Ídolos #39: Domingos

Ídolos #39: Domingos

Hoje é o aniversário de uma lenda do futebol brasileiro, que nasceu há mais de 100 anos, no 19 de novembro de 1912. No meu time ideal da Seleção brasileira, ainda tem vaga na zaga. Domingos seria o único jogador da época pré-Pelé no time. Ainda jogaria hoje? Jogaria. Para Paulo Vinícius Coelho e André Kfouri no livro Os 100 melhores jogadores brasileiros de todos os tempos: “Domingos da Guia não só jogaria com o mesmo brilho em qualquer época como provavelmente jogaria no setor do campo que escolhesse. Técnica não lhe faltaria”. Nascido em 1923, Maneco Muller escreveu: “Esse negócio de dizer que, hoje, Domingos da Guia, Nílton Santos, Garrincha e Pelé não seriam os mesmos jogadores… Isso é a maior burrice que já ouvi. É a mesma coisa que dizer que, se vivessem hoje, Shakespeare seria autor de pornochanchada e Van Gogh um pintor de parede”.

Domingos da Guia era um artista e nasceu numa família de operários, fazendeiros, de descendentes até recentes de escravos. Domingos era o caçula de uma família de 12 filhos. E o pai parecia diferente dos outros, falou numa entrevista em 1948: “Felicidade é saber. É ter Deus no coração e os livros na cabeça. Eu só tive uma coisa, só tive Deus, mas para saber realmente bem de Deus, seria melhor que eu soubesse distinguir quando um livro está direito ou virado de cabeça para baixo. Sabe? Tenho uma mágoa: não ter conseguido fazer um filho doutor.”. Não teve filhos doutores, teve filhos futebolistas. O primeiro foi Luiz Antônio, que o apelido de “o Perfeito” anuncia suas qualidades. Depois, Ladislau da Guia, o centroavante “Tijolo quente”, também anuncia a potência do chute. E vem o Médio, que jogava no meio. Parece até um roteiro de filme, uma coisa de desenho animado. Faltava um zagueiro, faltava o maior do Clã da Guia.

Domingos da Guia nasceu em Bangu, trabalhou na fábrica e os irmãos eram lendas do clube de Bangu. Naturalmente, começou no Bangu, ainda na reserva. Mas já no primeiro jogo, contra Fluminense, o consagrado jornalista Mário Filho falou que dos 44 jogadores que viu, 22 dos aspirantes, 22 dos times principais, Domingos foi o mais impressionante. O primeiro jogo de Domingos com o time principal de Bangu aconteceu em 1929 contra nosso Flamengo. Vitória do Bangu 3×1, gols dos irmãos Ladislau e Médio, atuação de gala de Domingos. “O grande zagueiro simplesmente não errou” escreveu Placar. Domingos precisou de apenas algumas semanas para se se revelar como um dos melhores jogadores de Rio de Janeiro. Num período de conflito sobre a oficialização do profissionalismo e a aceitação dos jogadores negros no futebol elitista, Domingos se pronunciou em favor de mudanças: “O profissionalismo é uma necessidade inadiável para o progresso do nosso futebol e a honestidade dos nossos rapazes […] Estou disposto, agora, a sair da própria terra natal, para jogar futebol com remuneração, caso encontrasse boas vantagens. Irei para a Espanha, para a Itália, para a China! A ‘plata’ é quem manda a gente seguir a trajetória da vida […] Se eu for convidado a atuar num clube de profissionais, como vantagens, repito, abandonarei o amadorismo. Não me envergonharei de ser profissional”.

No final do ano de 1932, já jogador do Vasco, Domingos participou da excursão da Seleção brasileira no Uruguai. As federações de Rio e São Paulo se recusaram a liberar seus jogadores e a Seleção foi representada por jogadores desconhecidos ou quase. Lembra Domingos para Última Hora em 1957: “Lembro-me da nossa partida. Não havia ninguém que acreditasse em nós. Formara-se, improvisara-se um ‘scratch’ e com um agravante: recrutara-se uma equipe de ‘brotos’. Não havia nele um só astro, um só cartaz”. Astros ainda não, mas tinha craques. No ataque, Leônidas, que fez os dois gols do Brasil no jogo. Na defesa, Domingos, que foi igual ao irmão, perfeito. O Brasil venceu o Uruguai, tricampeão mundial com duas Olimpíadas e a primeira Copa do Mundo, em seguida a Seleção ainda venceu os dois gigantes uruguaios, Peñarol e Nacional.

