Durante mais de 50 anos, Doval foi o maior artilheiro gringo da história do Flamengo. Agora ultrapassado pelo Arrascaeta, Doval segue ídolo do Flamengo. É um dos maiores gringos do Flamengo, talvez só ultrapassado por Arrascaeta e Petkovic, com quem compartilha algumas características. “Doval colocava em campo toda a alma e todo o sangue tão característicos das Pampas. Doval juntou raça, técnica e oportunismo, tornando-se grande ídolo da torcida rubro-negra” escreveu Luís Miguel Pereira no livro Bíblia do Flamengo. Raça, amor e paixão.
Narciso Doval nasceu na Argentina, em Buenos Aires, em 4 de janeiro de 1944, ano de um título inesquecível do Flamengo, com gol do argentino Valido. Doval era predestinado e já era craque na base de San Lorenzo. Estreou no time principal em 1962 e fez parte do ataque conhecido como “os carasucias”. Conquistou as massas, principalmente femininas. “Ele era a raça, a potência e a sensibilidade da arte” escreveu seu biografo Luciano Uribajara Nassar no livro Doval, o ídolo do povo. Chegou a seleção argentina em 1967 mas depois de um escândalo de assédio nunca bem esclarecido, nunca mais foi chamado. Foi até suspenso e faltou o campeonato argentino de 1968, vencido pelo San Lorenzo. Mesmo assim, conquistou a admiração do técnico do time, o brasileiro Tim, que no ano seguinte foi treinar Flamengo. E assim, Doval também foi.
“Tim foi o melhor técnico que conheci e com quem trabalhei, muito à frente dos outros. Ele revolucionou o futebol na Argentina, não queria ninguém com posição fixa, nem com funções limitadas” explicou Doval. O presidente rubro-negro George Helal contratou o técnico Tim, o gênio Doval e antes disso, outro gênio, agora brasileiro, já em decadência, Garrincha. Doval começava uma nova vida. Ainda Ubirajara Nassar: “Na sua chegada já se apaixonou perdidamente pelo Rio de Janeiro. Veio, viu e gamou. Um amor platônico tocou o seu coração de menino e mexeu com a sua alma aventureira e desbravadora. Algo muito forte aconteceu com ele. Nos primeiros treinos já demonstrou toda a sua força e talento. Nas partidas começou a mostrar a sua fibra e habilidade. Todos já perceberam que se tratava de um atacante que jogava em todas as posições do ataque indistintamente. E não reclamava. Se matava com a camisa rubro-negra”.
Doval estreou com o Manto Sagrado em 20 de abril de 1969, numa derrota contra Botafogo. O primeiro gol chegou numa vitória 4×1 sobre a Portuguesa. No jogo seguinte, já caiu nas graças da torcida. Contra Vasco, tabelou com Fio e fez o gol para Fla vencer 3×0. E mais, foi comemorar nos braços da torcida, com a alma do povo. E mais, foi brilhante num outro clássico, contra Botafogo. Flamengo não vencia o rival desde uma eternidade. Num jogo que ficou conhecido como “o jogo do Urubu”, já eternizado no Francêsguista, Doval iniciou a jogada no primeiro gol, concluiu a do segundo gol. Flamengo tinha uma nova mascote, a torcida tinha um novo ídolo.
Em fevereiro de 1970, Flamengo conquistou o Torneio Internacional do Rio de Janeiro. Doval fez um gol contra a seleção da Romênia, dois na goleada 6×1 sobre o Independiente. A chegada do técnico Yustrich mudou a trajetória de Doval no Flamengo. “O principal problema com o craque Doval se deu em função do posicionamento dentro de campo. Yustrich queria que ele jogasse mais próximo da lateral do campo e marcando os avanços do lateral adversário. Um ponta direita marcador. O ‘Gringo’ gostava de jogar solto” explica Ubirajara Nassar. Autoritário, o “Homão” até tentou de obrigar Doval a cortar o cabelo. Sem querer perder definitivamente o jogador, Flamengo emprestou em 1971 Doval ao Huracán, rival de San Lorenzo.
Doval voltou ao Flamengo em 1972, seguiu ídolo. Reencontrou o caminho do gol contra o Atlético Mineiro para conquistar o Torneio do Povo e fez 3 gols contra São Cristóvão no campeonato carioca. Na decisão da Taça Guanabara, um Fla-Flu eterno no Francêsguista, só não jogou mais que Caio Cambalhota, que fez 3 gols. Na decisão do campeonato carioca, outro Fla-Flu, outro jogaço de Doval, que abriu o placar. Com 16 gols, Doval se consagrou artilheiro do campeonato e Flamengo conquistou um título que não vinha desde 1965. Escreveu o Jornal do Brasil: “Com os cabelos esvoaçados, correndo sem parar de uma área a outra, do campo, demonstrando muita categoria e aplicando toda a sua experiência para levar o jogo, o juiz e o próprio adversário ao seu modo, Doval provou, ontem, que foi um dos melhores do Campeonato Carioca de 1972. O gol que marcou, numa cabeçada precisa, por si só poderia definir a sua atuação […] O Fluminense pressionava, mas o ‘Gringo’ fez o Maracanã explodir e abriu o caminho para a vitória e o título de seu time. Doval não foi só o autor do primeiro gol do Flamengo. Vendo que Paulo César estava severamente marcado, ele assumiu a liderança do time. Cantava as jogadas para os companheiros, prendia a bola para tranquilizá-los e corria o tempo todo se oferecendo para receber os passes”. Doval entrava na história do Flamengo, para sempre, era ídolo das massas, dos idosos e das garotas.
Em 1973, num ataque de craques só, até no banco, Doval continuou a fazer seus gols, inclusive 3 na goleada 8×0 sobre Bangu. Mas com falta de títulos, o maior jogo de Doval em 1973 não foi com Flamengo, muito menos com a seleção argentina que não o chamava. Em 19 de dezembro de 1973, Doval estava em campo no Maracanã para a despedida de um dos maiores gênios do futebol brasileiro, o Anjo das pernas tortas, Garrincha. Inclusive, Doval sucedeu ao Garrincha no Flamengo, lá em 1969. Além de ser argentino, Doval já era flamenguista, era brasileiro, era carioca.
E Flamengo mudou em 1974. Mudou primeiramente de técnico, com a chegada de Joubert, que era o técnico da base. Por isso, conhecia bem Zico. No início do ano, Joubert reuniu Zico, Doval e Dario e falou diretamente: “Minha primeira modificação é colocar o Zico como titular. Vocês dois vão disputar a outra posição. Estou fixando o Zico, a partir de hoje, porque acho que ele já está em condições de ser o titular”. Sobrava um lugar só para Dario e Doval. Foi um período de adaptação, até para Sandra, a companheira de vida do Zico: “Doval era o meu ídolo. Eu era apaixonada por ele. De repente o Zico competia com o Doval, tinha que esperar ele sair pra entrar. Foi muita confusão pra minha cabeça”. Claro, Zico não decepcionou.
Doval também não decepcionou, forçando a saída de Dario para ficar com a dupla Zico – Doval. Lembrava o craque argentino: “Quando Zico surgiu eu já sabia que se tratava de um craque, um jogador fora de série. Fizemos grandes jogos juntos. Presenciei partidas do ‘Galinho’ ainda no juvenil e já era o melhor jogador do time. Me alegra muito ter jogado com ele no seu começo de carreira. Nós conquistamos títulos e fizemos muitas jogadas e tabelas”. Zico retribuiu: “Quando estivemos juntos no Flamengo, tínhamos a nosso favor a presença de Geraldo, que vinha pelo miolo com aquele seu impressionante domínio de bola. Acho que foi com Doval que formei a melhor dupla de área, aquele com quem me senti mais à vontade. E a que mais rendeu”. Foi uma dupla, um trio com Geraldo, que deu muitas alegrias à torcida, algumas taças ao clube, e que só não ficou mais tempo em campo por causa da crueldade do destino.
