Flamengo tem uma de suas semanas mais importantes da temporada até aqui com dois jogos imperdíveis: o jogo de ida das quartas de final da Libertadores contra Estudiantes na quinta, e o Clássico dos Milhões contra Vasco no domingo. O jogo contra Vasco traz mais confiança, já que Flamengo está invicto há 11 jogos contra o velho rival.

Flamengo até perdeu apenas dois dos últimos 33 jogos contra Vasco desde 2017, mas nem sempre foi o caso, até já aconteceu o contrário. No final dos anos 1940, Vasco era a base da seleção brasileira que chegou ao vice-campeonato mundial em 1950, era o Expresso da Vitória, que não perdia contra Flamengo. Entre 1945 e 1951, Vasco ficou invicto contra o Flamengo durante 20 jogos, com 15 vitórias e 5 empates. Um jejum interminável, que precisava acabar o mais rápido possível.

Flamengo começou a mudar com a contratação de Rubens, um ídolo no Flamengo e no Francêsguista, um velho alvo da diretoria rubro-negra apesar da juventude do jogador. Escreveram Paschoal Ambrósio Filho, Arturo Vaz e Celso Júnior no livro 100 anos de bola, raça e paixão, sobre Rubens: “Foi visto pela primeira vez quando, convocado para a seleção paulista, disputou o Campeonato Brasileiro de Seleções em 1950, no Rio de Janeiro. Na ocasião, Rubens encheu os olhos da diretoria do Flamengo. O seu futebol requintado, eficiente e de incessante movimentação se encaixaria perfeitamente no quadro rubro-negro que acabara de perder Zizinho. Mas foi a Portuguesa de Desportos que acabou contratando o craque. Os rubro-negros não se conformaram e só sossegaram quando, um ano depois, em 1951, conseguiram trazê-lo para o futebol carioca”. Finalmente, em 11 de setembro de 1951, o Jornal dos Sports anunciou: “Definitivo: Rubens será do Flamengo”.

No primeiro treino com o novo time na Gávea, Rubens já conquistou os companheiros, o autoritário técnico Flávio Costa, também os torcedores e os jornalistas presentes no treino. Ainda o Jornal dos Sports, na edição do 12 de setembro de 1951: “Com Rubens confirmado, o clima na Gávea naquele 12 de setembro era de dia de jogo. Nas imediações do estádio, a movimentação de torcedores era intensa. Os ônibus que faziam ponto final nas imediações do clube chegavam lotados. Era o povo rubro-negro querendo assistir ao primeiro treino do novo craque. Quando pisou no gramado, Rubens sentiu o que lhe esperava. Os aplausos e gritos de incentivo foram retribuídos com uma movimentação que fez o técnico Flávio Costa não ter dúvida em escalá-lo para o clássico com o Vasco”.

Rubens já tinha seu lugar no meio do campo do Flamengo para o jogo contra o poderoso Vasco. O time cruzmaltino era invicto contra Flamengo desde 1945, era o primeiro campeão carioca da Era Maracanã, já líder do campeonato carioca de 1951 com 4 vitórias em 4 jogos, a última com autoridade sobre Fluminense. Por sua vez, Flamengo tinha vencido apenas dois de seus 5 jogos do campeonato e vinha de uma derrota contra Bangu. Era o Clássico dos Milhões que valia ainda mais. Escreveu o Jornal dos Sports no dia do jogo: “Mais uma vez, estarão em confronto, hoje, dois tradicionais adversários do futebol carioca que contam com o maior apoio popular. Não desmentindo a tradição, a peleja que hoje travarão rubro-negros e vascaínos se reveste de grande sensação. Classificado como clássico dos recordes, em relação à renda, não será impossível que nova marca seja batida […] Além das atrações naturais da peleja, teremos a estreia de Rubens, um valor positivo do futebol paulista, que, adquirido pelo Flamengo, mostrou no treino realizado na Gávea suas boas qualidades”. O Jornal dos Sports acertou em cheio, com 120.485 presentes no Maracanã, o estádio marcou um novo recorde para um jogo de clubes. Faltava a estreia de Rubens.

Em 16 de setembro de 1951, o técnico Flávio Costa escalou Flamengo assim: Garcia; Biguá, Pavão; Modesto Bria, Dequinha, Newton Canegal; Nestor, Rubens, Adãozinho, Índio, Esquerdinha. E no Maracanã, já cheio, ainda jovem, pareceu que o tabu de 6 anos e 20 jogos ia ser mantido. Com apenas 10 minutos de jogo, Maneca aproveitou de uma falha do goleiro paraguaio Garcia e abriu o placar para Vasco. Mas agora Flamengo era diferente, tinha Rubens no meio de campo. Dez minutos depois do gol, Esquerdinha, que fazia jus ao apelido, cruzou da esquerda, Barbosa também falhou, e Adãozinho, sozinho, empatou.

Rubens cresceu no jogo, e com ele o Flamengo cresceu. Vasco, com todos seus craques antigos, se apequenou. E com hora de jogo, num contra-ataque mortal, Índio matou o Vasco, fez o gol da virada, quem sabe do fim do tabu. Teve um último susto no final do jogo, faltando três minutos, Edmur empatou mas o gol foi bem anulado por impedimento. Depois de invasão no campo e parada de 10 minutos, o juiz finalmente apitou o final do jogo, o fim do martírio rubro-negro. Enfim, depois de 6 anos, 5 meses e 8 dias de interminável espera, Flamengo era o dono do Clássico dos Milhões. No Maracanã, a sensação era de um título. “A quebra da escrita tão cuidadosamente mantida durante sete anos foi muito mais sentida pelos cruzmaltinos do que a perda da liderança” escreveu o Globo.

