Flamengo volta hoje ao Brasileirão e tem obrigação de vencer. O jogo promete ser difícil, contra Botafogo, que ainda luta para o G-4. E mais, a derrota de goleada 4×1 no ano passado ainda dóí. Um dia, Flamengo terá que devolver. Pode ser hoje ou mais longe, mas Flamengo vai ter que vencer o Botafogo no Engenhão, de goleada.
Uma situação similar aconteceu nos anos 1970. Foi até pior. Em 1972, Flamengo levou uma derrota 0x6 no Maracanã contra o Botafogo de Jairzinho. Para piorar ainda, o jogo aconteceu em 15 de novembro, dia do aniversário do Flamengo. A goleada tinha que ser devolvida. Virou uma obsessão. A cada clássico, durante nove anos, a torcida botafoguense exibia no Maracanã uma faixa com apenas a escrita “6×0”. Provocava, cantava “Flamengo, nós gostamos de vo-6”. Em 1975 e 1979, Flamengo vencia 3×0 contra Botafogo no intervalo, mas não conseguiu ir além de 4 gols até o final do jogo. A vitória virava uma frustração, não era o 6×0 esperado. Pior ainda, Botafogo impediu Flamengo de quebrar o recorde de jogos invictos em 1979 e eliminou o rubro-negro nas quartas de final do Brasileirão de 1981.
No campeonato carioca de 1981, o primeiro Flamengo x Botafogo acabou em 0x0. No segundo turno, Botafogo venceu 2×1. Depois de 15 jogos sem perder, foi a primeira derrota do novo técnico, o antigo jogador Paulo César Carpegiani, campeão brasileiro em 1980 e que conhecia o time como ninguém. Depois, passou 10 jogos sem derrota, entre o campeonato carioca e a classificação para a final da Copa Libertadores. E veio de novo o Botafogo, no Maracanã, de novo com a faixa do 6×0 para irritar a torcida e o time do Flamengo.
O técnico Paulo César Carpegiani conhecia bem o time, mas tinha dúvida sobre quais pontas escalar. Conhecia os líderes também e pediu assistência ao maior de todos, Zico. Lembra Nosso Rei no livro Zico, 50 anos de futebol: “Foi a única vez na minha carreira profissional que dei palpite em relação à escalão de time. Porque o Lico já tinha entrado bem no time e no domingo de manhã o Carpegiani veio conversar comigo, disse que estava em dúvida e tal, então eu falei para ele: ‘Eu acho que o nosso time fica mais equilibrado com o Lico, da forma como você quer que a gente jogue. Com o Baroninho, que joga muito avançado, o lado esquerdo, do Júnior, sempre fica descoberto. O que você está querendo que o Baroninho faça, ele não faz’. E começou assim, com o Lico”.
Acrescenta Carpegiani no livro 1981 de André Rocha e Mauro Beting: “Aprendi com o Coutinho a ouvir os jogadores, a dialogar com eles para saber o que pretendiam. Até pela amizade e ascendência, ouvia sempre o Zico. Mas eu já tinha a ideia de escalar o Lico. Ele entrara bem nos jogos da Libertadores e fizera o gol da virada contra o Campo Grande, em Ítalo Del Cima. Normalmente, eu dava antes a escalação para a imprensa. Mas, naquele dia, resolvi guardar o Lico para a hora do jogo”. Assim, em 8 de novembro de 1981, Paulo César Carpegiani escalou o Flamengo assim: Raul; Leandro, Figueiredo, Mozer, Júnior; Andrade, Adílio, Zico; Tita, Lico, Nunes.
Com apenas 7 minutos de jogo, Flamengo já mostrava seu futebol envolvente e de passes precisos. Júnior mudou o jogo na direita para Leandro, que dominou com a classe de sempre e abriu de trivela, com ainda mais classe. A aposta de Carpegiani, o “quase desconhecido” Lico segundo o Jornal dos Sports, eliminou Rocha com uma finta de corpo e também tocou de trivela, para o overlapping de Adílio. Brown cruzou de primeira na segunda trave, Nunes chegou e abriu o placar. Golaço, 1×0 para o Flamengo.
Aos 27 minutos, Lico abriu na esquerda para uma triangulação entre Júnior, Nunes e Adílio. Nosso eterno camisa 8 cortou no meio e fez o passe atrás, na entrada da grande área, para Zico, que chutou de primeira. A bola bateu na zaga e voltou nos pés de Zico, que tocou com o joelho direito e chutou com o pé esquerdo. Com a ajuda da trave, a bola foi no fundo da rede. E seis minutos depois, sim seis, Flamengo voltava ao ataque, para aterrorizar a defesa botafoguense. Júnior, que celebrava neste dia seu 500.o jogo com o Flamengo, pegou a bola e deixou para Zico no meio campo. Melhor a bola nos pés de Zico, ainda mais que Júnior fez a ultrapassagem e foi procurado pelo Zico. Uma finta e de novo para Zico, de um toque só, para Nunes. De pivô, Nunes achou na direita Lico, o predestinado que chutou cruzado. Paulo Sérgio estava vencido pela terceira vez, Flamengo tinha feito a metade do caminho da redenção.
