Jogos eternos #229: Flamengo 3×4 Independiente 1939

Para a véspera de Natal, volto bem atrás no tempo, com um jogo que aconteceu numa outra véspera de Natal, em 1939. E pela quarta vez no Francêsguista, uma derrota do Flamengo. A primeira foi o último título de Zagallo em 2001, a segunda foi pancada contra uruguaios e classificação na final da Copa Mercosul de 1999, a terceira, pouco tempo atrás, torcendo para um rebaixamento do Fluminense que não aconteceu.

Hoje, não tem nada de título, de briga generalizada ou de rival aos fundos. Mas teve muitas coisas, começando na parte tática do futebol, com a aparição do esquema em diagonal, que marcou o futebol brasileiro na década de 1940 até a final da Copa do mundo de 1950. Explica no excelente livro Anatomia de uma derrota de Paulo Perdigão o próprio Flávio Costa, técnico do Flamengo em 1939 e da Seleção em 1950: “Em 1939, quando passei a técnico do Flamengo, havia no time o Domingos da Guia. Íamos jogar contra o Independiente, da Argentina, que tinha um ataque maravilhoso, e eu estava assustado. Uma das maneiras de fechar nossa defesa era prender o Domingos dentro da área, como beque central, o stopper do sistema WM criado por Herbert Chapman, do Arsenal de Londres – aquele que fica dentro da área, cobrindo o gol. Para impedir que Domingos saísse para dar combate ao extrema adversário, coloquei um homem marcando esse extrema. Assim, criamos um sistema híbrido: o lado direito com o WM, o esquerdo com a armação, digamos, clássica. A ideia deu certo e procurei aperfeiçoá-la. Na “diagonal”, o half direito e o meia-direita ficavam atrasados, enquanto o half esquerdo e o meia-esquerda atuavam adiantados. O Flamengo tornou-se uma máquina de fazer gols. Com esse êxito, todos os times do Rio e do Brasil passaram a adotar a ‘diagonal’”.

O Independiente fez uma excursão no Brasil no final do ano de 1939 e tinha um timaço liderado pelo gênio Antonio Sastre e o goleiro da seleção argentina, Fernando Bello. O Flamengo tinha também um grande time, que tinha acabado de conquistar o campeonato carioca depois de três anos atrás do Fluminense. Tinha o líder da defesa Domingos, seu irmão Médio no meio, além do argentino Volante, que jogava tanto que simplesmente deu seu nome a posição. No ataque, tinha outro gringo, Alfredo González, também tinha Sá, Jarbas, mas sobretudo tinha Leônidas, ídolo do povo, do Brasil, do Flamengo. Para o jornalista Luiz Mendes, Leônidas era “um misto de Pelé e Romário”, só isso dá angustia aos zagueiros e sonhos a todos os outros. E mais, Leônidas imortalizou um gesto de futebol, deixou sua assinatura numa jogada sonhada pelas crianças, repetida em tantos campos de futebol, praias de Rio de Janeiro, até camas de qualquer criança no mundo. A bicicleta não tem nome mas tem a cara de Leônidas, que conseguiu fazer um gol assim pela primeira vez em 1932.

E mais, o jogo contra Independiente marcou a estreia de um jovem meio-campista, que completou 18 anos poucas semanas antes, um outro ídolo no Flamengo e no Francêsguista, Zizinho. O jovem de Niterói fez um teste no Flamengo e entrou num jogo-treino no lugar de ninguém menos que Leônidas. No primeiro lance, perdeu a bola, no segundo lance, driblou 3 jogadores e fez o golaço. Cinco minutos depois, de cobertura, fez outro golaço. Era o nascimento de uma lenda. A palavra agora para outro gênio do jornalismo, Armando Nogueira, que escreveu sobre Zizinho: “Tinha o futebol na medula e no cérebro, no coração e nos músculos. Era, ao mesmo tempo, o pianista e o carregador do piano. Sempre suou a camisa, na derrota ou na vitória – era um operário; mas quanta beleza na transpiração de sua obra”.

