Jogos eternos #218: Flamengo 3×2 Atlético Mineiro 1980

O Flamengo é o campeão da Copa do Brasil de 2024 e já é a hora de reencontrar o Atlético Mineiro. Mereceria até uma entrega das faixas. Também já é a hora de eternizar uma outra final contra o Atlético Mineiro, em 1980, quando o Flamengo conquistou o primeiro Brasileirão de sua história.

No início dos anos 1980, Flamengo e o Atlético Mineiro faziam para dos melhores times brasileiros, ao lado do Internacional, São Paulo, Palmeiras ou ainda o Corinthians. Flamengo era tricampeão carioca 1978-1979-1979 Especial. O Atlético Mineiro era bicampeão mineiro 1978-1979 e ficou invicto durante todo o Brasileirão de 1977, porém foi derrotado nos pênaltis na final. Era um timaço, como lembra Júnior: “O time deles era excepcional, e mais experiente que o nosso. Muito técnico e rápido, também marcava muito. E tinha Cerezo, Éder e o Reinaldo, um centroavante completo. Inteligente, toque fácil, veloz… Se não tivesse tantos problemas físicos, ele seria comparável a Ronaldo e Romário”. O Flamengo era o time em ascensão, porém viveu uma decepção no Brasileirão em 1979 com derrota dura no Maraca e eliminação contra o Palmeiras.

Em 1980, o time do Flamengo mudou um pouco. O Cláudio Adão se recusou a entrar no final de um amistoso, já contra o Atlético Mineiro, e foi mandado embora. Flamengo começou o Brasileirão com Tita de falso 9 e faltava um centroavante. O rubro-negro quase assinou com Roberto Dinamite, que não podia jogar no Barcelona, mas Eurico Miranda repatriou o craque no Vasco. Assim Flamengo também escolheu um jogador que já tinha jogado no clube, porém só na base, Nunes. No Brasileirão de 1980, Flamengo se vingou do Palmeiras com goleada 6×2, um jogo eterno no Francêsguista. Na semifinal de ida, Fla venceu o Coritiba 2×0, 2 gols de Zico, outro jogo eterno no blog. Confirmou a classificação no Maracanã, porém perdeu Zico por contusão. A final, contra o Atlético Mineiro de João Leite, Luizinho, Chicão, Toninho Cerezo, Palhinha, Éder ou ainda Reinaldo, ia ser complicadíssima.

E no Mineirão, jogo foi complicadíssimo mesmo, também violento, com várias faltas e arbitragem ruim de Romualdo Arrpi Filho, que deixou a pancada correr. Sem Zico, o craque do jogo foi Reinaldo, que aproveitou uma falha de Júnior para fazer o único gol da partida. Com melhor campanha na fase final, Flamengo precisava agora de uma vitória de um gol de diferença para ser campeão. “Vai ser muito difícil segurar o empate no Maracanã”, admitiu Toninho Cerezo. Culpado no gol de Reinaldo, Júnior quase comemorou, como ele explica no livro 6x Mengão de Paschoal Ambrósio Filho: “Depois do jogo, em que perdemos por um vacilo meu, entrei no vestiário e fui logo dizendo que os mineiros tinha perdido a chance de ser campeões ali, porque, no Rio, a vitória era uma certeza”. Confirma o goleiro Raul, que lembra do clima nos vestiários do Flamengo: “Estava a maior festa. Todo mundo se abraçando. Parecia que a gente tinha ganhado o título. Aí eu perguntei ao Júnior: ‘Ô cara, que festa é essa? Parece até que a gente já é campeão’. O Capacete respondeu com um sorriso: ‘E você acha que a gente vai perder pra eles lá no Maraca, Véio?’ Aí eu também entrei na festa”.

