Ídolos #47: Mozer

Ídolos #47: Mozer

Eu me tornei flamenguista no dia em que nasci, mas sendo um menino francês, comecei a acompanhar o futebol europeu, conheci a história do futebol com fontes francesas. Assim, comecei a conhecer ídolos do Flamengo já do lado europeu, alguns eternizados aqui, outros grandes zagueiros do Flamengo, como Júnior Baiano, Gamarra ou Juan. E Mozer, apesar de nunca o ter visto jogar – saiu da França no ano de meu nascimento, foi um deles.

Para o menino francês que eu era, Mozer era ídolo do Olympique de Marselha. Meu padrinho, torcedor roxo do Marselha, me falava de Mozer, que já me fazia vibrar só para ser brasileiro. O padrinho falava que era um zagueiro durão mas técnico ao mesmo tempo, jogava sujo nos tornozelos do atacante, e saía limpo com a bola nos pés. Também falava que Mozer teria merecido conquistar a Liga dos campeões, saiu do Marselha um ano antes do clube conquistar a Taça. Então para mim, Mozer era ídolo do Olympique, como era ídolo do Benfica para um menino português.

Mas a unanimidade é no Flamengo, onde começou a carreira, onde se consagrou como ídolo. E até hoje um dos maiores zagueiros da história do clube. Em 2025, a Revista Placar elegeu o time dos sonhos dos clubes brasileiros. Como foi o caso nos últimos enquetes, em 1994 e 2006, Mozer foi eleito no time ideal do Flamengo, ao lado de Aldair, outro ídolo rubro-negro que conheci na França. Em 2021, os leitores do excelente site Imortaisdofutebol também elegeram um time dos sonhos do Flamengo. Com justiça, Mozer foi o zagueiro mais votado, na frente de Aldair e Domingos.

José Carlos Nepomuceno Mozer nasceu em 19 de setembro de 1960, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, e cresceu em Bangu. Ainda pequeno, jogou futebol de campo e futsal em várias posições, para já se tornar um jogador especial. Escreveu José Maria Zuchelli na sua biografia Mozer, a história de um campeão: “Era o segundo ponta de lança do time de Campo Grande e defesa de beque parado no futebol de salão do Cassino Bangu. Era a mistura de raça e técnica, ataque e defesa, e isso dei ao jovem Mozer a possibilidade de combater em duas frentes: defendia e já saía para atacar, o que permitia que ele tivesse um nível elevado de jogo e contava com a técnica da bola nos pés”.

Com 13 anos, foi convidado pelo Botafogo para um torneio retransmitido na televisão. Para driblar a vigilância dos dirigentes de Campo Grande, se pintou o cabelo de loiro. Acabou tendo o efeito contrário. Além do futebol diferente, o visual particular chamou a atenção dos dirigentes do clube, que reconheceram Mozer. Assinou com o Botafogo, mas não se tornou torcedor do clube. Já era flamenguista, inclusive sofrendo demais com a goleada 6×0 do Botafogo sobre o Mengão em 1972, jogo que terá vingança com o próprio Mozer em campo do lado rubro-negro. No General Severiano, Mozer acordava às 4:30 da manhã para chegar aos treinos, jogava como ponta de lança e ponta-direita. Não gostou da posição e conseguiu um teste com o Flamengo. Foi aprovado, agora jogava no time de coração.

A mistura incomum das qualidades de Mozer trazia um dilema: em qual posição em campo devia jogar? Tinha a raça de um zagueiro ou um volante, a habilidade de um ponta de lança, a velocidade de um ponta. Modesto Bria, ídolo do Flamengo e coordenador da base do Flamengo, sugeriu que Mozer devia jogar como centroavante ou zagueiro. Ainda José Maria Zuchelli: “A primeira foi muito bem-aceita pelo jovem, pois exigia características que ele dominava que eram o tamanho, a impulsão, o domínio e o passe. No entanto, a segunda, a de zagueiro, era detestada pelo jovem atleta. Mozer lembra bem de ouvir do Sr. Modesto a seguinte frase: ‘você vai jogar de zagueiro, e te falo mais, vai entrar no time principal e nunca mais vai sair’”.

