Jogos eternos #251: Flamengo 2×1 Bangu 1966

O campeonato carioca se aproxima da fase de mata-mata e já tem duas certezas: Flamengo é o único gigante a ser oficialmente classificado, e o campeonato vai perder no próximo ano um de seus clubes mais tradicionais, Bangu, que já está rebaixado. Bangu é até o último time fora dos 4 gigantes a conquistar o campeonato carioca, em 1966. Vamos então para o jogo eterno do dia de um Flamengo x Bangu, de 1966.

Em 1965, para o quarto centenário da cidade de Rio de Janeiro, Flamengo contratou uma dupla de atacantes carismáticos e habilidosos, Silva Batuta e Almir Pernamquinho. Depois de passar no Sport, Vasco, Corinthians, Boca Juniors e na Itália, Almir chegou no Santos e, já jogando na lama, com a camisa 10 de Pelé, conquistou o Mundial de clubes em cima do Milan. Foi até chamado de “Pelé branco”. No Flamengo, além de “Careca” por motivos óbvios, foi chamado de “Almir-Raça”, também não precisa de explicações. Almir misturava uma boa técnica com uma raça quase insuperável.

Na semana antes da decisão de 1966 contra Bangu, Almir acusou seu companheiro Valdomiro de ter se vendido ao Bangu, já financiado pelo bicheiro Castor de Andrade. E Almir prometeu: “Uma coisa eu garanto, não verei o Bangu dar a volta olímpica”. No Maracanã, na frente de quase 150 mil, Bangu abriu 2×0 antes do intervalo e Paulo Borges fez o gol de 3×0, quase definindo o título. E Almir cumpriu a promessa, partiu para cima de Ladeira e iniciou uma das brigas mais impressionantes da historia do Maracanã. Depois da confusão, o juiz expulsou 9 jogadores e o jogo se terminou assim, sem volta olímpica do Bangu.

Mas Almir já tinha mostrado raça e amor ao Manto Sagrado no jogo de ida. Flamengo precisava vencer Bangu na última rodada para conquistar o primeiro turno, o empate deixava o título para o time da zona Oeste. No 30 de outubro de 1966, o técnico argentino Armando Renganeschi escalou Flamengo assim: Franz; Murilo, Itamar, Jayme Valente, Paulo Henrique; Carlinhos, Nelsinho; Gildo, Silva Batuta, Almir Pernambuquinho, Osvaldo Ponte Aérea. Flamengo precisava da vitória, mas foi Bangu que abriu ao placar, com gol de Paulo Borges aos 12 minutos de jogo. Flamengo precisava de uma reação, precisava de raça, amor e paixão.

Mesmo sob forte chuva no Maraca, Flamengo reagiu no segundo tempo, o Violino Carlinhos fez uma incursão da defesa alvirrubra e deixou para Silva Batuta que empatou. Mas Flamengo se complicou dois minutos depois, com expulsão do próprio Silva, o juiz alegando agressão em Cabralzinho, o que não fazia o menor sentido. Pior ainda que Osvaldo Ponte Aérea estava machucado, mas sem substituições autorizadas, ficou em campo, fazendo apenas número. Murilo também estava sem condições de jogar. Era quase 8 homens contra 11 e o empate era do Bangu. Faltava 15 minutos para o final do jogo e nada definido, nada decidido. Faltava agora 5 minutos e chegou a hora do ídolo, que misturava a técnica e a raça, chegou a hora do Pelé branco, do Almir-Raça. Num cruzamento alto, Almir Pernambuquinho cabeceou, caindo na lama. O goleiro Ubirajara Motta, que depois defenderia a meta rubro-negra, fez a defesa parcial. Almir, ainda no chão molhado, cheio de lama, pulou como um cachorro, caiu no chão, sem as mãos para impedir a cara de se encher de lama, e no fundo da alma, bola na cabeça, no fundo do gol. No livro Almanaque do Flamengo, Roberto Assaf escreveu: “A bola ficou presa em uma poça. Pernambuquinho não teve dúvida: mergulhou em sua direção, arrastando-a com a cara até que cruzasse a linha de gol. Atônitos, os jogadores do Bangu reclamaram impedimento, mas na realidade ninguém tinha muito do que se queixar. E o lance entrou para história do Maracanã”.

No dia seguinte, o grande Nelson Rodrigues imortalizou o lance nas páginas do Jornal dos Sports: “Ontem, vimos um Almir apenas épico. Fez o gol, venceu o jogo, e entrou, no vestiário, chorando lágrimas de esguicho. Mas vejamos o tento maravilhoso. Foi assim: Ubirajara defende e larga. Almir estava no chão, com a cara enfiada na grama, na lama. Pois mordendo a grama, e mordendo a lama, ele enfiou a cabeça na bola, que escapara das mãos de Ubirajara. Eu me lembrei, então, daquele touro de soneto – ‘saudoso de feridas’. Com uma marrada épica, digna desse touro, Almir ganhou a batalha para o Flamengo. O Estádio Mario Filho explodiu de alegria rubro-negra. Amigos, a vitória com dez homens tem a doçura dos vinhos antigos, e, repito, dos vinhos de trezentos anos. Já o empate seria um resultado esplêndido. E o triunfo subiu à cabeça da massa rubro-negra, embriagou a legião que seguirá o Flamengo, com fidelidade e amor, até a consumação dos séculos”. O gol também foi imortalizado por uma foto que virou até capa da revista France Football, com a legenda que deixo em meu querido francês: “Tricolores, prenez exemple sur Almir le Pelé blanc”, a revista de minha infância e tantos outros garotos e idosos franceses durante gerações e gerações, falando de um “gol extraordinário”.

Para fechar, deixo o depoimento do herói do dia, do Diabo da Raça (grife minha), Almir Pernambuquinho, no seu excelente livro Eu e o futebol, publicado em 1973, ano de sua morte precoce e trágica: “Aquele gol foi o mais espetacular que fiz em toda a minha carreira e mereceu até a capa dupla de uma revista, a France Football […] Acho que fui eu mesmo quem cabeceou para o goleiro Ubirajara rebater, porque sei que estava caído quando vi a bola a mais ou menos meio metro de distância e o Ubirajara, também caído, se esticar todo para tentar agarrá-la. A partir desse momento, me lembro nitidamente de tudo, porque para mim aquele lance rápido durou uma eternidade […] Foi uma luta terrível. Eu não tinha tempo de me levantar, porque tudo tinha que ser decidido em questão de segundos, antes que outros jogadores do Bangu mandassem a bola para córner […] Finalmente consegui vencer Ubirajara naquela corrida desigual: acabei tocando a bola primeiro, de cabeça […] Com os olhos empapados, nem pude ver a bola ir para as redes, mas senti que havia alcançado o meu objetivo: a torcida do Flamengo rugiu com o grito de gol. Até hoje o Ubirajara jura que só levei vantagem porque teria tocado a bola com a mão. É desculpa de mau perdedor. Eu juro pela felicidade dos meus filhos que fiz aquele gol limpamente […] Com a cabeça e o coração”.

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O autor

Marcelin Chamoin, francês de nascimento, carioca de setembro de 2022 até julho de 2023. Brasileiro no coração, flamenguista na alma.

“Uma vez Flamengo, Flamengo além da morte”