A Copa América acabou este último domingo, com mais uma decepção para a Seleção brasileira. Hoje também é o aniversário do herói do primeiro título campeonato sul-americano conquistado pelo Brasil, do primeiro ídolo do futebol brasileiro, do maior jogador do mundo de sua época, do Pelé antes de Pelé, é o aniversário de Arthur Friedenreich, que nasceu no 18 de julho de 1892. E como Friedenreich jogou no Flamengo em 1935 (sim aos 42 anos…), a crônica #35 cai como uma folha-seca para Friedenreich.
Com Friedenreich, abro uma categoria particular dos ídolos do Flamengo, a dos ídolos nacionais que vestiram o Manto Sagrado. Pretendo ainda escrever sobre Garrincha, Sócrates, Ronaldinho e outros. Porque Friedenreich pouco jogou no Flamengo, apenas 6 jogos, 0 gol. Não tem a crônica dele aqui pelo que fez no Flamengo, mas pelo tudo que fez para o futebol brasileiro. E deve ser o orgulho de cada torcedor rubro-negro de ter tido um jogador como Friedenreich defendendo o Manto Sagrado.
Escrever sobre Arthur Friedenreich mereceria um livro. Inclusive, já foi feito, pelo Luiz Carlos Duarte, que escreveu a biografia Friedenreich, a saga de um craque nos primeiros tempos do futebol brasileiro. Quando escrevi meu livro Primeira Bola, sobre o período amador do futebol brasileiro, entrei em contato com Duarte e ele sempre respondeu às minhas perguntas com a maior gentileza. Ainda me fez a honra de escrever o prefácio de meu livro e de me receber na casa dele em São Paulo, para falar sobre a maior paixão do brasileiro, a minha também, o futebol. Assim, para quem quer conhecer mais a história de Arthur Friedenreich, recomendo a leitura do livro de Luiz Carlos Duarte.
Vamos então dizer aqui que Friedenreich foi especial, desde o nascimento. Nasceu no 18 de julho de 1892, quatro anos depois do fim do escrivadão. Era mestiço, mulato, filho de uma professora negra e de um comerciante alemão. Assim, nem era branco, nem era negro, mas a ascendência do pai lhe permitiu de jogar no Germânia, clube da colônia alemã. Antes, Friedenreich aprendeu a jogar futebol na rua. A lenda explica que um dia quase foi atropelado por um carro, mas no final driblou o carro. Aliás, nunca aprendeu a jogar bola, o futebol de Friedenreich era de talento nato, de improvisação e inspiração, de dribles e de gols. Foi tão goleador que Pelé, tão driblador que Garrincha. Talvez, não tanto, claro, mas foi o primeiro homem do futebol brasileiro. Foi o primeiro membro da chamada Santíssima Trinidade do futebol brasileiro, Friedenreich, Leônidas, Pelé. Deixo um trecho do excelente livro, embora às vezes exagerado, de Eduardo Galeano, Futebol ao sol e à sombra: “Este mulato de olhos verdes fundou o modo brasileiro de jogar. Rompeu com os manuais ingleses: ele, ou o diabo que se metia pela planta de seu pé. Friedenreich levou ao solene estádio dos brancos a irreverência dos rapazes cor de café que se divertiam disputando uma bola de trapos nos subúrbios. Assim nasceu um estilo, aberto a fantasia, que prefere o prazer ao resultado. De Friedenreich em diante, o futebol brasileiro que é brasileiro de verdade não tem ângulos retos, do mesmo jeito que as montanhas do Rio de Janeiro e os edifícios de Oscar Niemeyer”.
Friedenreich não foi um Leônidas, lutando pelo preto, pelo negro. Era rico, quase apenas branco. Na época, tinha jogos entre pretos e brancos, e Fried sempre jogava no time dos brancos. E driblava, e marcava. Jogou em vários clubes de São Paulo e mesmo em times modestos, chegava quase sempre no topo da artilheira do campeonato paulista. Em 1912, jogando pelo Mackenzie, foi artilheiro pela primeira vez, com 16 gols, ultrapassando o recorde de seu mentor Hermann Friese, também de origem alemã. Em 1914, agora no Ypiranga, foi mais uma vez artilheiro, marcando 12 dos 19 gols de seu time! Em 1917, ainda no Ypiranga, outra vez artilheiro apesar de uma suspensão, fez 16 gols em apenas 6 jogos! Em 1918, chegou no clube mais prestígio e rico da época, o Paulistano, ancestre do São Paulo Futebol Clube. Mais uma prova que Friedenreich era mais elite que povo. E Fried continuou a ser o artilheiro, agora adicionando os títulos coletivos. No Paulistano, foi artilheiro em 1918, 1919, 1921, 1927, 1928, 1929, foi campeão em 1918, 1919, 1921, 1926, 1927 e 1929. No futebol paulista, apenas Pelé pode competir (e ultrapassar) esses números.