Mozer começou a treinar com os profissionais e viu de perto Zico, maior exemplo de profissional. Explica Zuchelli: “Ao sair do vestiário viu Zico treinando sozinho no campo, ele, as bolas e a velha camisa que pendurava nas gavetas. Treinava cobrança de falta, incessantemente. Ao olhar o treino, voltou para o vestiário e ficou ali, observando o treino e esperando para quando ele saísse de campo. Era o aprendiz vendo o mestre, observando o atleta profissional treinar debaixo de um sol de quase 40 ºC, ao meio-dia. Mozer sentiu certa vergonha por sua atitude de ir embora e, naquele momento, percebeu o porquê de determinadas pessoas fazerem a diferença, porque elas são o diferencial do time […] Mozer se condicionou a treinar, treinar e treinar, cada vez mais. Treinava tanto o ataque como a defesa, gostava de cabecear e imprimia grande velocidade nas jogadas”. Mozer pegou também o mau exemplo do irmão mais velho, talentoso mas que perdeu seu futebol nas noites. Mozer treinou muito, em campo, no ginásio, até na praia, três vezes por semana com Adílio. “O Mozer sempre foi uma pessoa séria na maneira de treinar. Ele treinava do mesmo jeito que jogava” fala o eterno camisa 8.

Dono de forte personalidade, Mozer estreou no Flamengo antes de completar 20 anos, num Fla-Flu em 1980, saindo com a vitória e elogios da torcida. O primeiro gol saiu em 1981, ano de ouro do Flamengo. Mozer já era uma peça-chave do time que tinha só estrelas, só craques. Mozer defendia no ar e no chão, lutando para cada bola como se fosse uma questão de vida ou morte. Jogando no lado esquerdo da zaga, cobria os avanços de Júnior. E também ele mesmo apoiava os ataques do Flamengo, no jogo aéreo, com uma impulsão absurda, no jogo no chão, com habilidade bola nos pés. E até podia ajudar os companheiros no ataque, ficando na defesa, perto do atacante que marcava. Explica Adílio: “Várias vezes em campo aconteceu de ter um jogador desleal, geralmente o zagueiro do time adversário. Nós não falávamos nada e nem reclamávamos. Só olhávamos para ele e sabíamos que Mozer agiria na hora certa. Aconteceu muitas vezes do Mozer chegar para o centroavante e dizer: ‘avisa os caras lá que estão batendo nos meus companheiros que você vai apanhar aqui também’”.

Mozer jogou tão bem que Rondinelli, o Deus da Raça, aliás um apelido que também poderia ter caído bem no Mozer, percebeu que tinha perdido espaço no time e saiu do Flamengo nos meados de 1981. E Flamengo ganhou tudo, com Mozer quase sempre titular, vencendo a concorrência de Luís Pereira e Figueiredo, fazendo dupla com Marinho. Foi o caso nos três jogos da final da Copa Libertadores, nos três jogos da final do campeonato carioca, no eterno Mundial contra Liverpool. Quando se fala do Flamengo 1981, sempre se fala de Zico, do meio de campo de ouro com Andrade e Adílio, dos laterais ídolos Leandro e Júnior, dos gols do artilheiro das decisões Nunes. Mas não podemos esquecer de Mozer, que com sua raça e técnica, sua inteligência e folego, permitiu ao time ter ainda mais armas ofensivas, de ser um dos maiores times da história do futebol brasileiro. Inclusive, ficou marcado na história o passe de Mozer para Zico, que achou Nunes na profundidade para abrir o placar contra Liverpool.

