Ídolos #37: Fio Maravilha

Ídolos #37: Fio Maravilha

A crônica de hoje é sobre um cara que tem a cara do Flamengo. Basta ver uma foto dele e todo mundo vai perceber a mesma coisa: o grande sorriso, a boca larga e uma dentição nada comum. Mais que a cara do Flamengo, era a cara da geral, tão cheia de vida na época que jogou. Era o geraldino que busca a alegria no Maraca para esquecer das tristezas da vida. Mas reduzir Fio Maravilha a um sorriso seria um grande erro. Fio Maravilha foi um grande jogador, artilheiro e ídolo do Flamengo.

João Batista de Sales nasceu no 19 de janeiro de 1945 em Conselheiro Pena, Minas Gerais. Nasceu numa família de futebolistas, seu irmão mais velho começou a carreira no Flamengo, onde jogou entre 1959 e 1962 antes de passar pelo Milan e Palmeiras. Quando Germano ainda jogava no Flamengo, Fio Maravilha, que apelido foda, chegou na Gávea, aos 15 anos. Estreou profissionalmente aos 20 anos na Fonte Nova, com derrota 3×0 contra Bahia. Fez seu primeiro gol no 1o de setembro de 1965, num 2×2 no Fla-Flu, na Taça Guanabara, na época torneio diferente do campeonato carioca. Uma semana depois, outro Fla-Flu, outro 2×2, outro gol de Fio Maravilha, agora no Torneio Rio – São Paulo.

Fio Maravilha fez apenas 8 jogos no ano de 1965, nenhum no campeonato carioca, conquistado pelo Flamengo antes de um longo jejum. Em 1966, começou a chamar atenção, fazendo gols em amistosos no Brasil e até fora do país. Emelec, Barcelona de Guayaquil, Alianza Lima, Belenenses do Portugal ou West Bromwich Albion da Inglaterra foram algumas das vítimas do Fio. Em 1967, repetiu a dose contra times estrangeiros, incluindo o grande Barcelona, agora da Espanha, quando fez o único gol da partida, logo no primeiro minuto do jogo. No final do ano, Flamengo decepcionou no segundo turno do campeonato carioca, onde jogavam entre si os 8 melhores da primeira fase. Flamengo ganhou nenhum dos 6 primeiros jogos e corria o risco de fechar a fase na última colocação. Na última rodada, Fio foi o grande herói do Fla-Flu, seus 2 gols e 2 assistências para Dionísio e Reyes levaram Flamengo a uma vitória 4×1 e um sexto lugar, um pouco menos vergonhoso.

Em 1968, um ano histórico no Francêsguista, Fio passou a fazer grande dupla com outro ídolo da Nação, o também negro Silva Batuta. Na biografia do jogador, Marcelo Schwob escreve: “Segundo Silva, Fio era um jogador surpreendente, fazendo jogadas de gênio e outras inexplicáveis. Em 1968, fizeram treinos de cobrança de falta: Fio partia para a bola e fingia que iria chutar, Silva vinha e finalizava. Nos treinos, deu certo, mas na partida contra o Botafogo, Fio tropeçou na bola e caiu… No entanto, faria uma grande partida. Deixava desconcertados mesmo os criticos de futebol, que não sabiam como analisá-lo. Numa jogada de contra-ataque num Fla-Flu, entrou livre e podia ter chutado, mas dificultou, driblou dois jogadores e só assim fez o gol. Aos poucos, a torcida percebia a afinidade de seu estilo louco e imprevisível com o sentimento rubro-negro”.

Era assim o Fio, um jogador imprevisível porque jogava de improviso. “Eu faço firulas no jogo porque sei que quem escala a gente é a torcida e ela adora um passezinho de calcanhar…” falou uma vez o mineiro, já carioca na alma. Para Band, ainda falou: “Eu gostava muito de jogar com toques rápidos, algo que criava muito problema, pois nem sempre o toque rápido sai da maneira que esperávamos. Muitos não gostavam, achavam que eu queria inventar, mas era como eu gostava de jogar”. Fio enganava os adversários, os próprios companheiros e a torcida. Mas a torcida tinha certeza de alguma coisa: Fio era ídolo da Nação, principalmente por causa do estilo de jogo, cheio de ginga, de dribles e de erros. A torcida adora o craque que desequilibra com uma finta só, adota o perna de pau que joga com raça. Se Fio era craque ou perna de pau ninguém sabe, mas repito, Fio era ídolo da Nação.