Além de ser um inovador no jeito de jogar, Friedenreich também foi precursor, muitas vezes. Em 1912, com companheiros do Americano, Paulistano e Ypiranga, jogou contra uma seleção argentina, um dos primeiros jogos internacionais da era pré-Seleção. Em 1913, se juntou a delegação do Americano para participar da primeira excursão de um clube brasileiro no exterior, no caso na Argentina. Em 1914, participou do primeiro jogo da história da Seleção Brasileira, contra Exeter City, no 21 de julho. Em 1916, ainda estava na Seleção, que participou na Argentina do primeiro campeonato sul-americano da história. Em 1917, fez seu primeiro jogo pelo Flamengo quando foi convidado para uma partida contra Barracas, time argentino. No seu excelente livro Seja no Mar, seja na Terra, 125 anos de história do Flamengo, Roberto Assaf escreveu: “O primeiro clube – nem combinado, nem seleção – estrangeiro de futebol a visitar o Flamengo no Rio de Janeiro foi o Sport Club Barracas. Os argentinos chegaram ao cais da Praça Mauá no sábado, 5 de maio de 1917, com 17 jogadores, pelo navio francês Sequana, recebidos pela comissão que o Rubro-Negro organizou para recebê-los, à frente Octávio Soares, Alejandro Baldassini e Oswaldo Palhares. Mandava no grupo o dirigente Francisco Basauro, representante da Associação do Futebol Argentino. Houve frisson no desembarque, pois o Flamengo, promotor da viagem, programou quatro jogos por aqui, um deles, é claro, o mais importante, contra o próprio time da Rua Paysandu, reforçado de Arthur Friedenreich. O maior craque brasileiro dos tempos do amadorismo (1894-1933) tinha apenas 25 anos de idade e defendia o Ypiranga, da capital paulista, e que viria especialmente ao Distrito Federal para participar do duelo […] Friedenreich, na prática, em nenhum momento foi o craque esperado. Chegou a desperdiçar duas boas chances, a mais evidente no fim do primeiro tempo ».
Mas se Friedenreich tem a crônica dele aqui, e de maneira menos pretensiosa, tem lugar na história do futebol brasileiro e mundial, é por causa de um gol, um gol só, dentro dos 500, quem sabe 1000 gols que fez na carreira. O ano foi 1919, o estádio o Laranjeiras de Fluminense, inaugurado no mesmo ano. Se o futebol nasceu no Brasil em 1894 quando Charles Miller trouxe uma bola e as regras de Southampton, o primeiro grito do povo aconteceu em 1919. Antes, Foot-Ball era coisa de ricos, estrangeiros, advogados, brancos. Depois, futebol era para todos os brasileiros, pobres e pretos, torcedores e torcedoras. Em 1919, o Brasil organizou pela primeira vez o campeonato sul-americano. Ao longo do torneio, que começou com hat-trick de Fried contra o Chile, a cidade de Rio de Janeiro se apaixonou pelo esporte bretão. Não só nas nobres arquibancadas do Laranjeiras, mas também no morro vizinho onde o pobre podia assistir de longe ao jogo, também na praça dos esportes onde o gol brasileiro era comemorado entre irmãos desconhecidos.
E a final aconteceu no 29 de maio de 1919, data histórica do futebol brasileiro, contra o bicampeão uruguaio, do negro Isabelino Gradín, que mostrava ao pobre que futebol era para todo mundo. E o mulato Friedenreich juntava o pobre e o rico numa mesma paixão. Foi do pé de Friedenreich que saiu o único gol da final, no final do final da prorrogação. A chuteira direita, verdadeira joia, foi exposta numa loja de luxo da rua Ouvidor e o Brasil, da Amazônia até Rio de Janeiro, de todos os lados do Rio Amazonas, era o campeão, adotava o futebol como paixão e Friedenreich como herói da nação. “O chute de Friedenreich abriu o caminho para a democratização do futebol brasileiro” escreveu o também eterno Mário Filho. Com sua agilidade, Friedenreich virou El Tigre para os uruguaios, virou ídolo para os brasileiros. Autor do livro O Tigre do futebol, Alexandre Costa escreveu: “Friedenreich era um tigre, o artilheiro sem piedade, o craque que jogava bola como Santos Dumont voava, como Carlos Gomes compunha e como Rui Barbosa escrevia”.