Aos 21 anos de idade, Mozer já tinha ganho quase tudo com o Flamengo, ainda faltava o Brasileirão, não participou da campanha vitoriosa de 1980. Em 1982, foi titular para o bicampeonato, sendo o herói do jogo contra o Atlético Mineiro. No Maracanã, o Atlético Mineiro abriu o placar com um gol de Reinaldo e Flamengo ficou com um a menos com a expulsão de Figueiredo, ainda no primeiro tempo. Nos 15 minutos finais, num falta de Júnior, Mozer subiu no ar e cabeceou, Adílio chegou e empatou. E logo depois, num escanteio de Zico no canto direito, Mozer correu, voou, virou. Era o gol de mais uma virada do Mengo no Brasileirão de 1982. E o gol, pelo escanteio de Zico, pela corrida de Mozer, pela cabeçada até pela comemoração, só faz lembrar o gol de Rondinelli contra Vasco na decisão do campeonato carioca 1978. É quase igual. O Deus da Raça e seu herdeiro.

Uma lesão tirou Mozer da decisão do Brasileirão de 1982, vencida contra Grêmio. Também não foi convocado para a Copa de 1982. Em 1983, de novo fez um jogo marcante no Brasileirão, fazendo um gol na goleada 5×1 contra o Corinthians, de novo de cabeceio num escanteio de Zico. E de novo, Mozer faltou a decisão do campeonato por causa de lesão. Disputou o jogo de ida no Morumbi, mas perdeu o jogo de volta no Maracanã, sendo outra vez substituído pelo Figueiredo. Logo depois, Mozer fez seu primeiro jogo com a Seleção brasileira, estreando com vitória contra o Chile. Titular na Copa América de 1983, foi destaque na semifinal no Paraguai quando no final do jogo, driblou dois jogadores com a facilidade desconcertante de um ponta-esquerda e cruzou para Éder fazer o gol do empate. Na final, porém, o Uruguai levou o melhor.

Mozer não jogou no 3×0 contra Santos na final do Brasileirão de 1983, mas foi o carrasco do Peixe no ano seguinte. No jogo de ida na Copa Libertadores, fez dois gols, dois golaços, o primeiro de voleio, o segundo com dribles numa velocidade incomum para um zagueiro. Mozer era muito mais que jogo aéreo e carrinhos nos tornozelos adversários. Na volta, uma goleada 5×0 no Morumbi, Mozer fez outro gol, agora sim de cabeçada caindo no chão, de peixinho num cruzamento do Peixe Frito Leandro, para afundar o Peixe. E apenas dois dias depois, teve outro Flamengo x Santos, agora no Brasileirão, teve outro gol de Mozer, agora de falta. Mozer era mais que um zagueiro completo, era um jogador de futebol completo. “Zagueiro clássico, habilidoso no trato com a bola, também era capaz de dar chutões e, quando necessário, alguma pancada. Como se não bastasse, ainda se tornava uma ameaça quando partia em direção ao ataque e também no jogo aéreo, o que lhe possibilitou a marcação de muitos gols” escreveram Roberto Assaf e Clóvis Martins no Almanaque do Flamengo.

Além dos gols contra Santos, Mozer fez outros golaços na temporada de 1984, a começar contra Operário no Brasileirão. Numa falta cobrada por João Paulo – Flamengo era órfão de Zico, Mozer subiu no céu carioca, cabeceou e encobriu o goleiro. Flamengo não tinha Zico, mas abriu espaço para outros batedores num time que tinha só craques. Contra o Internacional, Mozer cobrou uma falta, bateu leve, colocado, bem na gaveta. Golaço. Agora na estreia do Brasileirão de 1986, contra Paysandu, Mozer fez outro golaço de falta, agora uma bomba com força máxima para matar o goleiro e a rede. Detalhe, era o segundo gol do dia de Mozer, já tinha feito um de cabeceio num escanteio. Um craque completo, que podia fazer gol de jeitos diferentes, até de pênalti, como fez contra o Corinthians no Brasileirão de 1985.

Intocável na Seleção, Mozer participou de 18 jogos seguidos como titular entre 1983 e 1985. Também foi titular para a preparação da Copa, mas se machucou no joelho e acabou cortado. No Flamengo, sua ausência deu espaço a mais um zagueirão da casa, Aldair, revelação do campeonato carioca conquistado em cima do Vasco de Romário. Mozer fez sua última temporada no Mengão em 1987, o último gol saiu contra Olaria em maio, e o último jogo um mês depois, um amistoso no Pernambuco.

