. Contra Vasco, Valido jogou e se cansou, com 39 de febre. Quase fez apenas número em campo, lá na ala direita. No final do jogo, numa falta de Vevé, Valido, sem forças, se apoiou nas costas de Argemiro e fez o gol de cabeça, o gol do título, o gol da glória eterna num estádio de Gávea cheio desde o meio-dia, agora cheio de alegria.

Valido se apoiou sim, para fazer um gol que os vascaínos reclamam até hoje. Mas como falou o grande compositor flamenguista Ary Barroso: “Ele se escorou sim. E teria sido melhor ainda se estivesse impedido e feito com a mão”. Ary Barroso, também ator, fez sucesso nos Estados Unidos e trabalhou até com Walt Disney. Escreve Roberto Sander no seu livro Anos 40, viagem à década sem copa: “Ari acabou sendo convidado pra se radicar no país. Não precisou muito tempo para recusar. É que nos Estados Unidos não tinha Flamengo. E não tendo Flamengo, nenhum lugar, mesmo com muitos dólares no bolso, tinha graça, pois aí não tinham transmissões aos domingos e, por consequência, não tinha a alegria de ver o rubro-negro vencer […] Sem dúvida, o Flamengo deve muito da sua popularidade ao incrível Ari Barroso. Mas também a seus próprios méritos e feitos inesquecíveis. Com certeza, o tricampeonato em 1942, 1943 e 1944 contribuiu e muito para que o rubro-negro caísse de vez nas graças do povão”.

Flamengo ficou definitivamente no coração do povo e eu não resisto a citar mais uma vez Valido sobre esse gol, que falou para Roberto Assaf 50 anos depois do jogo: “Eu não estava me sentindo muito bem, pelo menos para jogar, mas aqueles eram outros tempos, a gente tinha sobretudo amor à camisa e eu não ia deixar uma chance daquelas passar. Além disso, os companheiros insistiram e o Flávio Costa acabou me escalando. Naquele dia, quem me ajudou foi Deus. Mas também devo tudo isso ao presidente José Bastos Padilha, o maior que o clube teve em todos os tempos, que me contratou. Aquele gol e o tricampeonato representaram um fecho de ouro para mim, pois desde a Argentina sempre sonhei em atuar no Brasil, onde só encontrei felicidade e glórias. Depois do jogo, tive uma crise nervosa tão grande que fui obrigado a sair do Rio para me recuperar. Muita emoção. Então, resolvi dar um adeus, aí, sim, definitivo, ao futebol. Mas olha, na verdade nunca consegui me desligar completamente do Flamengo”. No dia seguinte, o Jornal dos Sports manchetou: “Profissionais com alma de amadores”. E mais, além da alma, Valido era realmente registrado como amador para um dos jogos mais importantes da história do Flamengo. Continua Roberto Sander: “Se o clube já era popular, com essa conquista obtida na base de heroísmo, ficou ainda mais, pois, a partir daí, se criou a mística da camisa rubro-negra de buscar as vitórias na pior adversidade”.

Também não resisto a vontade de mencionar outra vez o escrito José Lins do Rego, que eternizou: “Para o Brasil, o tri do Flamengo é mais importante que a Batalha de Stalingrado”. A alegria da Gávea se estendia para Rio, para o Brasil inteiro, até para os campos de guerra na Europa. O Perácio podia sorrir de alegria e de felicidade, junto com alguns dos 25.333 companheiros. Para fechar, cito o tenente José Carlos Teixeira Coelho, também membro da Força Expedicionária Brasileira na Itália, que escreveu para um amigo uma carta, depois publicada pelo Mário Filho no seu livro Histórias do Flamengo: “Geraldo, até parece que eu estava no Brasil, vibrando com todas as forças do meu coração flamengo, pela vitória do team mais querido. É impossível descrever a alegria da nossa turma flamenga aqui, neste teatro de operações na Itália. Éramos mais de uma dezena em torno do rádio, ávidos de emoções e exultantes de alegria. Comemoramos a vitória de maneira espetacular, pois, além de tanto representar para nós, ainda coincidiu com a espetacular vitória de nosso team no ‘front’ que, com bola e tudo, varou as redes do inimigo”.

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O autor

Marcelin Chamoin, francês de nascimento, carioca de setembro de 2022 até julho de 2023. Brasileiro no coração, flamenguista na alma.

“Uma vez Flamengo, Flamengo além da morte”