Zizinho, ainda muito novo e que tinha jogado apenas uma vez com Flamengo, num jogo em Niterói contra Byron para a compra de seu passe, não imaginava começar esse jogo contra o Independiente, bicampeão argentino em 1938 e 1939. Mas era a surpresa do Flávio Costa, já maravilhado pelo futebol de Zizinho, já consciente que tinha um craque nas mãos. No 24 de dezembro de 1939, Flávio Costa escalou Flamengo assim: Walter; Domingos, Newton Canegal; Artigas, Volante, Médio; Zizinho, Sá, González, Jarbas, Leônidas. De tanta importância e tanto prestígio, o jogo aconteceu no maior estádio do Rio de Janeiro da época, o São Januário.

E jogo começou ruim para o Flamengo, que jogava com seu manto tradicional rubro-negro. Aos 11 minutos, um chute sem perigo de Erico foi desviado pelo Newton e enganou Walter, deixando o Independiente na frente no placar. Apenas quatro minutos depois, o mesmo Erico fez o segundo gol do jogo. A situação piorou aos 30 minutos do jogo quando Maril fez o terceiro gol argentino. No dia seguinte, o jornal Globo Sportivo escreveu: “A cada goal dos argentinos aumentava o desnorteio dos defensores dos rubros, em contraste com a subida de produção dos atacantes commandados por Leônidas. Faltava o apoio dos halves, mas restava o enthusiasmo e elle levava-os até Bello. Numa arrancada louca Jarbas centra para Leônidas e este, mesmo assediado por toda defesa platina, shoota perigosamente, mas a bola bate em Martinez, que afasta o perigo”. O primeiro tempo acabou assim, com 3 gols de vantagem para os argentinos e uma derrota quase certa do Flamengo, até uma goleada temida. Mas Flamengo, já nos anos 1930, era Flamengo, era capaz de tudo.

No segundo tempo, Flamengo voltou com outro Manto Sagrado, agora a camisa branca, o primeiro sendo similar ao do Independiente. O segundo uniforme do Flamengo, uma inovação no Brasil, foi idealizado em 1937 pelo técnico húngaro Dori Kruschner, para facilitar os jogos de noite. Aproveito para citar mais um gênio da literatura, tricolor de coração, mas que fez do Flamengo um clube ainda maior com escrituras sagradas, imortalizando o clube assim: “Para qualquer um, a camisa vale tanto quanto uma gravata. Não para o Flamengo. Para o Flamengo, a camisa é tudo. Já tem acontecido várias vezes o seguinte: – quando o time não dá nada, a camisa é içada, desfraldada, por invisíveis mãos. Adversários, juízes, bandeirinhas tremem, então, intimidados, acovardados, batidos. Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnicos, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E diante do furto impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável”.

No São Januário, Flamengo voltou com Marin no lugar de Newton, que tinha feito o gol contra. E, com a ajuda do Manto Sagrado, não importa rubro-negro ou branco, voltou melhor, botando pressão na zaga do Independiente. Ainda o Globo Sportivo, no estilo e ortografo da época: “O primeiro goal foi conquistado aos quatro minutos de jogo. Artigas bate na altura da linha média do Independiente, a bola vae a Zizinho que estende o couro a Leônidas. Leônidas, mesmo perseguido por Colleta produz linda e decisiva jogada, a qual burlou pela primeira vez a vigilância de Bello. O jogador carioca faz menção de shootar com a direita e arremata alto com o pé esquerdo, fazendo as redes balançarem”.

Falo de novo, o jogo marcou a aparição de um novo craque, futuro ídolo de Pelé, Zizinho. Jogou uma barbaridade, até o exausto completo, pedindo sua substituição. Falou o próprio Zizinho no livro Nação rubro-negra de Edilberto Coutinho: “Ganhei nesse jogo a posição. Nunca mais deixei de ser titular”. Ainda Nelson Rodrigues, agora sobre Zizinho: “Bastava os alto-falantes do Maracanã anunciarem o nome dele para se saber quem seria o vencedor da partida”. Mas em 1939, ainda era o São Januário, Zizinho ainda era inexperiente, Flamengo ainda estava atrás no placar. No lugar de Zizinho, entrou Naon, decisivo no primeiro lance dele, fazendo a assistência para Jarbas. De tantos grandes nomes no time, Jarbas é um pouco esquecido, mas está até hoje dentro dos 10 maiores artilheiros da história do Flamengo. Um ídolo.