Em 1920, Friedenreich conquistou o campeonato brasileiro dos clubes campeões, ancestre do Brasileirão, com hat-trick contra Brasil de Pelotas e mais um gol no jogo decisivo contra Fluminense. Em 1922, ganhou mais um campeonato sul-americano, e em 1923 jogou mais uma vez no Flamengo, de novo sem destaque, com derrota 3×0 contra o time uruguaio de Universal. Em 1925, de novo foi precursor, participando com o Paulistano da primeira excursão de um time brasileiro na Europa. No primeiro jogo, na minha cidade de Paris, vitória 7×2 contra a seleção francesa. Para Friedenreich, 3 gols e para os brasileiros um novo apelido: “Les Rois du football”. Na excursão, entre França, Suíça e Portugal, o Paulistano jogou 10 partidas, ganhou 9, perdeu apenas uma, a chamada “injustiça de Cette”. Para Friedenreich, 11 gols e um novo status. Antes de Pelé ser coroado na Copa de 1958 na Suécia, antes de Leônidas brilhar na Copa de 1938 na França, Friedenreich foi o primeiro a exportar o futebol brasileiro nos gramados europeus, a definir o estilo brasileiro, de fintas, ginga e dribles, muito diferente do que faziam os ingleses, do que se via na Europa. Mais uma vez, Friedenreich era o herói do Brasil, agora no internacional.
Friedenreich foi um precursor, mas faltou uma coisa que ele merecia muito: a Copa do Mundo. A primeira edição aconteceu em 1930, Friedenreich tinha 38 anos sim, mas ainda era em grande forma. Foi campeão e artilheiro do campeonato paulista em 1929 e só não foi o artilheiro em 1930 porque seus 30 gols (em 26 jogos!) foram ultrapassados pelo santista Feitiço, que fez 37 tentos como se dizia na época. O conflito já histórico entre as federações de Rio de Janeiro e São Paulo impediu de convocar os paulistas e El Tigre ficou fora do certame no Uruguai. Uma pena, dias depois da derrota contra a Iugoslávia e da eliminação do Brasil na Copa, um time de cariocas derrotou a França (com gol de Friedenreich) e a Iugoslávia, que tinha quase exclusivamente os mesmos jogadores do que na Copa, pelo placar de 8×4. É o primeiro “o que aconteceria se…” da Copa e Friedenreich o primeiro grande craque a faltar o maior torneio do mundo. Na Seleção brasileira, foram 23 jogos e 10 gols entre 1914 e 1935.
Mesmo sem a Copa, Fried ficou precursor. O mulato de olhos azuis, branco para alguns, preto para outros, brasileiro no futebol e na alma, lutou pela profissionalização do futebol, que permitia a inserção dos mais pobres no futebol. E como um símbolo, Friedenreich fez o primeiro gol profissional no Brasil, na vitória 5×1 de São Paulo FC, herdeiro do rico Paulistano, contra Santos na Vila Belmiro, no 12 de março de 1933, mais uma data histórica de Friedenreich no futebol. Ainda jogou no Santos e em 1935, rejeitou uma oferta do Fluminense para assinar com seu clube de coração no Rio, Flamengo. Com a profissionalização, Flamengo abria as portas para os jogadores negros quando Fluminense ainda era rico, branco, quase paulista. O Flamengo não, e a chegada de Friedenreich foi menos importante que as de Jarbas, Médio e Waldemar de Brito em 1933, ou claro de Domingos, Fausto e Leônidas no histórico ano de 1936, mas está na história do clube.
Chegando no clube rubro-negro, Friedenreich foi entrevistado pelo Jornal dos Sports: “Aqui vocês me veem cheio de entusiasmo, disposto a defender as cores do Flamengo, com o mesmo entusiasmo que empregava defendendo as cores do Paulistano e do São Paulo. Estou velho, no fim de carreira, mas não me falta flama […] Se o Flamengo precisar de meu concurso, mais tarde, virei de novo ao Rio. Não poderei, entretanto, voltar. Considero encerrada a minha carreira. O futebol decaiu muito moralmente. Prefiro afastar-me levando as boas recordações do passado. Não quero que elas se manchem. Além disso, entristeceu-me a extinção do São Paulo, um clube que não poderia desaparecer. Depois, já estou na idade de descansar”. Com o Manto Sagrado, depois dos dois jogos de 1917 e 1923, Friedenreich fez apenas 4 outros jogos, duas derrotas contra o America e dois empates contra Fluminense. Nenhuma vitória e nenhum gol, mas no último jogo, 3 dias depois de comemorar o 43o aniversário, no 21 de julho de 1935, exatamente 21 anos depois de participar do primeiro jogo da Seleção, Friedenreich fez no Fla-Flu uma assistência para o gol de Jarbas, considerado como o primeiro jogador negro do Flamengo. Mas Friedenreich, filho de negra, não pode ser esquecido na história do Flamengo, muito menos do futebol brasileiro.