Fio voltou a fazer gol contra o Barcelona, agora no Camp Nou, e conheceu seu maior ano no Flamengo em 1970, fazendo 21 gols durante a temporada. O técnico era o autoritário Yustrich, adorava Fio e o chamava do “Bom Crioulo”. Fio brilhou já no início do ano, no tradicional Torneio internacional do Rio de Janeiro, quando abriu o placar na goleada 6×1 contra o time argentino de Independiente. Flamengo também goleou 4×1 a seleção romena, que jogou meses depois a Copa do Mundo, perdendo de forma honrosa 3×2 contra a Seleção de Pelé, Jairzinho & Cia. Com uma vitória 2×0 contra Vasco, Flamengo conquistou o Torneio internacional do Rio de Janeiro. Meses depois, agora na Taça Guanabara, Flamengo venceu de novo Vasco 2×0, com show de Fio, que fez os dois gols da partida. Na época, a Taça Guanabara ainda era uma competição à parte do campeonato carioca e Flamengo chegou na última rodada precisando de um empate contra Fluminense para ser campeão. E no Fla-Flu, na frente de 106.515 pagantes no Maraca, o “Bom Crioulo” abriu o placar, no final do primeiro tempo. Apesar de um gol de Jair para Fluminense, Flamengo conquistou a taça, que amenizou um pouco a seca de títulos no campeonato carioca. No campeonato nacional, ainda chamado de Torneio Roberto Gomes Pedrosa, Fio foi artilheiro do Flamengo com 7 gols, inclusive um golaço contra São Paulo e os dois gols da vitória 2×0 contra o Santos de Pelé, Carlos Alberto & Cia. Porém, Flamengo perdeu a classificação no quadrangular final por um miserável gol de diferença no saldo de gols para o benefício do Fluminense, que acabou sendo o campeão.

Com esses gols, dribles, tropeços, bolas perdidas em campo, esses sorrisos e beijos para a torcida, Fio já era ídolo da massa flamenguista, aglutinada na geral. No Torneio do Povo 1971, que reunia o clube de maior torcida dos 4 grandes estados do futebol brasileiro, Flamengo começou muito mal, com nenhum gol nos 5 primeiros jogos! Na última rodada, Flamengo finalmente marcou, com 2 gols de Fio no 3×3 contra o Atlético Mineiro, Fio salvando de novo um campeonato decepcionante para Flamengo. No meio do ano, Fio se eternizou na história do Flamengo, ao lado de um jovem estreante, Arthur Antunes Coimbra, Nosso Rei Zico. O palco é o Maracanã, o adversário é o Vasco. Para seu primeiro jogo, Zico já foi decisivo, fazendo a assistência para Nei abrir o placar, mas o vascaíno Rodrigues empatou no final do primeiro tempo. O primeiro jogo de Zico merecia a vitória, ainda mais em cima do Vasco, e no minuto 45 do segundo tempo, Fio ainda não maravilha, mas já maravilhoso, chegou, desempatou, ofereceu a vitória ao Flamengo num jogo eterno.

E Fio, como a mãe o chamava antes de toda uma Nação, virou Fio Maravilha, com data bem precisa, no 15 de janeiro de 1972. Era o início de uma nova década e, apesar da ditadura estar nos seus momentos mais duros e repressivos, havia esperança. Escreve Marcel Pereira em seu livro A Nação, como e por que o Flamengo se tornou o clube com a maior torcida do Brasil: “Embalada pela melodia dos dribles de Fio, a geração dos anos 70 começava a desabrochar em busca de mais liberdade de expressão, de maior ousadia sexual. Mais do que nunca o espírito contestador e abusado da juventude reluzia na sociedade. Com dinheiro no bolso, por conta do mais longo e mais intenso período de crescimento da economia do país, a rapaziada reluzia o carro novo, a namorada com o belo corpo a mostra nas praias e o orgulho pelo time de coração guardado para reluzir nas tardes de domingo no Maracanã. Em cada esquina, em cada praia, em cada botequim, em cada passeio no parque, vivia-se a intensidade de ser Flamengo. Em todos os lados se encontrava um flamenguista ou outro para ser feito de desconhecido íntimo”.

O jogo que eternizou Fio Maravilha já foi eternizado no Francêsguista. O palco é o Maracanã, o adversário é o Benfica de Eusébio, sem Eusébio. E Flamengo andava sem Fio. “O Zagallo não era muito simpático ao meu futebol, ao meu estilo. Eu estava na reserva” explica Fio no livro Grandes jogos do Flamengo, de Roberto Assaf e Roger Garcia. Mas como falou o próprio Fio, às vezes é a torcida que escala. E a torcida flamenguista pediu Fio em campo, a Nação rubro-negra exigiu a presença de seu ídolo, Zagallo obedeceu, Fio entrou. Entrou e desequilibrou. Desequilibrou as pernas, os adversários, o jogo. Escreveram Roberto Assaf e Roger Garcia: “Aos 33 do segundo tempo, Samarone lançou Rogério, na direita. O ponteiro tabelou com Fio, que cortou Rui Rodrigues e Messias. Na saída do goleiro Zé Henrique, Fio deu mais uma finta, para ficar com a mera escancarada e marcar o gol da vitória”. Era o gol da vitória, o golaço, Flamengo era o campeão e Fio ainda mais o ídolo da Nação.

