Jogos eternos #352: Flamengo 1×0 Vasco 1978

A temporada de 2025 acabou de uma maneira melancólica, triste, até frustrante. Mas foi uma temporada histórica. As conquistas da Supercopa do Brasil e do campeonato carioca no início do ano, o Brasileirão e a Copa Libertadores no final da temporada. O ápice foi o gol de Danilo no Monumental de Lima. Um gol que foi comparado a um outro gol muito importante na história do Flamengo, para outra geração eterna. Um escanteio cedido desnecessariamente pelo adversário, no lado direito, cobrado pelo maior ídolo, craque e camisa 10, e na segunda trave, um zagueiro raiz que subiu, até voou, para fazer o único gol da partida, para oferecer o título ao Mengo.

Em mais de 350 crônicas, eu ainda não tinha eternizado o jogo contra Vasco de 1978. Um jogo importantíssimo na história do Flamengo, que marcou o início de uma geração, o que podia também ter sido o fim em caso de derrota. Nos anos 1970, o craque, Flamengo fazia em casa. Em alguns anos, teve vários, Cantarele, Rondinelli, Júnior, Adílio, Tita e claro, Zico. Era uma geração promissora, que ainda não vencia. Em duas disputas de penalidades malditas, Flamengo perdeu contra Vasco a Taça Guanabara 1976 e o campeonato carioca 1977. Tita foi quase crucificado e o time desmembrado. Mas tinha união e solidariedade entre os jogadores, o time foi mantido. Apenas trocou do técnico. Depois de um Brasileirão 1978 decepcionante, Joubert cedeu seu lugar para o Cláudio Coutinho, capitão do Exército, preparador físico da Seleção de 1970 e idealizador do maior Flamengo da história.

No campeonato carioca de 1978, já sob o comando de Coutinho, Flamengo conquistou a Taça Guanabara e andava invicto na Taça Rio: 9 vitórias e apenas um empate. Só que Vasco fazia ainda melhor com 10 vitórias em 10 jogos. Assim, antes do último jogo, Vasco precisava apenas de um empate para forçar uma decisão em 3 jogos. Flamengo precisava da vitória para diretamente se sagrar campeão carioca. Antes do jogo, Abel, o zagueiro do Vasco ainda não conhecido como Abel Braga, mostrava confiança e teve uma antevisão, quem sabe uma anti-visão: “Não sei como o Flamengo vai chegar perto da nossa área. Se vierem com aquelas jogadinhas rasteiras pelo meio, vamos saber pará-los. Por cima, parece até brincadeira pensar que tomaríamos um gol do Flamengo”. Do outro lado do campo, Rondinelli, ainda não o Deus da Raça, já tinha uma coisa a mais: “Quando comecei a jogar pelo Flamengo, aprendi logo que quem veste a camisa daquele time tem de mostrar garra e amor à torcida, não importa a qualidade de seu futebol. Caso contrário, é melhor pedir para ir embora”. Rondinelli não precisava ir embora, já era o maior símbolo da raça rubro-negra.

Em 3 de dezembro de 1978, o técnico Claudio Coutinho escalou Flamengo assim: Cantarele; Toninho Baiano, Manguito, Rondinelli, Júnior; Paulo César Carpegiani, Adílio, Zico; Marcinho, Tita, Cleber. O Maracanã era cheio, com 120.433 pagantes. E Zico inflamou a geral já no primeiro minuto de jogo, com seu característico drible de sola. Zico pedalou, tabelou com Cleber, achou Adílio na profundidade, chutou de pé esquerdo. Mas ainda nada de gol. Flamengo jogava bem, mas parava no Émerson Leão, na época o maior goleiro do Brasil. Do outro lado, Vasco jogava na retranca, mas quase abriu o placar no final do primeiro tempo com jogada de Roberto Dinamite. Cantarele defendeu. No intervalo, ainda 0x0, ainda uma previsão de uma final em 3 jogos.

No segundo tempo, com triangulação característica do time, Zico teve grande chance de fazer o gol, mas Leão fez outra defesaça, a melhor do campeonato segundo o comentarista. O tempo passava, já era a noite escura no Maraca, e nada de gol. Quanto mais o tempo passava, mais a vitória parecia improvável, mais a decisão em 3 jogos parecia óbvia. A menos de uma tragédia ainda maior. No final do jogo, Rondinelli jogou um pouco mole na luta com Roberto Dinamite, um duelo que já acontecia na época dos juvenis. Roberto Dinamite ganhou a bola nos pés de Rondinelli e cruzou para Paulinho sozinho na grande área. Em um meio segundo, a metade do Maracanã, ou mais, viu um gol vascaíno, uma repetição dos anos de sofrimento em 1976 e 1977. Era a terceira decisão entre os dois rivais, com possibilidade de Flamengo virar freguês. Paulinho pegou mal a bola, que saiu para fora. A geral do Maraca, em maioria rubro-negra, respirou aliviada.

E dois minutos depois, Júnior na esquerda cruzou alto. Marco Antônio, aquele lateral campeão do mundo em 1970, cedeu o escanteio, de forma desnecessária. O fotografo uruguaio Ruben Etchevarria, conhecido do time rubro-negro por organizar churrascos com os jogadores, entregou rapidamente a bola para Zico: “Pode ser agora, tchê. É a última chance, estamos em cima – 45 minutos – capricha, hê, pelo amor de Dieus”. Durante o jogo, Tita e Marcinho já tinham cobrado escanteios da direita, mas aquele era para Zico, que fazia grande partida até aqui. