Jogos eternos #245: Flamengo 2×1 Botafogo 1969

Hoje é dia de decisão, é dia de clássico. Claro, a rivalidade entre Flamengo e Botafogo não atinge os níveis do Clássico dos Milhões ou do Fla-Flu. Porém, Botafogo acabou de conquistar o Brasileirão e a Copa Libertadores na mesma temporada, façanha reservada antes ao Santos de Pelé e o inesquecível Flamengo de 2019. Com a volta do Botafogo ao primeiro plano, a rivalidade subiu de um nível. Botafogo também brilhou nos anos 1960 e ganhou muitas vezes durante a década o Clássico da Rivalidade (até no nome, o clássico contra Botafogo é bem atrás do Clássico dos Milhões e do Fla-Flu). Até um jogo de 1969, que mudou, não só a história do clássico, mas também a história do Flamengo.

Com Garrincha, Didi e Nílton Santos, depois com Jairzinho, Gérson e Paulo César, com Zagallo como jogador depois técnico, Botafogo conquistou o campeonato carioca em 1961, 1962, depois em 1967 e 1968. Na década de 1960, dominou o Clássico da Rivalidade com 21 vitórias, 10 empates e apenas 8 derrotas. Em 1969, não perdia contra Flamengo há 9 jogos e uma derrota no Torneio Roberto Gomes Pedrosa de 1967. No campeonato carioca, pior ainda para o Flamengo, que não vencia Botafogo desde 1965, com 8 jogos consecutivos sem vencer.

O jejum incomodava como incomodava a mania dos torcedores adversários de chamar Flamengo e seus torcedores de “Urubu”. Em 1967, o cartunista Henfil usou nas páginas do Jornal dos Sports um Urubu para representar o Flamengo e sua torcida humilde, da periferia, da favela, substituindo com o Urubu o antigo mascote Popeye, um marinheiro que nunca realmente foi adotado pela torcida rubro-negra. O Urubu virou uma piada, mais uma ofensa racista, usada pelos adversários, sobretudo os botafoguenses, para designar o torcedor rubro-negro, pobre, preto, favelado. Explica Marcelo Schwob no seu livro Seleção brasileira de histórias de futebol: “Com sua imagem ligada ao povo pobre, que no país é logo associada aos negros, a torcida do Flamengo costumava ser chamada nos anos 1960 pelas torcidas adversárias como a ‘torcida do urubu’, um claro sinal de racismo admitido no meio popular. Na realidade, a imagem tinha sido potencializada pelas charges do cartunista Henfil, que deste 1967 escrevia tiras em quadrinhos no Jornal dos Sports. Para cada clube de futebol do Rio, ele criara um símbolo e o do Flamengo era o Urubu, um negro simpático e esperto com a camisa do Flamengo. Com este símbolo, Henfil procurara homenagear o clube mais popular com uma imagem do povão, mas que as torcidas adversárias trataram de explorar de maneira sarcástica em seus gritos no Maracanã”. As referências dos rivais ao Urubu eram insistentes, inconvenientes, constrangedores, incomodavam como incomodava o jejum contra Botafogo.

Incomodava até 1969 e a ação dos flamenguistas Luiz Octávio Vaz, Romilson Meirelles, Victor Ellery e Erick Soledade, quatro amigos brancos de Leme, bairro de classe média alta na Zona Sul, afinal a torcida do Flamengo é isso, o povo no seu sentido maior. No livro Grandes jogos do Flamengo de Roberto Assaf, explica Luiz Octávio Vaz: “Eu fazia parte de uma turma do Leme que ia a todos os jogos. Na semana daquele jogo, tivemos a ideia de ir ao depósito de lixo do Caju para apanhar um urubu. Quem sabe o bicho não daria sorte? O Flamengo não vencia o Botafogo há nove anos. A captura não foi muito fácil não. Um gari, rubro-negro, é claro, que estava de plantão por lá nos ajudou. O urubu veio num DKW, enrolado numa bandeira, bicando todo mundo. Ele dormiu na portaria do meu prédio. No domingo, fomos cedo para o Maracanã. Naquela época não havia essa paranoia de revistar todo mundo. As pessoas não levavam armas para o estádio, não havia violência entre torcidas organizadas. Entramos com o bicho dentro do bandeirão, gritando ‘Mengo! Mengo! Mengo!’, não houve problema”.