Mozer não participou na Copa União de 1987 que teria merecido vencer. No total, foram 292 jogos, 21 gols, e muitos gestos, alguns de classe, outros de violência, tanto para defender que no ataque, sempre com orgulho de vestir o Manto Sagrado. “No Flamengo, era a força, mas também a técnica. Capaz de jogadas ríspidas e, no mesmo lance, de sair de cabeça erguida, com a bola grudada no pé direito. Jogava igualmente do lado direito ou esquerdo da defesa, o que despertou o interesse dos clubes estrangeiros, a partir do momento em que o mercado internacional ficou escancarado, na primeira metade dos anos 80” escreveu Paulo Vinícius Coelho no livro Os 100 melhores jogadores brasileiros de todos os tempos.

Como muitos jogadores brasileiros da época, o destino de Mozer foi o Portugal, no Benfica, onde conquistou o campeonato português em 1989. Neste ano, seguiu na minha França e assinou com o Olympique de Marselha. Em três temporadas, conquistou três vezes o campeonato nacional, ganhou a admiração e o respeito dos torcedores e inspirou medo aos adversários. Perdeu em 1991 a final da Liga dos campeões que teria merecido ganhar. Inclusive fez o pênalti dele na disputada de penalidades, com calma e categoria, mas não foi suficiente para o time francês. Marselha conquistou o título europeu em 1993, mas Mozer já tinha voltado no Benfica, onde conquistou mais um campeonato português, em 1994. Assim, depois de ser ídolo no Flamengo, conseguia mais idolatria em dois outros grandes clubes da Europa.

Com a Seleção, foi titular nos dois primeiros jogos da Copa de 1990. Foi suspenso para o terceiro jogo e ficou no banco nas oitavas de final, quando o Brasil foi eliminado pela Argentina de Maradona. Em 1994, como aconteceu em 1986, foi cortado pouco antes da Copa e esta vez se mostrou magoado pela forma que aconteceu. Assim, seu último jogo com a Seleção aconteceu na França onde brilhou, por ironia contra o Paris Saint-Germain, reforçado por alguns jogadores do Bordeaux, dois rivais do Marselha. Com a Seleção brasileira, foram 37 jogos entre 1983 e 1994. Poderia ter sido mais jogos sem uma concorrência absurda. Romário não tem dúvidas em colocar Mozer como um dos melhores zagueiros que enfrentou, ao lado de Ricardo Gomes e Ricardo Rocha.

Mozer ainda foi jogar no Japão, cedendo ao apelo de Zico. Escreveu José Maria Zuchelli no livro Mozer, a história de um campeão: “Mozer falou que havia parado de jogar, mas ouviu do amigo o pedido de que jogasse mais dois anos, depois estaria tudo bem. A relação entre Mozer e Zico sempre foi como de irmãos e Mozer nunca negaria um pedido do amigo. Foi para o Japão e sentiu grande felicidade em fazê-lo. Depois de um ano no time japonês foi campeão nacional. Não conseguiu jogar os dois anos por conta da dor no joelho que o atrapalhava ainda mais. Juntamente com outros jogadores, como Leonardo, Jorginho e Mazinho foi campeão nacional mais uma vez e encerrou a carreira com chave de ouro, junto ao amigo Zico”.

Assim acabava a trajetória de um jogador que combinou com muitos poucos a raça e a técnica, que conquistou três continentes, que foi ídolo no Portugal, na França e no Japão. E claro no Flamengo. Para fechar, tive a alegria e o orgulho de encontrar Mozer, na sede do clube, para a apresentação do livro de Zuchelli. Foi rápido, mas tive tempo de dizer que eu era francês. Trouxe para ele uma saudade da França. E para mim, mesmo sem assistir ao vivo nesta incarnação, a saudade do inesquecível Flamengo de 1981, de quem Mozer foi uma peça importantíssima.

Deixe um comentário

O autor

Marcelin Chamoin, francês de nascimento, carioca de setembro de 2022 até julho de 2023. Brasileiro no coração, flamenguista na alma.

“Uma vez Flamengo, Flamengo além da morte”