Jogos eternos #289: Flamengo 2×0 Ujpest 1979

O início do Mundial de clubes se aproxima, entre empolgação e indiferença segundo os torcedores. Eu pessoalmente gosto do novo formato e estou ansioso para ver confrontos contra times de outros continentes, mesmo que agora os clubes europeus estão anos-luz na frente. Confrontos entre clubes europeus e sul-americanos existem desde quase sempre e a Europa não foi sempre o lugar onde se jogava o melhor futebol.

Hoje quase inexistentes, os jogos amistosos eram comuns décadas atrás e eram para os clubes a única possibilidade de enfrentar times de outros horizontes, além de encher os cofres. Na minha cidade amada de Paris, o Santos de Pelé brilhou e permitiu aos parisienses de ver uma coisa nunca vista antes. Precursor nas excursões no Brasil, na América do Sul e no mundo inteiro, Flamengo disputou a segunda edição do Torneio de Paris, em 1958, ano de glória para o futebol brasileiro. Na semifinal, foi eliminado após um empate e… um sorteio fatal. Conquistou o terceiro lugar contra Ujpest, time da Hungria.

Flamengo voltou a jogar contra Ujpest, vinte anos depois, num outro torneio prestigioso na Europa. A Espanha tinha vários torneios no final da temporada europeia, os mais importantes o Troféu Teresa Herrera na Corunha e o Troféu Ramón de Carranza em Cádis. O torneio convidava times importantes da Espanha, de outros países europeus e da Argentina, Uruguai e Brasil. Até 1979, Palmeiras foi o único brasileiro a conquistar o torneio, alias era tricampeão. O próprio Flamengo, em 1965, mas também Vasco, Botafogo, Santos e o Corinthians nunca conseguiram fazer melhor que um terceiro lugar. Benfica, duas vezes, era o único time além de Palmeiras que conseguiu tirar o título dos times espanhóis.

Em 1979, entre duas fases de um exaustante campeonato carioca, Flamengo foi na Europa para disputar o Troféu Ramón de Carranza. A estreia era uma “final antecipada” contra Barcelona, campeão da Recopa de Europa três meses antes. O time catalão tinha um trio de ouro com Rexach, Krankl e a nova contratação, o dinamarquês Simonsen, Bola de ouro em 1977. No estádio Carranza, com apenas 2 minutos de jogo, Júlio César Uri Geller entortou vários adversários e abriu o placar. No final do primeiro tempo, o juiz recusou um pênalti para Flamengo e concedeu uma falta perto da grande área. Destino igual para Zico, que mesmo exausto depois de um jogo com a Seleção brasileira no Monumental de Buenos Aires, achou a rede do Barcelona. E o destino para Flamengo, depois de ser ovacionado de pé pelo estádio, foi a final.

Para a Rádio Tupi, o jornalista Iata Anderson lembrou: “O super-Barcelona não sabe até hoje a cor da bola. Foi uma exibição de gala. Júlio César Uri Geller estava numa tarde infernal. Deixou os espanhóis encantados e assustados. Afinal, quem era aquele ponta que nem jogava pela Seleção e acabara de destruir uma potência da Europa, símbolo maior do futebol catalão? Carpegiani e Zico se encarregaram do resto. Que partida do Mengão”. Vale também citar a imprensa espanhola maravilhada, como o jornal madrilenho As que escreveu: “Um futebol de outra galáxia, não conhecido por aqui. Se tivesse mais sorte e precisão nas conclusões, o Flamengo teria imposto ao Barcelona uma goleada escandalosa e histórica”.

A Espanha estava ansiosa para ver de novo o Flamengo em campo, agora na final, contra o Ujpest, que eliminou o dono da casa Cádiz na semifinal. No 26 de agosto de 1979, o técnico Cláudio Coutinho escalou Flamengo assim: Cantarele: Toninho Baiano, Manguito, Nelson, Júnior; Andrade, Carpegiani, Zico; Tita, Júlio César, Cláudio Adão. O técnico do time húngaro, que assistiu ao primeiro jogo do Flamengo, colocou três homens para a marcação do driblador Júlio César. Cláudio Coutinho foi bem mais esperto, com uma troca inusitada de números das camisas. Lembra Zico no livro Zico 50 anos de futebol de Roberto Assaf e Roger Garcia: “Contra o time da Hungria teve a história dos negros. No vestiário, o Coutinho disse: ‘Para os húngaros, os negros são todos iguais’. Eles marcavam homem a homem, então o Coutinho pegou o Toninho e botou nele a camisa nove, pegou o Cláudio Adão e pôs nele a dois, a oito no Manguito, a quatro no Andrade… Foi tudo estudado. Nós combinamos: o Adão dá a saída para mim, eu dou ao Carpegiani, o Júnior entra aqui, o Carpegiani, o Júnior entra aqui, o Carpegiani dá e o Adão de movimentava para que eu possa entrar pelo meio. Pois bem. Deu a saída, o Adão tocou para mim, e dei para o Carpegiani e parti. O Carpegiani segurou um pouquinho, o Júnior entrou, ele meteu por cima do Júnior, o Adão se movimentou, o Júnior deu para mim e eu fiz o gol. O cara que era para marcar o Adão estava com o Toninho lá na lateral-direita e o outro com o Adão, e por aí vai”.

Com sua humildade de sempre, Zico esqueceu de dizer que o gol foi golaço tanto na construção do que na finalização, de cobertura. Os húngaros nem tinham tocado na bola e Flamengo já estava na frente no placar, com apenas 9 segundos de jogo, talvez um recorde na história do Flamengo. Na metade do segundo tempo, Zico fez outro gol, Flamengo venceu 2×0 e podia levantar, ou ao menos segurar, a impressionante taça, de 1,5 metro de altura e 65 quilos. Na volta para o Brasil, o time do Flamengo compartilhou o voo com exilados de volta ao Brasil depois da anistia e desembarcou no Rio de Janeiro com festa, ao som de Apesar de você, de Chico Buarque. Teve até a fundação da “Flanistia”, era um momento de alegria para os amantes da liberdade e do futebol brasileiro, que mais uma vez brilhou na Europa. Para fechar a crônica, deixo o comentário do Diaro de Cádiz, que em poucas palavras já diz tudo, após o jogo contra Barcelona: “O Flamengo fez com os pés o que os Globetrotters fazem com as mãos”.

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O autor

Marcelin Chamoin, francês de nascimento, carioca de setembro de 2022 até julho de 2023. Brasileiro no coração, flamenguista na alma.

“Uma vez Flamengo, Flamengo além da morte”