Para a crônica #44, o nome de Valido é duplamente obvio. Fez 44 gols com o Manto Sagrado entre 1937 e 1944. Ídolo das massas, foi realmente em 1944 que se eternizou no Flamengo, com um gol que faz parte da Santa Trinidade dos gols decisivos contra Vasco, Valido em 1944, Rondinelli em 1978, Petkovic em 2001.
Agustín Valido nasceu na Argentina, em Buenos Aires, no 31 de janeiro de 1914, com a vocação de ser rubro-negro. Em 1944, o Jornal do Brasil escreveu: “Agustín Valido, filho de espanhóis, nasceu em Buenos Aires em 1914. Começou a carreira num pequeno clube da Boca, bairro portenho que serviu de inspiração à realidade de uma das principais equipes da América do Sul, o Boca Juniors. Valido era boquense, mas teve lá poucas oportunidades. Foi emprestado ao Lanús, pequeno time da segunda divisão. Em 1936, veio ao Brasil com um combinado de clubes dissidentes, que se chamava Becar Varella. Veio jogar no Brasil contra clubes também dissidentes. Como não tinha salário, acabou ficando no Brasil e jogando pelo Flamengo”.
Valido chegou ao Flamengo em 1937. Um ano antes, um ano histórico no Flamengo e no Francêsguista, o clube abriu realmente suas portas aos jogadores negros, com a vinda de Leônidas, Domingos e Fausto. O ano de 1937 abriu no Flamengo a Era do platinismo. O futebol argentino era considerado o melhor do mundo e muitos argentinos foram ao Brasil. Apenas no Flamengo, foram 15 jogadores a vestir o Manto Sagrado entre 1937 e 1945, com uma Santa Trinidade formada por Volante, González e Valido. Valido foi lançado no Flamengo por outro gringo, Dori Kruschner, num jogo contra Vasco, e já no seu segundo jogo com o Manto Sagrado, fez gol contra Botafogo, ajudando a levar a Taça da Paz, no estádio das Laranjeiras. Fez apenas um outro gol em 1937, num 3×3 contra Vasco. Valido era predestinado.
Em 1938, fez 15 gols, destaque para um gol na vitória 5×0 contra Botafogo, doblete contra Bangu e gols fora do Rio de Janeiro, contra Cruzeiro e Santos. Porém, como foi o caso em 1936 e 1937, Flamengo perdeu o campeonato carioca para Fluminense, que assim conseguiu o tricampeonato. Flamengo tinha craques em cada linha do time, especialmente no ataque com Leônidas, González, Waldemar de Brito, Jarbas e claro, Valido. Em 1939, Flamengo estreou no campeonato carioca com uma vitória 5×1 sobre Madureira, Valido fazendo o primeiro gol rubro-negro da campanha. Valido também fez dobletes contra Flumimense, America e Bangu. No final do campeonato, America derrotou Botafogo e ofereceu o título ao Flamengo. Já de faixas de campeões, uma inovação na época, Flamengo enfrentou Vasco nas Laranjeiras. Valido abriu o placar, González fez dois, Leônidas mais um e a cidade inteira partiu para uma grande festa. Finalmente Flamengo era o campeão. “A festa que se seguiu foi enorme. A torcida enlouquecida saiu pelas ruas do Rio de Janeiro, em grande comemoração. A praia do Flamengo teve que ser interditada ao trânsito devido à multidão que invadiu as pistas. Nessa época, festa como essa só se via mesmo quando o Flamengo era campeão” escrevem Arturo Vaz, Paschoal Ambrósio Filho e Celso Júnior no livro 100 anos de bola, raça e paixão.
Em 1940, Valido fez apenas um gol, contra Bangu, uma das suas maiores vítimas, e dobrou em 1941, ou seja, apenas dois gols, mas em dois clássicos, contra Vasco e Botafogo. Em 1942, com a consagração de mais um ídolo, Zizinho, Valido foi deslocado na ala direita e passou a fazer mais gols. Já na estreia do campeonato, mais uma vez Valido fez o primeiro gol da campanha rubro-negra. Com apenas 4 minutos de jogo, fez o primeiro gol contra Canto do Rio, vencido 6×0 com dobletes de Valido e Perácio, e gols de Zizinho e Pirillo. Porém, no primeiro turno, Flamengo foi bem mediano, com 4 vitórias, 3 empates e 2 derrotas, com apenas mais um gol de Valido, de novo contra Bangu.