Com sua classe, Doval deixou a camisa 10 para o garoto Zico, como lembra o funcionário Ayer Andrade no livro Zico, 50 anos de futebol: “Estávamos no vestiário do Maracanã. Perguntei ao gringo se ele não poderia deixar o menino entrar com a 10. E ele me falou, naquele português enrolado: ‘Ô Andrade… quem joga sou eu, não é camisa, vai lá e dá a camisa ao menino’”. Zico entrou numa fase de craque absoluto, também de goleador. Com 49 gols no ano, ultrapassou o recorde de seu ídolo Dida. Doval foi mais que um coadjuvante, também era ídolo, goleador, craque completo. No campeonato carioca, fez 10 gols para acompanhar os 19 de Zico e ajudar Flamengo a conquistar o campeonato. Infelizmente, por causa de uma lesão, faltou a decisão contra Vasco e a festa do Maraca.
Em 1975, a dupla Zico – Doval continuou a funcionar, principalmente num jogo de prestigio contra a Juventus da Itália, com vitoria 2×1 no Maracanã, gols de Zico e Doval. Numa goleada 5×0 sobre a Portuguesa, Doval fez seu terceiro e último hat-trick com o Manto Sagrado. Fez gols em clássicos, até participou de uma confusão contra Vasco. Doval tinha essa mistura de bola e briga típica dos craques argentinos. “O ‘Gringo’ entrou na briga dando socos e pontapés para defender e proteger os seus companheiros, como sempre fazia. Não aceitava injustiças e a sua postura era de um valente cuidando das cores do seu clube, dos seus colegas de time e da sua apaixonada torcida” escreveu Nassar.
O final do ano de 1975 foi mais difícil, Doval não era primeira opção do técnico Froner e ficou no banco durante alguns jogos. Flamengo precisava de uma vitória sobre Santa Cruz para chegar na semifinal, mas foi derrotado em pleno Maracanã e acabou eliminado. Doval ainda participou de alguns amistosos, o último contra a Portuguesa Santista. O último gol saiu um pouco antes, no Brasileirão contra CSA. No final, 263 jogos, 94 gols e uma idolatria que ia além dos estádios. Ia nas ruas, nas praias, nas festas.
Deixo a palavra para o ídolo do dia e da década de 1970, falando sobre o Mengão: “O Flamengo me acolheu e me ensinou muita coisa. Foi a minha casa e o meu retiro. Se sou o que sou, devo ao Flamengo. Os principais anos da minha carreira e da minha juventude foram passados neste clube. Se hoje sou um brasileiro na alma e no coração devo ao Flamengo. Essa torcida maravilhosa carrega um time. Não existe nada igual. Esse time guardarei para sempre em meu coração […] Jogar no Flamengo é simplesmente fascinante. Esta história de que a camisa do Flamengo corre sozinha, dribla e faz gols é mais que uma história, é uma verdade. É gente que ganha jogo nas arquibancadas. Seu grito é grito de guerra, que empurra o jogador para a frente. A torcida rubro negra é um milagre”.
Em 1976, Doval fez parte da troca-troca de Francisco Horta e ingressou a Máquina do Fluminense. No seu primeiro jogo, brilhou Zico, com 4 gols no Fla-Flu, um jogo eternizado no Francêsguista. Mas Doval conseguiu idolatria de outro clube carioca, com raça e gols, alguns decisivos. Antes da decisão do campeonato carioca 1976 contra Vasco, Doval foi direto e garantiu o título: “Não é excesso de otimismo. É confiança na nossa equipe. E pode anotar: vou faturar dois gols”. O craque argentino apenas cumpriu a metade da promessa. Aos 118 minutos do jogo, de cabeça, fez o único gol da partida, consagrando o time do Fluminense. E depois de 1972, foi uma segunda vez artilheiro do torneio, com 20 gols. Ainda em 1976, foi eleito no time ideal do Brasileirão, ganhando a tão prestigiosa Bola de prata.
Porém, o título mais importante do ano foi quando conseguiu a cidadania brasileira. O brasileiro de coração e alma agora era brasileiro de papéis. Esquecido pela seleção argentina, Doval se considerava brasileiro, como falou em 1977 para a revista ¨Placar: “Nós, brasileiros, não temos de imitar os europeus. Nosso futebol é e sempre foi superior ao deles – eles é que tem de nos imitar, afinal fomos nós que ganhamos três Copas. O que nos falta? Simples: manter a tradição de criatividade, a molecagem, os dribles e a nossa ginga”. Depois do Brasil, Doval ainda voltou para San Lorenzo e pendurou as chuteiras nos Estados Unidos.
Na aposentadoria, ficou dividido entre Argentina e Brasil. Mas Rio tinha a praia tão amada de Doval, que se tornou um dos incentivadores do ainda crescendo futevôlei. Também jogou showbol pelo San Lorenzo e fut7 pelo Flamengo Masters. Em 1991, participou do “Torneio Internacional de Futebol 7” de Buenos Aires. Além do Flamengo, tinha Santos, Boca Juniors, River Plate, Peñarol e Nacional. Escreveu Luciano Uribajara Nassar: “A finalíssima do torneio foi entre o Flamengo e o Boca, vitória brasileira por 5 a 4. Doval fez uma partida exuberante, lembrando o velho guerreiro rubro-negro. Ele dividia todas, brigava, dava ombrada, chutava e batia nos argentinos e como prêmio pela luta incessante virou o jogo, marcando dois gols. E teve a recompensa merecida, a artilharia máxima do torneio”.
Depois do torneio, ficou em Buenos Aires e aproveitou para visitar a delegação do Flamengo, que jogava contra Estudiantes, um jogo eternizado no Francêsguista há pouco tempo. Em 12 de outubro de 1991, numa discoteca, o ídolo teve uma parada cardíaca. Não resistiu. Morreu jovem, com apenas 47 anos de idade. Mas morreu fazendo o que gostava, jogar futebol, ir numa festa, perto de seu Flamengo, na sua Argentina. No dia seguinte, virou capa dos Jornal dos Sports: “Coração mata Doval”. Nas páginas, podia se ler: “Raríssimos jogadores conseguiram encarnar tão bem a mistica do Flamengo como o gringo Doval. Ele, certa vez, véspera de um jogo contra o Vasco, esmirrou o chão da Gávea e disse que ‘comeria grama’ pela vitória do Flamengo. E não apenas comeu grama, como engoliu o adversário com um futebol de coração, penetrações fulminantes e alucinação pelo grito do gol. Poucos se identificaram tanto com a massa rubro-negra como ele. Cheirava ao povo flamengo e sempre deu tudo de si pelas vitórias. Era incrível como ele e torcida se pareciam”.
Durante meio século, Doval foi o maior artilheiro gringo da história do Flamengo. Começou no início de 1975, quando ultrapassou os 75 gols de Benítez no primeiro jogo da temporada, uma despercebida goleada 6×0 sobre uma seleção de Vassoura. Até 2025, quando foi ultrapassado pelo Arrascaeta na Vila Belmiro, contra São Paulo. Como Arrasca, Doval teve uma longevidade e uma regularidade impressionantes para um gringo no Flamengo: 8 gols em 1969 e 1970, 23 gols em 1972, 20 gols em 1973, 16 gols em 1974 e 19 gols em 1975. Somando, 94 gols e agora um segundo lugar na artilharia rubro-negra dos gringos.
Já falei em outras crônicas que gosto de eleger trios, seja de gols, de jogos eternos ou de ídolos. E na Santa Trinidade dos gringos do Flamengo, tenho, como a maioria dos idiotas da objetividade, Doval, Petkovic e Arrascaeta. Em ordem cronológica, porque fazer uma ordem de preferência seria complicado demais. Em comum, os três têm a habilidade dos artistas brasileiros e a raça do futebol estrangeiro, que se chama a garra, a garra charrúa ou quem sabe como se chamava na antiga Iugoslávia. Tinham esse espírito de luta que sempre conquistou os torcedores do Flamengo. Além da beleza plástica e do futebol, foi na raça, no amor e na paixão que Doval se tornou um dos maiores ídolos do Flamengo.








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