Não era um jogo decisivo, era só um jogo qualquer do campeonato carioca, terceira rodada do segundo turno, mas era o Clássico da Rivalidade, entre Botafogo, maior time da atualidade, e Flamengo, maior time da história. Eram outros tempos do futebol e tinha no Maracanã 150 mil espectadores aproximadamente, 149.191 exatamente. No 1o de junho de 1969, o técnico Tim escalou assim Flamengo assim: Domínguez; Murilo, Guilherme, Onça, Paulo Henrique; Liminha, Rodrigues Neto; Luís Cláudio, Doval, Arílson, Dionísio. De seu lado, Botafogo tinha apenas uma derrota no campeonato, logo na estreia contra Bonsucesso, quando jogava sem seus craques Gérson e Jairzinho. Uma semana antes do jogo contra Flamengo, Botagogo goleou Bangu no placar de 6×0.

Com Gérson, Jairzinho, Paulo César e Roberto, Botafogo tinha uma máquina. Mas Flamengo tinha um cérebro, seu técnico Tim. Já quando era jogador do Fluminense, Tim se destacava pela inteligência em campo. Como técnico, principalmente no Bangu e no Fluminense, foi considerado como um dos maiores inovadores, ganhando até o apelido de estrategista. E foi o caso no Flamengo x Botafogo, Tim colocou mais um homem na marcação de outro cérebro e estrategista, o meio-campista Gérson, que sempre lançava as flechas Jairzinho e Roberto Miranda, que fizeram os dois gols do Botafogo na vitória 2×0 na ida. Tim colocou o lateral-direito Murilo como líbero, para impedir os lançamentos precisos de Gérson.

No Maracanã, o time do Botafogo demorou para entrar em campo. E o quarteto de Leme, depois de toda a dificuldade de capturar o urubu em Caju, suou para segurar a ave, presa numa bandeira confeccionada pela tia de Luiz Octávio. Finalmente o time botafoguense entrou em campo, e os amigos soltaram o urubu, que voou com a majestade do povo no céu do Maraca. Com bandeira do Flamengo amarrada às patas, o urubu passou na frente da torcida do Botafogo, reduzida ao silêncio, posou na frente deles, com ares de desafio. A torcida do Botafogo ficou muda e a torcida rubro-negra, a urubuzada antes menosprezada e agora orgulhosa, entendeu a simbólica e ecoou “é urubu, é urubu, é urubu”. “Ele deu um rasante apoteótico. O Maracanã delirou” continua Luiz Octávio. E Flamengo ganhou ali, com o urubu voando e a torcida delirando, o Clássico da Rivalidade, antes mesmo do apito inicial.

O juiz Armando Marques apitou e o jogo era do Mengo. Aos 9 minutos, o craque argentino Doval saiu na direita e cruzou para Dionísio que chutou. O goleiro Ubirajara Motta defendeu de forma parcial, Arílson chegou e abriu o placar. Na metade do primeiro tempo, ainda Doval, gringo, branco, até tricolor depois, mas urubu na alma, recebeu de Rodrigues Neto, achou a gaveta, alegrou a galera, a Nação rubro-negra, a urubuzada. No segundo tempo, Jairzinho provocou um pênalti, transformado pelo Paulo César. O torcedor botafoguense voltou a acreditar, a querer mais um jogo sem derrota contra o Flamengo. Mas estava escrito desde que o Urubu voou no Maracanã, o jogo era do Mengo, a vitória era rubro-negra.

Flamengo venceu 2×1 e triste final para o urubu de Caju, sem nome, apenas urubu, que morreu dentro do Maracanã. Talvez um final não tão triste já que se eu morrer no Maracanã, acharia um falecimento lindo. Uma veterinária do Jardim Zoológico examinou o urubu e decretou que a ave morreu de fome mesmo, de uma forma irônica já que Flamengo colocou um fim ao jejum. E mais importante, a partir deste momento, graças a quatro jovens amigos de Leme e um sacrifício animal, o Urubu agora não era mais um motivo de piada ou ofensa dos rivais, era o orgulho de uma Nação, era o símbolo do Flamengo, capaz de derrotar Botafogo e qualquer um.

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O autor

Marcelin Chamoin, francês de nascimento, carioca de setembro de 2022 até julho de 2023. Brasileiro no coração, flamenguista na alma.

“Uma vez Flamengo, Flamengo além da morte”