Flamengo jogou a partida de volta com mais um desfalque. No final do jogo de ida, Rondinelli foi atingido covardemente pelo Palhinha, quem sabe Éder. Conta o Deus da Raça: “Durante uma jogada complicada na área, o Palhinha, de maldade, me deu um chute no maxilar e eu caí desacordado. O juiz não marcou nem falta. Saí de campo ainda desmaiado e a consequência é que, até hoje, só tenho trinta por cento da audição do ouvido esquerdo. Fui operado para corrigir as várias fraturas do maxilar e não pude jogar a finalíssima no Maracanã”. Porém, mesmo fora de campo, o Deus da Raça teve participação decisiva. Escreve Edilberto Coutinho no livro Nação Rubro-negra: “Rondinelli, hospitalizado, jogou. Ou serviu ao jogo do técnico. Cláudio Coutinho passou para Adílio, o Neguinho Esperto, uma folha de papel, pedindo que lesse. Cabia trazer a palavra do Deus da Raça, que não muito longe dali, numa cama de hospital, acompanhava o jogo pelo radinho de pilha. Rondinelli havia quebrado o maxilar numa investida de Éder, no jogo anterior. Tinha a boca presa por fios de aço. Assim mesmo, pôde comunicar sua mensagem e Cláudio Coutinho anotara, conseguindo que ele assinasse. Antes de ler, Adílio engoliu em seco. E leu: ‘Companheiros, estou bem, torcendo de fora. Vamos pra cabeça.’ Assinado, Rondinelli. Silêncio pesado no vestiário. A mensagem foi afixada na parede e no coração de cada jogador do Flamengo”.

E mais, Flamengo tinha a volta de Zico, que fez um esforço danado com o enfermeiro Serginho para entrar em campo, mesmo longe de suas condições físicas máximas. E o Maracanã estava cheio, com 154.355 espectadores, um recorde para uma final do Brasileirão para a eternidade. O Reinaldo comparou o Maracanã ao Coliseu. Falou depois Zico para Placar: “Ao entrar em campo, ao ver aquela torcida imensa, pensei: ‘Fico inutilizado, mas só saio daqui campeão. Se esse povo não for campeão, eu prefiro morrer’”. Mas não morreu, o Galinho entrou para matar o Galo. No 1o de junho de 1980, o técnico Cláudio Coutinho escalou Flamengo assim: Raul; Toninho, Manguito, Marinho, Júnior; Andrade, Carpegiani, Zico; Tita, Júlio César, Nunes.

Zico era pronto a morrer e Nunes era pronto a matar: “Eu entrei com ódio. Não do adversário, propriamente, mas do que ele representava: um obstáculo que me impedia de acabar com a minha frustração. Se a gente não ganhasse, se eu não fosse campeão do Brasil, matava alguém ali dentro”. Com apenas 7 minutos de jogo, mesmo sem físico, Zico tinha a visão de jogo de sempre. No círculo central, Zico viu a movimentação de Nunes, fez o passe perfeito, com o que precisava de potência e ângulo, Nunes antecipou a saída de João Leite e deixou a bola na rede para a explosão da geral e do Maraca inteiro. Escreve Renato Sérgio no livro Maracanã, 50 anos de glória: “Andrade roubou uma bola, entregou-a a Zico e este, em momento de raro descortino e alta técnica, tocou comprido, colocando Nunes em situação privilegiada para empurrar friamente no contrapé do goleiro João Leite e o delírio de nove décimos do estádio”. Porém, a alegria no Maraca foi curta, limitada, frustrada. No minuto seguinte, Reinaldo, que também lidava com uma lesão na coxa, recebeu na grande área, fez a finta, chutou e empatou. De novo, o Atlético Mineiro era o campeão virtual.

Primeiro tempo foi equilibrado, com lances de cada lado, mas nada de gol. Até o finalzinho do primeiro tempo, quando o maior ídolo do Flamengo apareceu. Nos dias seguintes, escreveu Juca Kfouri para Placar: “No fim do primeiro tempo, apareceu Zico. Nada tinha feito demais até ali, se é que o estupendo lançamento do gol de Nunes pode ser considerado um lance normal. Não precisava. Fez o gol da nova loucura, justificando a escalação, o sacrifício, o heroísmo pelas cores rubro-negras. Mais tarde faria outras três ou quatro jogadas geniais”. De novo, o raciocínio de Zico na jogada é superior a qualquer jogador. Viu o chute de Júnior, antecipou o movimento da bola, dominou com o pé esquerdo e a ajuda da coxa, e antes da reação do goleiro, do zagueiro ou de qualquer atleticano, mandou do pé direito a bola no gol. Assim, fazia seu 21o gol no campeonato (com apenas 19 jogos!), e se tornava pela primeira vez da carreira artilheiro do Brasileirão.