No segundo turno, Flamengo descolou, Valido também. O craque argentino fez 4 gols em 9 jogos, com 8 vitórias e um empate do Mengo. Na terceira fase, Valido fez 2 gols na goleada 7×0 contra Bonsucesso e abriu o placar na penúltima rodada, uma vitória 4×0 sobre São Cristóvão. O título foi confirmado com um empate 1×1 contra Fluminense, jogo que viu a aparição da Charanga Rubro-negra. Valido ainda fez alguns jogos no início de 1943, conquistou o primeiro Torneio Relâmpago da história do futebol carioca, e fez sua última partida com o Manto Sagrado no 28 de março de 1943, uma eliminação contra Vasco no Torneio Início. Com apenas 29 anos, resolveu pendurar as chuteiras para cuidar de sua empresa de gráfica, ficando no Rio de Janeiro. Com 139 jogos e 43 gols, com os títulos do campeonato carioca de 1939 e 1942, Valido teria um bom lugar na galeria dos ídolos rubro-negros, mas não ultrapassaria seus contemporâneos González, Volante, Vevé, Perácio ou ainda Pirillo. Mas Valido voltou e se confirmou, se eternizou como ídolo do Flamengo.
Depois da aposentadoria de Valido, Flamengo conquistou o bicampeonato carioca em 1943, outro ano histórico no Francêsguista, mas perdeu o zagueiro Domingos para o futebol paulista e o atacante Perácio por causa da guerra. A campanha do campeonato carioca de 1944 foi bem mais difícil, o título era quase perdido para o rubro-negro, que voltou pouco a pouco como candidato ao título. E no final do ano, Valido voltou na Gávea, mas não com o objetivo de jogar. Um dos contadores da história, tem muitos já que é um capítulo importantíssimo na história do Flamengo, é Roberto Sander no seu livro Anos 40: viagem à década sem Copa: “O então aposentado Valido apareceu na Gávea para visitar os ex-companheiros e pedir a Flávio Costa o campo emprestado para um jogo dos funcionários de sua gráfica. Como tinha todo crédito, o campo foi cedido. No dia da partida, Valido, na ausência de um funcionário, acabou jogando. Flávio estava por perto e ficou impressionado com o quanto ex-jogador ainda estava em forma. Fez um apelo para que ele voltasse ao Flamengo. Mesmo surpreso, Valido e cortou o desafio. Fez a sua reestréia logo num Fla-Flu, na penúltima rodada. A vitória no clássico era crucial para que o time continuasse a brigar pelo tri. Resultado: goleada de 6 a 1 para o Flamengo. Mesmo sem marcar, Valido fez uma grande partida, contribuindo, principalmente, para a inspiração de Pirilo (autor de dois gols) e Zizinho (um gol)”.
Na última rodada, Flamengo precisava da vitória contra Vasco para conquistar o primeiro tricampeonato de sua história. Em caso de empate, teria uma final em 3 jogos. O Flamengo andava com muitos problemas, Pirillo tinha orquite, Vevê dores no meniscos e Modesto Bria um lumbago. Valido também não podia jogar, como ele mesmo explicou depois: “Passei a semana com febre. Eu estava magro, abatido, mas me obrigaram a entrar”. Assim Valido jogou, se eternizou no Flamengo. Escreve Fausto Neto no livro Flamengo, 85 anos de glória: “Historicamente, o gol de Valido contra o Vasco, na final de 44, é uma das páginas mais fascinantes da vida do Flamengo. Não apenas pelo gol, mas por tudo o que ele encerra, numa verdadeira epopeia de amor, garra e obstinação. A começar pelo drama do próprio Valido, um jogador que já encerrava a carreira. O destino, porém reservou-lhe uma etapa gloriosa e inesquecível naquela tarde de 29 de outubro. Valido entrou no time mais para colaborar, para tentar solucionar paliativamente um problema na ponta-direita. E acabou, como que guiado pelas mãos de Deus, a participar do lance decisivo do jogo. A marcar o gol histórico e mais discutido de que se tem notícia em todo o futebol brasileiro”.
No 29 de outubro de 1944, o estádio da Gávea era superlotado desde o meio-dia. Na enquete do Jornal do Brasil, 1.522 entrevistados esperavam ver Ademir fazer o gol do título, 1.218 pensavam mais em Pirillo quando 437 loucos, românticos, sabidos, sonhavam em um gol inesperado do Valido. Mas até os 86 minutos de jogo, tinha nada gol, não de Ademir, nem de Pirillo, muitos menos de Valido, que parecia fazer apenas número, sobrevindo em campo, dando a vida para o Flamengo. E chegou a mistica do Manto Sagrado, a glória eterna de Valido. No dia seguinte, podia se ler nas colunas de Globo: “Vevé cobrara uma falta de Rubens, praticada no próprio ponteiro esquerdo rubro-negro, tendo a defesa devolvido a pelota para a esquerda. Numa disputa entre Vevé e Djalma, o atacante improvisado em half fez novo foul no extrema rubro-negro. Vevé cobrou a penalidade com habilidade e a defesa rebateu para fora da área. Vevé recolheu a pelota, controlou-a e centrou sobre a área, chegando a bola ao lugar em que se encontrava Valido. O extrema platino saltou, valendo-se de sua estatura elevada, cabeceando para baixo. Barchetta atirou-se mas nada pôde fazer. Estava conquistado o único tento da partida, o gol que deu a vitória ao Flamengo. E também o tricampeonato”.