Depois, Friedenreich descansou, ficou na Santíssima Trinidade do futebol brasileiro ao lado de Leônidas e Pelé. Antes da morte de Friedenreich, em 1969, dois meses antes do gol 1000 de Pelé, várias lendas apareciam, Fried matou um irmão só com um chute, Fried driblava o time adversário inteiro logo depois do apito inicial, Fried fez mais de 1000 gols na carreira. O número foi até oficializado pela FIFA, hoje sabemos que foi exagerado, graças ao trabalho de Alexandre Costa e Luiz Carlos Duarte, sabemos que Friedenreich fez entre 500 e 600 gols, já uma anomalia, ainda mais numa época onde tinha menos jogos. Concordo plenamente com Paulo Vinícius Coelho, no seu livro Os 100 melhores jogadores brasileiros de todos os tempos: “Craque dos primeiros tempos, Fried foi referência até o surgimento de Pelé, e os mais antigos chegavam até mesmo a dizer que o Rei não jogava tanto quanto o gênio das primeiras décadas do Século XX. Mas Friedenreich, claro, rendeu-se à majestade de Pelé. No final de sua vida, nos anos 60, chegou a posar para fotos ao lado do Rei. Fried não foi rei, não fez mais de 1.000 gols. Não se impressione com as mentiras. Fique com as verdades. Essas já fazem de Arthur Friedenreich um jogador de poucos similares”.
E para fechar, mais um trecho, agora de um jornalista contemporâneo de Friedenreich, provavelmente o maior jornalista paulista da época, Tomaz Mazzoni, que escreveu: “Fried foi um fenômeno extraordinário no futebol. Tornou-se a figura número um do ‘association’ do nosso país, como foi a de Carlos Gomes na música, de Rio Branco na diplomacia, Rui Barbosa na jurisprudência, Bilac na poesia, Santos Dumont na aviação etc. Mereceu ser chamado em 1919 um dos ‘maiores brasileiros vivos’. Então sua fama atingiu o auge, juntamente com a fama do futebol nacional. Seu nome imortalizou-se. Fried, sem dúvida, é um imortal para o nosso esporte. Seu nome saiu da cidade, foi para o interior, para o sertão, atravessou fronteiras. Sua figura é lendária, e será recordada eternamente pelo mundo brasileiro esportivo. A criança prodígio de 1909, que já era orgulho daquele que fora o autor de seus dias, Oscar Friedenreich, e que foi também seu maior animador e torcedor, até finar sua honrada existência, devia ser “El Tigre” de 1919. Depois foi o ‘sábio’, o ‘vovô’ de 1935. Nos seus 26 anos de faustosa carreira futebolística, Fried descobriu todos os segredos da arte da pelota. Herói de mil batalhas, o artífice de mil vitórias. Os seus tentos foram pequenos capolavoros. Toda a ciência do popular jogo ele a conheceu. Foi completo. Completíssimo… Tudo ele teve, nada deixou de fazer com a bola. Foi técnico e estilista, improvisador e construtor, artilheiro e fintador, compassado e astuto. A sua arte, uma maravilha… Jogou com imaginação e intuição, com inteligência e vivacidade, com lealdade, elegância, correção e audácia. Os seus tentos, os seus passes, as suas fintas tiveram precisão mecânica e estilo inconfundível, segurança absoluta e técnica acabada. Todo o seu jogo foi um espetáculo, como raro outro avante, desde que o futebol existe no mundo, executou. Em um quarto de século, o jogo de Fried criou um verdadeiro dicionário da sua arte. Em arte, tanto o foi de futebol científico, como bizarro, de fantasia, volúvel e positivo, alegre e efetivo. Que gênio! Que fenômeno!”.
Hoje um pouco esquecido, Friedenreich foi Fenômeno antes de Ronaldo, Gênio antes de Zico, Rei antes de Pelé, Mestre antes de Zizinho, foi inspiração para Leônidas e tantos outros jogadores, foi herói para todos os brasileiros e foi, para apenas 6 jogos, um ídolo do Flamengo.








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