Flamengo estava imparável. Ainda no primeiro tempo, Perivaldo fez falta dura no Lico, ainda ele, perto da grande área, mas com ângulo fechado. Mesmo para Zico, não dava para chutar diretamente. O Galinho fez dois passinhos e com a habilidade de sempre, cruzou na grande área. Adílio chegou sozinho, cabeceou e fez o quarto gol do Flamengo. O time do Botafogo pedia para respirar e a torcida do Flamengo já pedia mais, já reclamava: “queremos seis, queremos seis”. “A partir daí, ninguém tinha mais dúvidas de que o Flamengo devolveria a goleada de 1972. Muitos torcedores do Botafogo abandonaram o estádio no intervalo” escreveu no dia seguinte o Jornal do Brasil.
Sem opções, o técnico botafoguense sacou o volante Edson Carpegiani, irmão do técnico rubro-negro, para a entrada do craque veterano Jairzinho. O Furacão da Copa tinha feito 3 gols no 6×0 de 1972, inclusive um de letra. Foi o único a jogar as duas partidas, já que Zico, na época com 19 anos, ficou na tribuna: “Em 1972, eu estava relacionado para aquela partida. Doval tinha sido expulso no jogo anterior e cumpria a suspensão. Fui relacionado para a concentração e estava certo de que jogaria. Mas Zagalo optou por Humberto. Deixei a concentração e assisti ao jogo da arquibancada. Nunca sofri tanto e, assim como nossa torcida, também estava com este resultado atravessado na garganta”.
No vestiário do Flamengo, o clima era longe de euforia. Só interessava o 6×0. Qualquer outro resultado seria uma frustração, uma goleada com sabor de derrota. Ainda Zico, falando depois do jogo: “A minha maior preocupação, ao sentir estar o jogo praticamente ganho, foi não sair de campo vaiado. De que adiantara vencermos de 4×0 se os torcedores não ficassem satisfeitos? […] Golear e ser vaiado não agrada ninguém”. Era o dia da vingança, ainda mais com Jairzinho em campo. Explica o zagueiro Mozer, que em 1972 jogava com os dentes de leite do Botafogo, mas torcia pelo Flamengo: “Que alegria eu senti quando vi o Jair entrando. Porque era um dos que mais me haviam feito sofrer tanto. Quando ele entrou, o jogo pra mim ficou mais emocionante. Passei a querer os 6 a 0 com mais força. Cada bola que eu disputava contra o Furacão era como se, por milagre, voltasse no tempo para jogar aquela outra partida”.
No livro Zico, uma lição de vida, escreve Marcus Vinícius Bucar Nunes: “O lado esquerdo das cabines de rádio, no reduto alvinegro, estava praticamente vazio. Os poucos que restavam fiéis às cores alvinegras estavam em uma situação crítica: ou torciam desesperadamente para que saísse, pelo menos, um gol, um golzinho só, para esfriar aquela equipe comandada por Zico, ou ficavam de olho no relógio, contando os últimos minutos, que foram os mais longos da história do Botafogo, em jogos com o Flamengo. Mas a torcida do Fla queria mais e também olhava para o relógio. O segundo tempo já estava com quase 30 minutos e ainda faltavam dois gols”.
Como só os gols interessavam, vamos diretamente para os gols mesmo. Faltando 15 minutos para o final do jogo, Zico serviu na esquerda Adílio, que invadiu a grande área na velocidade e foi derrubado. Pênalti. Zico chutou firme, e mesmo com o goleiro saindo do lado da bola, fez o gol, igualando Roberto Dinamite na artilharia. Mas isso não importava, só importava o 6×0. Ainda faltava um golzinho para a vingança completa. “Mais um, mais um” implorava a torcida. De pivô, Jairzinho girou até o caminho do gol, ou quase. Chutou, mas a bola apenas flirtou com a trave do Raul. Era a possibilidade de cancelar a festa. Em seguida, Jairzinho ainda ameaçou o gol rubro-negro, mas chutou para fora. Faltava poucos minutos, o jogo ainda era 5×0, um placar que não agradava a ninguém.