E Fio virou Fio Maravilha, com um cansão composta pelo Jorge Ben Jor, presente no Maracanã neste dia e que eternizou o ídolo com uma letra que vale ser repetida integralmente aqui: “E novamente ele chegou com inspiração / Com muito amor, com emoção, com explosão em gol / Sacudindo a torcida aos 33 minutos do segundo tempo / Depois de fazer uma jogada celestial em gol / Tabelou, driblou dois zagueiros / Deu um toque, driblou o goleiro / Só não entrou com bola e tudo / Porque teve humildade em gol /Foi um gol de classe, onde ele mostrou sua malícia e sua raça / Foi um gol de anjo, um verdadeiro gol de placa / Que a galera, agradecida, se encantava / Foi um gol de anjo, um verdadeiro gol de placa / Que a galera, agradecida, se encantava / Filho Maravilha, nós gostamos de você / Ih-ih-ih-ih-ih-ih-ih / Filho Maravilha, faz mais um pra gente ver / Ih-ih-ih-ih-ih-ih-ih”. Na minha França, o cansão foi regravada, já no ano seguinte em 1973, pela cantora Nicoletta, apenas com o refrão “Fio Maravilha”, sem outra referência ao gol ou ao jogador ídolo do povo. Recentemente, em 2024, foi o grupo electro Bon Entendeur que fez outro cansão e prolongou a eternidade de “Fio Maravilha”.

Depois do sucesso, teve briga na justiça entre Fio Maravilha e Jorge Ben Jor sobre direitos autorais, como explica o Fio: “Havia um amigo, já falecido, o Joaquim Reis, que era advogado de alguns jogadores, como o Jairzinho, o Rodrigues Neto e meu também. Um dia me perguntou: ‘O autor da música te botou como parceiro? Posso entrar em contato com ele para você ganhar alguma coisa?’. Disse que podia. Pouco depois, fui jogar em Vitória. Quando cheguei ao Rio, já estava um burburinho tremendo. Não tinha a intenção de processar. Mas não culpo o advogado. Se alguém cometeu um engano, fui eu, não ele, que era uma pessoa maravilhosa […] Contra o Benfica foi especial, porque disseram que o Fio fez gol de Pelé. Adorei, porque eu era comparado com um monte de perna-de-pau. Depois do meu pai, Pelé foi o meu maior ídolo”. No cansão, Fio Maravilha virou Filho Maravilha, mas o que importa é isso, Fio ficou maravilhoso para a Nação e teve sua noite de Pelé.

Fio Maravilha fez em seguida um gol contra a Seleção da Hungria, mas passou depois 10 meses sem fazer gol! Reencontrou o caminho das redes no final do ano 1972 durante o Brasileirão e fez seu último gol com o Manto Sagrado contra CRB, no estádio Rei Pelé. Ainda jogou um pouco na temporada seguinte e fez seu último jogo com o Manto Sagrado no 7 de fevereiro de 1973, contra Bahia na Fonte Nova. Por coincidência, o mesmo adversário e o mesmo estádio que no primeiro jogo, no 21 de abril de 1965. O ciclo era completo e fechado, acabado com 294 jogos e 84 gols, e mais, uma ligação muito especial com a torcida.

Fio ainda passou por vários clubes brasileiros e voltou nas lembranças do torcedor rubro-negro em 1975, num Flamengo x São Cristóvão no Maracanã. Flamengo abriu 2×0 com 2 gols de Zico, mas Fio liderou o time do São Cristóvão para uma vitória 3×2, fazendo as assistências para os 3 gols do time! O Fio ainda era uma Maravilha… Fechou a carreira nos Estados Unidos e ficou no país do Tio Sam, onde trabalhou numa pizzaria como entregador. O ídolo do povo era humilde. Também selou a paz com o Jorge Ben Jor, o ídolo do povo não era vingativo, e Filho Maravilha voltou a ser Fio Maravilha.

Fio Maravilha, ao lado de Silva Batuta e Doval, foi o maior ídolo da Nação numa época que era órfã de títulos importantes. Antes de acompanhar o surgimento do maior ídolo de todos os tempos, Zico, Fio era um motivo para chegar ao Maracanã, vibrar na geral, se maravilhar com suas maravilhas. Fio Maravilha foi mais que um ídolo para a Nação, já um privilégio de poucos, ele foi a personificação do torcedor rubro-negro, façanha de muitos poucos. Obrigado Fio Maravilha, nós gostamos de você.

Uma resposta para “Ídolos #37: Fio Maravilha”.

  1. Avatar de Times históricos #31: Flamengo 1971 – Francêsguista, as crônicas de um francês apaixonado pelo Flamengo

    […] sem Zico, também começou a temporada de 1971 com vitória 2×1 sobre Vasco, gols de Milton e Fio Maravilha, um ídolo no Flamengo e no Francêsguista. Depois, Flamengo participou da primeira edição do Torneio do Povo, uma competição idealizada […]

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O autor

Marcelin Chamoin, francês de nascimento, carioca de setembro de 2022 até julho de 2023. Brasileiro no coração, flamenguista na alma.

“Uma vez Flamengo, Flamengo além da morte”