Deixo aqui um trecho inteiro do livro já mencionado 100 anos de bola, raça e paixão: “Para a alegria dos rubro-negros, num jogo extremamente disputado, finalmente, a longa escrita que perdurava a eternidade de sete anos seria quebrada. E melhor: com uma exibição de gala do estreante Rubens. Sem, em momento algum, sentir o peso da camisa rubro-negra, ele foi um dos melhores em campo na vitória por 2 a 1, com gols de Adãozinho e Índio. O estilo vistoso com que se apresentou, em breve, seria definido como um futebol de quem era, de fato, um ‘doutor da bola’. Após o jogo, o vestiário, sem as barreiras impostas pelos clubes nos dias atuais, foi invadido por uma euforia incontrolável. Jogadores, dirigentes e torcedores se confraternizavam como se um título houvesse sido conquistado. O treinador Flávio Costa e o presidente Gilberto Cardoso se abraçavam demoradamente. O escritor José Lins do Rego, fanático torcedor do Flamengo, era só alegria. Exultante, comemorava o fim do jejum de vitórias sobre o rival”. Acrescenta Edilberto Coutinho no livro Nação rubro-negra: “O dr. Rúbis e o Flamengo pareciam predestinados. Feitos um para o outro. Viu-se que o casamento dava certo, logo no primeiro jogo. De cara, Rubens vai ajudar a desfazer uma escrita de derrotas e empates, que vinha perseguindo o Mengão”.

Rubens, sem fazer um gol – mandou de falta uma bola no travessão, fez uma das estreias mais marcantes de um jogador do Flamengo, ao lado de Bruno Henrique contra Botafogo em 2019. No primeiro jogo, o futuro, quem diria já ídolo, conquistou as massas. Conquistou o técnico Flávio Costa. “Tendo feito somente dois treinos conosco, ele já parecia um veterano do time, na estreia contra o Vasco” julgou Flávio Costa, que falará anos depois: “Depois de Zizinho (é o melhor elogio que posso fazer ao Rubens), foi o maior armador que o Flamengo teve. Me congratulo de ter observado as suas mais notáveis qualidades logo que o vi jogando pela Seleção Paulista de Novos”. Rubens conquistou os companheiros, como Evaristo de Macedo: “Ele era um jogador incrível, um doutor mesmo em matéria de futebol. Suas qualidades eram inúmeras. Protegia a bola como ninguém, driblava fácil, lançava bem e tinha um chute de uma precisão fora do comum. Na posição dele, na época, talvez nem o Didi fosse melhor, pois Rubens chegava mais na área para concluir”.

Rubens conquistou a imprensa. “O mérito, de fato é de direito, deve ficar com o jovem Rubens Josué, que com seus 22 anos e 1,64 m, de tamanho ao comprido, tomou conta do campo e jogou de verde numa equipe amadurecida e perante uma plateia exigente, como o mais experimentado dos veteranos” escreveu Geraldo Romualdo da Silva. Para o Esporte Ilustrado: “Rubens fez uma estreia auspiciosa. Jogando atrás, na armação do jogo, cumpriu aí um trabalho exato, perfeitíssimo, o que mais se torna notável quando lembramos que era esta a sua segunda oportunidade entre os companheiros. A primeira foi no treino, a segunda em pleno jogo. Grande aquisição do Flamengo”. Presente no Maracanã, o jornalista Luiz Mendes lembrou mais de 50 anos depois: “O Rubens vinha da Portuguesa de Desportos cercado de muitas expectativas. E chegou realmente como uma grande esperança para o Flamengo. Ele jogava realmente um ótimo futebol. Eu era narrador da Rádio Globo, no Rio, e lembro que o Rubens fez uma partida espetacular […] Aliás, como acontece com frequência com o Flamengo, no dia seguinte ele começou a virar ídolo da massa. Pudera. Além de habilidoso, vez por outra marcava gols e ainda batia faltas com precisão. Nesse jogo, por exemplo, me recordo bem, mandou uma cobrança na trave. A torcida logo passou a chamá-lo de Doutor Rúbis. Doutor porque se dizia que era um sujeito diplomado em futebol. E Rúbis porque era mais fácil para o povão falar assim”.

Foi a vitória de Rubens, além do triunfo sobre Vasco, além dos elogios do técnico, do time, da imprensa, Rubens conquistou o mais precioso: a Nação. “ A categoria e o estilo lhe conferiram o grau de doutor; o jeito de moleque e a malandragem lhe deram o apelido de Rúbis. Doutor Rúbis, como passou a ser chamado com carinho pela torcida. Foi, nos anos seguintes, ao lado de Dequinha – com quem se entendia por música — uma das figuras principais do segundo tricampeonato do Flamengo e um dos nomes mais populares da cidade. Futebol de doutor, apelido de malandro: Doutor Rúbis! A torcida jamais o esqueceu” escreveu Fernando Calazans.

Apesar da estreia brilhante, Rubens ficou bem tranquilo sobre a avaliação do jogo contra Vasco: “Em São Paulo, joga-se mais duro que aqui”. E Rubens, que fumava e bebia muito, revelou o segredo: “Jogo futebol com a cabeça, não preciso tanto das pernas”.

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O autor

Marcelin Chamoin, francês de nascimento, carioca de setembro de 2022 até julho de 2023. Brasileiro no coração, flamenguista na alma.

“Uma vez Flamengo, Flamengo além da morte”