E aos 42 minutos do segundo tempo, uma troca de passes bem ao estilo desse Flamengo inesquecível e histórico. Zico para Andrade, na esquerda para Adílio, de primeira para Lico, de novo para Andrade. O volante abriu de novo na esquerda para Adílio, que ouvindo o conselho mal-avisado do adversário, cruzou. A zaga rebateu e chegou Andrade, torcedor declarado do Botafogo na infância e agora camisa 6, sim 6, do Flamengo. Chutou de primeira, no fundo da rede. Um gol que valia 6, que valia 9 anos de espera e zoações, que valia ouro para os 69.051 presentes no Maracanã, menos os torcedores do Botafogo já em casa. A torcida rubro-negra não queria o sétimo, o 6×0 já era perfeito. A efusão no Maraca, até o final do jogo, foi de um título.
No livro 20 jogos eternos do Flamengo, lembra Andrade: “É muito difícil descrever o que senti no momento daquele gol. Na realidade, tive a sensação de ter saído do ar por alguns momentos, deu um branco, tanto que corri para o lado errado. Foi um jogo que marcou definitivamente a minha carreira, talvez o mais emocionante de todos. E olha que eu joguei muito tempo… Acho que nos próximos 50 anos continuaremos falando disso. Foi tão importante que muita gente considera aquela vitória um título”. E foi mesmo, já passaram 44 anos e ainda falamos, escrevemos, sonhamos com esse gol.
E o gol valia um título. O Jornal dos Sports, que manchetou “A vingança do Mengo”, anteviu: “Uma partida histórica, que a bondade de Deus escolheu o carioca para assistir. E a torcida, do Flamengo é claro, soube celebrá-la, mais que comemorá-la. Celebrou com a força de uma derrota – também de 6 a 0 – presa em seu coração há nove anos. Celebrou-a como, se em uma tarde, Deus lhe tivesse proporcionado tudo: uma goleada sobre o seu mais terrível rival, o Botafogo, o título regional, o Campeonato Nacional, a Libertadores da América, o Mundial de clubes”.
Em um pouco mais de um mês depois desse jogo histórico, Flamengo conquistou uma tríplice coroa, Carioca, Liberta, Mundial. E Lico foi titular em 6 dos 7 jogos decisivos, faltando apenas o jogo desempate contra Cobreloa por causa da violência chilena. A partir do 6 a 0 contra Botafogo, Lico mudou um time que já era quase imbatível. “O Lico não pode mais sair do time. Parece que está há três anos aí dentro. O Carpegiani não vai mais poder mexer nesse time. É esse aí” falou Gérson ainda durante o jogo contra Botafogo.
O herói do dia, Andrade, explica no livro 1981 de André Rocha e Mauro Beting: “O Lico era um jogador muito inteligente. Ele e o Tita eram meias que atuaram como falsos pontas do esquema para darem liberdade para o Adílio e o Zico. Eles se movimentavam e ainda ajudavam Leandro e Júnior. O time jogava num 4-5-1. Fixos, mesmo, só ficavam os zagueiros e eu. O resto se movimentava muito”. Acrescenta Júnior sobre Lico: “Quando entrou no time, o meu futebol cresceu ainda mais. Porque o Júlio César era um ponta-esquerda nato, jogava só do meio para frente. O Julinho ‘Uri Geller’ não era maluco, era desligado, desde os tempos de salão. O Júlio tinha um talento absurdo, que compensava esse jeito diferente. Mas, com o Lico, arredondou tudo no time. Era mais inteligente no posicionamento. Ele e o Tita foram fundamentais para a equipe embalar de vez”.
A palavra final vai para o nosso maior ídolo, Zico, de “alma lavada” como ele mesmo confessou, falando também sobre as provocações dos botafoguenses: “A única coisa que nos incomodava em qualquer jogo era aquela faixinha no Maracaná do 6 a 0… Acabou ali […] Em 1981, ganhamos quatro coroas: o Mundial, a Libertadores, o Estadual, e o 6 a 0”. De tanto ídolo que é, às vezes esquecemos que Zico também é torcedor do Flamengo, como cada um de nós, sofrendo com as derrotas, vibrando com as vitórias. Assim, para fechar, cito um grande jornalista e torcedor do próprio Botafogo, Oldemário Touginhó, sobre o final do jogo: “Zico vibrou como se fosse um torcedor na arquibancada. Zico, que quase foi escalado no jogo de 1972 no lugar de Doval, parecia no gramado um simples torcedor de arquibancada. E como torcedor, sabia que aquele gol não foi feito a três minutos do fim, mas nove anos depois do começo”. Flamengo esperou nove anos para se vingar, para fazer desaparecer para sempre a faixinha do 6×0. Até hoje, a goleada nunca foi devolvida pelo Botafogo.









Deixe um comentário