Flamengo voltava a um gol do empate, mas infelizmente Volante se machucou. Como as duas substituições já tinham sido feitas, Flamengo ficou com apenas 10 jogadores em campo. E Flamengo, já nos anos 1930, era heroico. Mesmo com um jogador a menos, Flamengo dominou o jogo, buscou o empate. Ainda o Globo Sportivo: “Nos quinze minutos finaes os campeões da cidade tiveram que contar apenas com dez homens. As alternativas do match prenunciavam o empate e na imminencia do grande feito a multidão incentivava ardorosamente seus prediletos. Por isso mesmo o goal de Leônidas, do empate, não surprehendaria tanto se não constituisse uma dessas jogadas ‘historicas’, inéditas em matches de football. O lance desenrolou-se da seguinte forma: num ataque do campeão de terra e mar, Jarbas centra uma bola alta. Dentro da área, antes que o couro chegasse ao solo, estando mesmo mais alto do que um homem de estatura média, o ‘Diamante Negro’ salta espectacularmente de costas para o goal e de ‘bicycleta’ – num verdadeiro salto mortal – consagra o terceiro goal, indo o couro balançar as redes no canto direito”.

Por isso mesmo, esse jogo está hoje eternizado no blog. Além da estreia de Zizinho, teve o “salto mortal”, a jogada irmotal de Leônidas. O ídolo do povo fazia aqui um de seus gols mais famosos, a bicicleta mais famosa. Escreveu Edilberto Coutinho: “Foi de bicicleta, um de seus gols antológicos jogando pelo Flamengo – contra o goleiro Bello, da Seleção argentina – em 1939. A bola veio muito alta, para que Leônidas pudesse dominá-la ou dar um chute direto. E estava muito longe do gol do Independiente para tentar a cabeçada. Então, aquele pequeno e elástico corpo negro se jogou no espaço contra a bola, o gol às suas costas. Na horizontal, fugindo à força da gravidade, levantou primeiro o pé esquerdo, baixando-o em seguida com violência, enquanto o direito alcançava a bola; desviando-a com força, fez que fosse se alojar no ângulo do arco de Bello, vencendo-o inapelavelmente. O homenzinho negro ainda está no ar, quando o estádio inteiro explode de pé. Leônidas da Silva alimentava o próprio mito, juntando mais uma pedra ao monumento de sua imortalidade no futebol. Aparvalhado, o argentino Bello não conseguia entender o que se havia passado”.

Para completar, o texto de Fernando Calazans no livro 85 anos de glórias sobre a atuação de Zizinho: “No dia seguinte, os jornais só falavam daquele estreante e todos arriscavam a afirmação de que seria um craque. Acertaram em cheio. Durante toda a década de 40 e boa parte da de 50, Zizinho – Mestre Ziza, como passou a ser chamado – foi o grande ídolo do Flamengo e o maior jogador do Brasil. Não podia existir nada mais perfeito em matéria de meia-de-ligação […] Era um jogador talhado para vestir a camisa rubro-negra, pois aliava todas as qualidades que a torcida queria ver reunidas em seu ídolo. Zizinho não era apenas técnica. Era isso e muito mais: coração, músculos, paixão – enfim, o próprio espírito rubro-negro. Zizinho era um guerreiro”.

O Independiente fez o gol do 4×3 graças ao De La Mata e Flamengo teve outra chance de empate. Ainda o Globo Sportivo: “Antes de encerrado o match, o Flamengo teve ainda oportunidade de empatar novamente a partida e cabe ao juiz, devido a uma grave falha, a não realização da grande façanha. Já habituado a marcar com acerto off-sides de Sá, assignala impedimento num dos raros instantes em que o ponta rubro-negro tinha à sua frente um zagueiro contrário. Não havia tempo material para mais um goal, mesmo porque os jogadores rubro-negros resentiam-se do esforço sobrehumano produzido”.

Flamengo perdia sim, mas numa época de platinismo, a Seleção brasileira perdeu no início do ano de 1939 pelo placar de 5×1 contra a Argentina no mesmo São Januário, Flamengo foi heroico contra o campeão argentino, ainda conseguirá uma revanche brilhante no Réveillon do ano novo uma semana depois, e mostrou que tinha craques, em formação ou já consagrados, como Leônidas e Zizinho.

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O autor

Marcelin Chamoin, francês de nascimento, carioca de setembro de 2022 até julho de 2023. Brasileiro no coração, flamenguista na alma.

“Uma vez Flamengo, Flamengo além da morte”