Flamengo tinha seu craque, o Atlético também, Reinaldo, que porém sentiu uma fisgada na coxa, comemorada pelo Maracanã como um verdadeiro gol. Como o Atlético já tinha feito suas duas substituições, Reinaldo ficou em campo, na ala direita, quase inutilizado. O Maracanã explodiu, o Júlio César, que também tinha faltado o jogo de ida por contusão, relaxou, e o Zico broncou, reprimendo o Júlio César. Lembra o ponta-esquerda no livro 1981: Como um craque idolatrado, um time fantástico e uma torcida inigualável fizeram o Flamengo ganhar tantos títulos e conquistar o mundo em um só ano, de André Rocha e Mauro Beting: “O Zico era assim. Por isso virou o que é. Ele queria ganhar totó, pingue-pongue. Tudo. Exigia dele e de todos. Quando estava feliz antes do jogo, sabíamos que teríamos bicho para gastar. Quando a coisa estava difícil, ele fazia qualquer coisa para mudar a sorte […] Ele realmente cantava o jogo. Tinha razão quando dava bronca na gente. Ele sabia tudo de bola”. E Zico sabia sim. Mesmo bichado, Reinaldo foi na conclusão de um cruzamento de Éder, fez o gol do empate, até do título no momento, levanto o punho cerrado e calou o Maracanã. Faltava 25 minutos ao Flamengo para fazer mais um gol e impedir a vergonha de perder uma final na sua própria casa, 30 anos depois do Maracanaço, 44 anos antes do título rubro-negro na Arena MRV. “Naquele momento, de silêncio quase sepulcral não fosse a atrevida torcida atleticana, bateu o mesmo vento triste da tarde de 16 de julho de 1950” escreveu Edilberto Coutinho.

Era a noite dos craques. “Craque é craque e Zico e Reinaldo, mesmo pela metade da capacidade física ou até com menos, foram responsáveis por quatro dos cinco gols” escreveu João Saldanha. E o jogo mudou mais uma vez logo depois, Reinaldo quase lançou Palhinha no cara-a-cara com o goleiro, mas o bandeirinha marcou muito mal um impedimento que não existia. Talvez um pouco revoltado, Reinaldo impediu com o pé a cobrança da falta do Flamengo. Um lance bobô, não perigoso, como faria outro um ano depois, mas que merece cartão amarelo, que é quase sempre dado nesse tipo de situação. Com já tinha recebido um cartão amarelo, fazendo de seu gesto ainda mais um absurdo, foi logicamente expulso. Atléticos podem reclamar do lance do impedimento sim, mas só a burrice do clubismo os faz reclamar da expulsão de Reinaldo.

Era a noite dos ídolos. Zico claro, mas outros também. “Acho que também mereço ter o meu dia de ídolo, pois isso com o Zico já é rotina”, falou Nunes, que foi ídolo neste 1o de junho de 1980, para a eternidade. Faltava 8 minutos para o final do jogo, para o Atlético ser campeão. E o predestinado Nunes entrou em cena. Relembra o centroavante no livro Grandes jogos do Flamengo de Roberto Assaf e Roger Garcia: “Recebi a bola do Andrade. Vi o Zico e o Tita entrando na área, tentei cruzar, a bola bateu no Silvestre e voltou pra mim. Daí me veio um negócio na cabeça: eu tinha que assumir a responsabilidade. Driblei o Silvestre e fiquei diante do João Leite, que pensou que eu ia rolar para trás. Quando percebeu que eu finalizaria, não deu mais tempo, ele caiu e eu toquei à meia altura. Fui iluminado por Deus. Foi uma emoção muito grande, o gol me fez ídolo do Flamengo. Falam muito do Reinaldo, mas estava escrito: o dia era do Nunes. Se o Reinaldo fizesse 3 a 3, eu iria lá e faria 4 a 3”. Uma finta sensacional, uma finalização perfeita, um golaço eterno, um dos gols mais bonitos da história do Maracanã e do Flamengo, pela estética, pela importância do gol, pela explosão do Maracanã.

“Senti o estádio dentro de minha camisa, como se cada pessoa fosse um Nunes e eu fosse cada um daqueles torcedores” falou depois Nunes para Manchete. O Flamengo ia ser campeão brasileiro pela primeira vez. Faltava pouco tempo, mas muitas coisas para acontecer. No tempo adicional, quando a torcida já gritava “É campeão”, o Atlético não se conformou e Chicão agrediu Tita. Foi logicamente expulso. Como acontecerá um ano depois, Palhinha xingou o juiz e também foi logicamente expulso. Escrevem André Rocha e Mauro Beting: “Chicão também pediu desculpas a Tita, que fizera graça na lateral, dando balãozinho, e recebeu um chutão do atleticano. Enfim, o vermelho esperado. Sem desculpas. Palhinha foi em direção ao árbitro, pedindo (exigindo) a própria expulsão. Aragão estava com o braço erguido e nem precisou baixá-lo para expulsar o meia do Galo. Antes disso, Palhinha chutara a bola em direção ao árbitro”. O Atlético Mineiro acabou com 8 jogadores sim, e seus torcedores podem reclamar da súmula, do juiz, do roubo, da impotência. Ou podem assistir ao jogo e ver que todas as expulsões foram justas.

O Flamengo era quase o campeão mas o impossível quase aconteceu. No final do final do jogo, o inexperiente Manguito recuou mal uma bola, lançando involuntariamente Pedrinho no cara-a-cara com Raul, que saiu do gol. Pedrinho o driblou, só faltava fazer o gol e matar o coração de 155 mil pessoas. Mas o ídolo Andrade chegou e salvou. O destino do Flamengo, e claro do Manguito, seria muito diferente sem a salvação do Andrade. “Salvei a carreira do Manguito. Ele sairia crucificado do Maracanã” falou o salvador. O Manguito se defende como pode: “O Coutinho fazia um revezamento no banco. Sem o Rondinelli, o jogo final no Maracanã seria do Nelson. Na sexta-feira, eu estava tomando minha cerveja em casa quando me chamaram para ser titular na final contra o Atlético! Só faltou eu ler a Bíblia para me concentrar! Quase que entrego o ouro no fim do jogo. Mas, rapaz, aquela não era uma bola para mim não. Não tinham de ter jogado ela comigo. Eu não sabia fazer isso!” Era apenas o terceiro jogo no Brasileirão de 1980 de Manguito que, para seu maior alívio, não entrou na história do Maracanã, que crucificou tantos jogadores.

Em seguida, o Aragão apitou o final do jogo e liberou o estádio inteiro. “Eu queria dançar com a geral” falou o herói do jogo, Nunes, autor de 2 gols. Não era só a geral e as arquibancadas, era uma Nação completa que era feliz, completamente feliz. Do Rio de Janeiro até a Amazônia, Flamengo era o campeão brasileiro. No gramado, Zico abraçou o enfermeiro Serginho com quem trabalhou tanto para conhecer essa glória máxima, ser campeão do Brasil com o Flamengo: “Desde a minha contusão contra o Coritiba, eu não dormia direito. Acordava assustado, sonhando com lances, ouvia o povo gritando. Eu me via correndo para comemorar um gol. Foi uma semana de angústia. Mas, ganhamos. Foi o título do coração e da coragem. E do amor por essa torcida, que me faz chorar”.

Para fechar, deixo um trecho da crônica de Juca Kfouri para Placar alguns dias depois do jogo: “Foi de matar! O Maracanã vestiu-se a caráter para a grande festa. Cento e sessenta mil rubro-negros cantavam, pulavam, festejavam um título que não poderia fugir dali. […] O Mengo veio com tudo e Nunes, certamente inspirado por Pelé – ou por Deus? –, fez o gol da redenção, da grande vitória do título perseguido há tanto tempo. Não podia dar mais outra coisa: E bem que o Galo com dez, com nove, oito, tentou e quase conseguiu. Mas estava escrito que o dia seria do Mengo e que a vantagem obtida de poder jogar dentro de casa era fundamental. Zico e Nunes merecem, cada um, uma estátua na Gávea. A torcida vermelha e preta, sem dúvida, merece outra. O jogo, a festa, Zico e Reinaldo, acreditem os que não estavam lá, foram inesquecíveis”.

A última palavra vai para nosso maior ídolo, nosso maior artilheiro, mais uma vez decisivo, para sempre craque, Zico: “Foi o primeiro título de Brasileiro daquela geração, e por isso mesmo o mais gostoso. Tanto o Flamengo como o Atlético Mineiro tinham jogadores excepcionais. Eram duas seleções buscando o título. Além do mais, essa conquista deu início a tudo. A vitória na Libertadores, o título mundial. E é aquela velha história: o primeiro a gente nunca esquece, né?”. É isso Rei, a Nação nunca esqueceu que foi em 80 com gol de Nunes, que o Brasileirão o Mengão ganhou.

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O autor

Marcelin Chamoin, francês de nascimento, carioca de setembro de 2022 até julho de 2023. Brasileiro no coração, flamenguista na alma.

“Uma vez Flamengo, Flamengo além da morte”