Testemunho de sorte e prestígio, o meia Zizinho lembrou no seu livre Mestre Ziza: “Quando a bola atingiu a rede vascaína, houve uma invasão de campo como eu nunca havia visto. Até os soldados que eram todos Flamengo, juntaram-se à torcida e o campo ficou totalmente tomado por aquela multidão que vibrava enlouquecida de alegria”. Os vascaínos reclamaram de uma falta de Valido sobre Argemiro e correram no dia seguinte aos cinemas para rever o lance, registrado pelo Jornal da Tela. O único ângulo não permitiu de colocar um fim à polêmica, exceto para o compositor flamenguista Ary Barroso: “Ele se escorou sim. E teria sido melhor ainda se estivesse impedido e feito com a mão…”.
Para Valido, isso não importava. No final do jogo, anunciou mais uma vez, agora de forma definitiva, sua aposentadoria: “A vida já me deu tudo de bom. Me aposento aqui mesmo”. Pela conquista, os jogadores receberam mais de 3 mil cruzeiros, mas como Valido tinha feito apenas dois jogos, recebeu 387 cruzeiros. “Profissionais com alma de amadores” manchetou com precisão o Jornal dos Sports. Com sua alma rubro-negra, Valido recebeu mais que dinheiro, como explicou seu companheiro Biguá: “A glória ficou para Valido. E valeu. O gringo era boa gente, amigão, e mais: também um flamengão desses que a gente tem prazer de ouvir, de ver torcer. E o Valido ainda tinha a seu favor o sangue rubro-negro. Uma raça brasileira, quase pura, misturada àquela técnica e malícia próprias dos argentinos”.
Valido corrigiu sua própria biografia, voltando aos campos, passando em cima dos vascaínos, oferecendo o tricampeonato, mudando a história do Flamengo. “Se o clube já era popular, com essa conquista conseguida com grande dose de heroísmo, simbolizado pela superação de Valido, passou a ser ainda mais. A partir daí, sobretudo, aumentou a mística da camisa rubro-negra de buscar as vitórias enfrentando as piores adversidades” escreveram Arturo Vaz, Paschoal Ambrósio Filho e Celso Júnior no livro 100 anos de bola, raça e paixão. Definitivamente aposentado, Valido ficou no Rio de Janeiro, onde morreu no 23 de fevereiro de 1998. Mas a data para lembrar é 29 de outubro de 1944, a ressurreição de Valido, a nova dimensão do Flamengo, heroico, dramático e tricampeão. “Para o Brasil, o tricampeonato é mais importante do que a Batalha de Stalingrado” escreveu com exatidão José Linso do Rego.
Para fechar a crônica, deixo o testemunho do próprio Valido, ao Roberto Assaf em 1994, que volta ao gol 50 anos depois, e magistralmente concluído: “Posso relembrar a história desse gol, que me fez entrar definitivamente para a história do meu clube de duas maneiras. Na primeira, eu digo que não adianta contar a verdade, porque os vascaínos preferem a mentira. Então, eu vou dizer: trepei mesmo no Argemiro para cabecear. Na segunda, explico que não posso deixar de elogiar o cruzamento do Vevé, que veio perfeito, tanto que só tive o trabalho de meter a cabeça na bola para tirá-la do Barqueta. Mas acredite: ela veio tão forte e pesada que fiquei com a testa roxa por 15 dias. E vou dizer: eu não estava me sentindo muito bem, pelo menos para jogar, mas aqueles eram outros tempos, a gente tinha sobretudo amor à camisa é eu não ia deixar uma chance daquelas passar. Além disso, os companheiros insistiram e o Flávio Costa acabou me escalando. Naquele dia, quem me ajudou foi Deus. Mas também devo tudo isso ao presidente José Bastos Padilha, o maior que o clube teve em todos os tempos, que me contratou. Aquele gol e o tricampeonato representaram um fecho de ouro para mim, pois desde a Argentina sempre sonhei em atuar no Brasil, onde só encontrei felicidade e glórias. Depois do jogo, tive uma crise nervosa tão grande que fui obrigado a sair do Rio para me recuperar. Muita emoção. Então, resolvi dar um adeus, aí, sim, definitivo, ao futebol. Mas olha, na verdade nunca consegui me desligar completamente do Flamengo”. Uma vez Flamengo, Flamengo além da morte.








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