Ainda sem jogo do Flamengo hoje, eu vou de outro jogo aniversário, mais antigo ainda do que da última crônica. Desde o final da década 30, a cena do futebol carioca foi dominada pela dupla Fla-Flu. Fluminense conquistou o tricampeonato entre 1936 e 1938, Flamengo sempre na vice-colocação, e o rubro-negro finalmente venceu o título em 1939. Fluminense respondeu com o bicampeonato 1940-1941. E em 1942, Flamengo colocou um fim a Era Leônidas, com a saída de seu maior craque em campo, maior ídolo na arquibancada.
Flamengo sentiu a perda de Leônidas no início do campeonato carioca, começando de modo bem morno: uma vitória, três empates, uma derrota. Se recuperou de forma exuberante, concedeu apenas um empate no segundo turno e ganhou todos os jogos no terceiro turno, aplicando várias goleadas: 4×1 Canto do Rio, 4×0 Botafogo, 2×1 Vasco, 4×1 Madureira, 8×5 America, 7×0 Bonsucesso, 3×0 Bangu, 4×0 São Cristóvão. Assim, chegou para a última rodada precisando apenas de um empate para ser campeão. E o adversário era justamente Fluminense.
Nesta hora, Fluminense já estava fora do título e apenas Botafogo podia impedir a glória do rubro-negro. Os laços de amizade entre os jogadores da dupla Fla-Flu anunciavam um jogo fácil para o Mengo. Explica Zizinho, o maior craque da época, na sua autobiografia Mestre Ziza: “Todos nós, jogadores do Flamengo, tínhamos certeza de que os jogadores do Fluminense nos preferiam, aos do Botafogo, para campeões. O Fla-Flu que se aproximava ruidosamente tinha, para os torcedores, cara de marmelada, pela amizade que reinava entre os jogadores da famosa dupla. Após cada partida, quem quisesse ver esses jogadores bastava ir a uma churrascaria da época, junto ao Santos Dumont, onde todos se reuniam”.
Porém, os dirigentes do Fluminense não viam isso de bom olho. Continua Zizinho: “Na véspera da partida, a diretoria reuniu os jogadores e os convenceu de que o Fla-Flu não era brincadeira e esperavam que os profissionais do Fluminense soubessem cumprir com os seus deveres em campo. E ao chegar o momento do jogo, tão esperado por nós, vimos que ia se travar em Laranjeiras uma das mais difíceis partidas do campeonato”. Era o Fla-Flu, o Fla-Flu, mesmo valendo nada, sempre vale. Ainda mais para uma decisão, apesar de apenas um time lutar para a taça. Aliás, os torcedores tricolores, no caso contrário, provavelmente chamariam isso de final. Não foi, mas foi Fla-Flu, basta isso.
E não resisto de citar mais uma vez o gênio Nelson Rodrigues falando do Fla-Flu, já na Era Maracanã: “Hoje, nos grandes jogos, o Estádio Mário Filho é inundado pela multidão rubro negra. O Flamengo tornou-se uma força da natureza e, repito, o Flamengo venta, chove, troveja, relampeja. Eis o pergunto: – Os gatos pingados que se reuniram, numa salinha, imaginavam as potencialidades que estavam liberando? Há um parentesco óbvio entre o Fluminense e o Flamengo. E como este se gerou no ressentimento, eu diria que os dois são os irmãos Karamazov do futebol brasileiro”.
E para entender o Fla-Flu de 1942, precisa voltar a um passado ainda mais distante. Em 1927, o baiano Jayme de Carvalho se radicalizou no Rio de Janeiro. Assistiu a um jogo do Fluminense, gostou e pediu para visitar a sede, a aristocrática Álvaro Chaves. Homem do povo, foi duramente recusado pelo clube da elite carioca. Não se assustou, literalmente atravessou a rua e chegou na rua Paissandu, na sede do Flamengo. Foi acolhido, quem diria adotado. “No relampejar de poucos segundos, nascia uma paixão” escreveu Roberto Sander no seu excelente livro Anos 40: viagem à década sem Copa. E lembra as escritas sagradas de Nelson Rodrigues, Flamengo venta, chove, troveja, relampeja.
E finalmente em 1942, com a ajuda do amigo e vizinho Miguel, Jayme pegou uma faixa de morim e escreveu: “Avante, Flamengo”. Com alguns amigos – fontes falam de meia-dúzia a vintena de pessoas, a pequena multidão chegou com instrumentos e bateria nas arquibancadas das Laranjeiras, onde Jayme havia sido recusado 15 anos antes. Antes do jogo, Jayme e Miguel foram ao campo com a faixa “Avante, Flamengo” e foram aplaudidos pelos jogadores do Flamengo e até pelos torcedores do Fluminense. E Flamengo começou a vencer o Fla-Flu ali, antes mesmo do apito inicial.
Em 11 de outubro de 1942, para o Fla-Flu decisivo e já eterno, o técnico Flavio Costa escalou Flamengo assim: Jurandir; Domingos, Newton Canegal; Biguá, Volante, Jayme de Almeida; Zizinho, Valido, Nandinho, Vevé, Pirillo. A banda de Jayme, ainda sem nome, tocou músicas, do hino do clube até marchinhas do carnaval. E parava nunca, mesmo quando Nandinho se chocou com o próprio companheiro Pirillo e se machucou. Nandinho só ficou em campo porque as substituições não eram permitidas, mas fez apenas número em campo. O Fla-Flu se complicava.
Mas Flamengo tinha a banda de Jayme na arquibancada e o gênio-operário Zizinho em campo. Aos 21 minutos de jogo, Pirillo, o substituto de Leônidas e que um dia falou “É fácil ser artilheiro se ao nosso lado está um Zizinho”, chegou e abriu o placar, fazendo seu 21.o gol do campeonato. O Fla-Flu se abria para o Flamengo, e o grupo de Jayme tocava mais forte, ao ponto de incomodar os jogadores do Fluminense. O goleiro Batatais foi reclamar com o juiz Jose Pereira Peixoto, mas de nada serviu. Era tarde demais para reclamar, os tempos agora eram outros, a arquibancada também, e quem tinha mais raça era o Flamengo.
Porém, Fluminense lutou para chegar ao empate. Escreveram Arturo Vaz, Celso Júnior e Paschoal Ambrósio Filho no livro 100 anos de bola, raça e paixão: “E quem pensava que o Fluminense iria se abalar, se enganou. Eles não tinham nada a perder e partiram pra cima do Flamengo. Logo veio o empate. O goleiro Jurandir havia acabado de fazer uma defesa tranquila, mas Carreiro trombou com ele e lá se foi o arqueiro, com bola e tudo, para dentro do gol. Falta clara, que o árbitro José Pereira Peixoto preferiu ignorar. No segundo tempo, uma pressão incrível dos tricolores, que os rubro-negros conseguiram segurar com muita raça”.
Fluminense lutou, mas Flamengo lutou mais. Lembra Zizinho: “O Pedro Amorim martelou nosso gol com uma pontaria que se não fosse o Jurandir estar num grande dia teríamos que disputar uma melhor de três com o Botafogo. Com todos os santos nos ajudando (naquele tempo não era São Judas Tadeu o padroeiro), a partida terminou 1 a 1. Assim começou a grande campanha rubro-negra para o tricampeonato”. No dia seguinte, o Jornal dos Sports escrevia: “O Clássico dos Clássicos não desmereceu as suas tradições. Respondendo com a dignidade que era de esperar, à meia dúzia de maledicentes que procuravam durante a semana criar um ambiente de desconfiança em torno do Fla-Flu, o quadro tricolor foi um grande adversário para o rubro-negro, impondo-lhe, ao final, a perda de um ponto precioso neste final de certame. O match disputado com entusiasmo pelos dois conjuntos terminou igual em 1 x 1, tendo o placard sido construído no primeiro tempo, por gols de Pirillo, aos 21 minutos, e Carreiro, aos 43”.
Flamengo levou o título e partiu para uma festa, agora e para sempre com música. Era uma marca não só na história do Flamengo, mas do futebol mundial. Mas no início, a banda de Jayme não fez só adeptos. O compositor rubro-negro e radialista Ary Barroso, falou em tom de deboche: “Isso não passa de uma charanga”. Sem se incomodar, Jayme chamou o grupo de “Charanga Rubro-Negra”. A Charanga cresceu, agora com uma banda militar, com mais faixas e músicas. Escreveu Roberto Sander: “Jayme e a esposa Laura produziam toda a festa. As faixas e bandeiras eram feitas em casa, artesanalmente. Jaime comprava os tecidos num armarinho e Laura, boa de costura, se encarregava do acabamento, logicamente, em vermelho e preto. Nesse sentido, Jaime foi a personificação do torcedor na sua essência”.
Em 1945, a Charanga ainda era bem contestada. Por exemplo, escreveu Alberto Mendes para o Esporte Ilustrado: “Prosseguem os rubro-negros na sua campanha do tetra e com fundidas razões. Apenas julgamos que a sua torcida organizada deve adaptar melhor as suas iniciativas ao espetáculo futebolístico. Domingo, por exemplo, tivemos uma música, misto de fanfarra e batucada, de todo inoportuna, pois não se calou um único momento durante os noventa minutos, enfadando todos. Por outro lado, achamos excelente a demonstração dessa torcida, que após o prélio desfilou pelo gramado, comemorando carnavalescamente a vitória retumbante. Para o futuro, sempre música após o jogo e nunca durante o mesmo”.
Mas pouco a pouco, a animação se impôs na paisagem carioca, até virar marca registrada. Ainda Roberto Sander: “No Rio, a torcida era carnavalizada. Havia música, fantasia, gritos, fogos e até brigas, embora, na Charanga de Jaime, fosse proibido falar palavrão e xingar o adversário. Tudo era mais civilizado, mas havia um quê anárquico e tropical: o samba, o batuque desciam o morro e, junto com o negro e o mulato, assumiam o papel de fazer uma metamorfose na fisionomia do futebol brasileiro”.
Jayme de Carvalho, rubro-negro fanático até a morte em 1967, ainda virou chefe da torcida brasileira na Copa do Mundo de 1950. Virou o mesmo espetáculo de música e fogos, de festa e cantos, até a inesquecível marchinha “Touradas em Madri” cantada pelo Maracanã inteiro contra a Espanha. Depois do torneio, iugoslavos maravilhosos fundaram um grupo para apoiar o time dele, que chamaram de “Torcida Split”. As torcidas organizadas começavam a se instalar na Europa.
Na hora de eleger o maior clube do Brasil, deixando de fora a cegueira e a burrice do clubismo, vejo dois candidatos naturais, Flamengo e São Paulo. E além do futebol e dos títulos, dos ídolos e dos times históricos, tem que ver o lado pioneirismo do Flamengo. Aconteceu muitas vezes, em campo e na arquibancada, de uma charanga a uma Nação. E tudo começou graças a um baiano tricolor de um dia, rubro-negro na eternidade, num 11 de outubro de 1942, num Fla-Flu com festa, música e taça.








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