O Penãrol contratou Leônidas e o Nacional Domingos, com propostas que o futebol brasileiro ainda não podia igualar. Domingos se adaptou bem melhor ao Uruguai que o companheiro. Domingos virou “o Divino Mestre”, virou o melhor “back” do continente, na frente de seu companheiro de clube, Nasazzi, que até lhe pediu de virar uruguaio para jogar na seleção. No jornal El Dia, Ramon de Freitas escreveu em 1933: “Domingos é a perfeição apurada da defesa. É uma linha na qual se podem enfiar todas as pérolas de elogio que a palavra escrita tributa no futebol – e o idioma ainda é curto para isso […] Ele desarma o adversário sem violência e depois se dá o luxo de fazer um passe ‘ta-te-ti’ que dá prazer até a Torre da Homenagem. Quando o vê, a Torre, que não pode aplaudi-lo, sorri para ele pelos 14 olhos de suas janelinhas e parece querer agitar suas asas de cimento para voar até o Paraíso dos Jogadores e gritar: ‘vocês que foram craques venham ver Domingos jogar!’”. Acrescentou Segundo Villadóniga, jogador de Peñarol: “Ah, extraordinário jogador, extraordinário. Foi o jogador mais brilhante como beque, mais brilhante de todos. Ensinou aos beques que não é só chutar para frente. Ele já tirava a bola do adversário e saia jogando com a bola, não é? Esse é um dos que em qualquer selecionado mundial que se faça, não pode ficar fora”.

Domingos revolucionou a posição de zagueiro. Antes, só chutão na frente. Domingo roubava a bola nos pés do adversário e continuava a jogada com dribles na frente, com passe nos pés dos meio-campistas. Era a domingada, uma jogada perigosa, reservada aos craques. Escreveu Edilberto Coutinho no livro Nação Rubro-Negra: “A tranquilidade com que Da Guia dominava a bola na área foi imitada por muitos outros zagueiros: todos queriam mostrar que também eram bons, podendo fazer uma domingada. Mas só um grande craque pode fazer uma jogada desse tipo impunemente. No Flamengo, tardou muito a aparecer um Leandro, cuja classe – porte clássico, modo clássico de jogar, de se movimentar em campo – fez lembrar Da Guia. Nos pés de um medíocre, a domingada termina em fatal fracasso, em gol do adversário. Nos pés de Domingos, ela foi, durante anos a expressão mais pura da arte de jogar futebol”.

Domingos era craque, virou melhor jogador do campeonato uruguaio, virou campeão. Logo depois, assinou no Vasco, onde voltou a jogar com Leônidas. Onde voltou a ser campeão, conquistando o campeonato carioca. Porém, em pleno conflito sobre o profissionalismo, a CBD não chamou Domingos para a Copa do Mundo de 1934. Num jogo contra o Boca Juniors, Domingos fez mais uma exibição de gala e ganhou a admiração do técnico do time argentino, Mario Fortunato: “Sabem que fiquei encantado com Domingos? É um zagueiro excepcional, completo em recursos, comparável aos beques mais notáveis que já vi jogar. Domingos conserta uma defesa com a sua calma, a precisão de suas entradas. É um zagueiro que nunca se precipita. Com uma intuição admirável, apanha a chave dos lances com uma facilidade desconcertante. Para mim, é, na atualidade, o melhor beque sul-americano”. Tanto que o Boca Juniors contratou o Domingos. E de novo Domingos foi campeão. Em 15 meses, Domingos foi campeão de 3 dos melhores campeonatos do mundo: no Uruguai, no Rio, na Argentina.

E com tantas influências, Domingos virou ainda mais completo, se consagrou como melhor zagueiro do mundo, desarmava, driblava, domingava. Escreveu Roberto Sander no livro Os dez mais do Flamengo, onde, claro, Domingo tem um capítulo à parte: “O fato é que Da Guia simbolizava um novo tipo de zagueiro que surgia no Brasil, o de estilo clássico, que jogava com categoria, a mesma de um bom meio-campista. Até a era Domingos, beque que se preasse não precisava ser mais do que um mero rebatedor de bolas, normalmente desprovido de qualquer técnica. Pode-se dizer que o ‘Divino’ reinventou a posição. Transformou zagueiro em jogador de futebol, ou, pelo menos, apontou essa possibilidade”. Para Mário Filho, Domingo era de outro mundo: “Domingos gingava o corpo, mas não se desmanchando todo, como Leônidas. Dançando o samba, jogando futebol. A sobriedade de Domingos chocava como uma coisa vinda de fora. Da Inglaterra. Tanto que quando se queria dar uma ideia de Domingos vinha-se logo com futebol inglês. O futebol inglês como a gente imaginava”. Completam João Máximo e Marcos de Castro no livro Gigantes do futebol brasileiro: “O futebol de Domingos, futebol de gênio, não podia ser definido por ninguém. Tinha muito da malícia do brasileiro, da firmeza do uruguaio, da classe do argentino – e era tão bom como todos eles juntos”.

Domingos foi suspenso no futebol argentino por 6 meses e voltou no Rio, no maior do mundo. Falou o próprio jogador em 1971: “Joguei por muitos grandes clubes, mas minha carreira seria incompleta se não tivesse jogado com a camisa do Flamengo”. O Flamengo, antes clube de ricos, advogados, médicos, se transformou com o profissionalismo e a chegada de jogadores pretos. Já numa excursão no Uruguai em 1933, Flamengo contratou jogadores negros, inclusive o irmão de Domingos, Ladislau da Guia. Em 1936, um ano histórico no Flamengo e no Francêsguista, o presidente José Bastos Padilha mudou a história do clube, contratou o atacante Leônidas, o meio-campista Fausto, o zagueiro Domingos. Três jogadores negros, em cada linha do campo, de novo um roteiro de filme. Escreveu Luciano Ubirajara Nassar no seu livro Fausto, a maravilha negra: “A espinha dorsal da equipe estava composta, com os três elementos da maior qualidade. O destino os colocou no mesmo time. Fenômenos do esporte no seu prefácio. Três negros, três reis e três desbravadores […] Fausto, Leônidas e Domingos eram simbolicamente um santuário sagrado o transformar e repousar sobre o céu do Brasil”. Domingos também mudou sua história, como escreveram João Máximo e Marcos de Castro no livro Gigantes do futebol brasileiro: “É nesse momento que Domingos inicia a fase mais estável e mais brilhante de sua carreira, como craque maduro, responsável, dono de todos os instrumentos para desempenhar da melhor maneira o seu papel. Seus sete anos de Flamengo então iniciados são aqueles em que deixa sua marca maior de excepcional jogador de futebol, são os anos em que se fixa como jogador lendário”.

Domingos jogou seu primeiro jogo com o Manto Sagrado no 16 de agosto de 1936, um 2×2 contra Fluminense, um adversário clássico, um rival de alta qualidade, contra quem Domingos ia brilhar muito. O zagueiro falou em 1967: “Em diversos Fla-Flus eu não sabia qual era a minha torcida. Eu fazia uma jogada e me aplaudiam dos dois lados. Eu sou muito grato à torcida do Fluminense”. Flamengo conquistou o torneio aberto de 1936, com final contra Fluminense, com Domingos, Fausto, Leônidas no time. Porém, Domingos teve que voltar na Argentina, a contragosto: “Não tivesse empenhado minha palavra nem voltaria para a Argentina. Sinto-me, hoje, tão rubro-negro com os antigos. Vou voltar” prometeu em fevereiro de 1937 Domingos, que cumpriu a palavra, já voltando no final do ano de 1937. Porém, o Fluminense de Tim, Hercules e Romeu conquistou o tricampeonato carioca entre 1936 e 1938, Flamengo sempre chegando ao vice. E na Copa do Mundo de 1938, na minha França, Domingos foi um dos melhores jogadores do mundo. Mesmo concedendo 3 pênaltis, um fatal e injusto na eliminação contra a Itália, Domingos foi eleito ao lado de Leônidas na Seleção ideal da Copa.

E no Flamengo, finalmente foi campeão, conquistando o campeonato carioca de 1939, exibindo as faixas pela primeira vez na história do futebol brasileiro. Faltava só isso ao Domingos para se consagrar ainda mais no futebol. Mas na verdade, Domingos já era a figura máxima do futebol, o melhor zagueiro de todos os tempos. Falou o grande capitão do Uruguai em 1950, Obdulio Varela: “O melhor que vocês tiveram foi Domingos. Era completo. Foi campeão no Brasil, no Uruguai e na Argentina”. Falou o adversário Geninho: “O Domingos tinha um senso de antecipação simplesmente fantástico. Não saltava muito, mas não perdia uma só cabeçada, por uma simples razão: ele como que pressentia e saltava um segundo antes do adversário. Primeiro, Da Guia hipnotizava o atacante e, depois, roubava-lhe a bola, numa fração de segundos”. Falou o companheiro Zizinho, ainda em ascensão na carreira: “Domingos foi o Pelé dos zagueiros, o melhor de todos”.

Infelizmente, Flamengo voltou a sofrer da dominação do Fluminense, que conquistou o bicampeonato carioca em 1940 e 1941. Pior, Domingos entrou em conflito com o presidente do Flamengo, Dario de Melo Pinto. Antes do Fla-Flu, o time se concentrou numa fazenda de soldados e Domingos reclamou da cama. Sem nenhuma sutileza ou delicadeza, quem diria inteligência, o presidente respondeu: “Eu vou te arranjar um clube que tem uma cama maior para você”. Domingos ainda conquistou o campeonato carioca em 1942 e 1943, mas as relações com o Dario de Melo Pinto ficavam complicadas, para Domingos era “o único dirigente que não conseguiu me compreender”. Era o fim de uma história, do melhor zagueiro no maior clube do mundo. O Corinthians contratou Domingos numa transação que foi a mais cara do futebol brasileiro na época. Era o fim de uma história de amor de 7 anos, 227 jogos, 140 vitórias, 47 empates e apenas 40 derrotas. De nenhum gol também, Domingos roubava a bola na defesa, chegava até o meio de campo, mas, época diferente de futebol, raramente se aproximava do gol adversário.

No Corinthians, Domingos estreou contra o próprio Flamengo, no Pacaembu. Flamengo abriu 2×0, mas finalmente perdeu 3×2, com “mais um show de Domingos”. Escreveu a Folha de Manhã: “Com suas qualidades e absoluto senso de colocação, Domingos chegou a dar a impressão que se encontrava passeando em campo. Era, entretanto, um passeio ‘a la Domingos’, isto é, escondendo todo o esforço que ele empregou. Entendeu-se perfeitamente com seus companheiros e constituiu-se num obstáculo ao adversário. Como vemos, tratando-se de uma estreia, não poderia ser mais auspiciosa”. Surpreendentemente para um jogador tão vencedor, Domingos não conquistou o campeonato paulista, vítima do São Paulo de Leônidas e do Palmeiras de Oberdan. Ficou líder da Seleção brasileira, onde jogou até 1946. Para o campeonato sul-americano de 1945, o técnico Flávio Costa convocou 33 jogadores e fez 3 times, sem anunciar o time titular. Tim falou simplesmente para Zizinho: “Flávio pensa que sou trouxa, mas se você não estiver com a camisa da cor do Da Guia, não está na equipe titular”.

Como bom filho do Clã da Guia, Domingos voltou no Bangu para fechar a carreira, contra nosso Flamengo no 12 de dezembro de 1948, uma vitória 4×2 do Flamengo. Depois, ainda colocou mais um membro no Clã da Guia, o filho Ademir da Guia, até hoje o maior ídolo do Palmeiras. Repito, Domingos da Guia foi o maior zagueiro da história do futebol brasileiro. Claro, não o vi jogar. Mas basta ler quem o viu, como o maior jornalista do futebol brasileiro, Mário Filho: “Aparentemente o adversário ia para um lado e Domingos para o outro, não se podendo encontrar a não ser no infinito, como as paralelas. Pois o infinito das paralelas, para Domingos, é ali na esquina que só ele vê”. Também o jornalista francês radicalizado no Brasil, Michel Laurence, que antecipou a comparação de Zizinho ao ver um Pelé de apenas 16 anos, mas já brilhando no Maracanã em 1957, falando sobre o futuro Rei: “É o Domingos da Guia do ataque”.

Domingos marcou a imprensa internacional e os grandes escritores, como Eduardo Galeano: “A leste, a Muralha da China. A oeste, Domingos da Guia. Nunca houve zagueiro mais sólido na história do futebol […] Homem de estilo imperturbável, fazia tudo assobiando e olhando para outro lado. Desprezava a velocidade. Jogava em câmara lenta, mestre do suspense, amante da lentidão: chamou-se domingada a arte de sair da área com toda a calma, como ele fazia, soltando a bola sem correr e sem querer, porque tinha pena de ficar sem ela”. E mais, marca dos gigantes, dos maiores, Domingos foi além do futebol. O grande sociólogo Gilberto Freyre chamou Domingos de “Machado de Assis do futebol”. Para o romancista membro da Academia Brasileira de Letras, Otávio de Faria, “o futebol de Da Guia tem a mesma harmonia das composições de Mozart”. Domingos foi tudo isso, um operário do Bangu e um artista do futebol, o maior e o melhor zagueiro, um ídolo do Flamengo, honrando durante 7 anos o Manto Sagrado, perpetuando a magia do futebol brasileiro para a eternidade.

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O autor

Marcelin Chamoin, francês de nascimento, carioca de setembro de 2022 até julho de 2023. Brasileiro no coração, flamenguista na alma.

“Uma vez Flamengo, Flamengo além da morte”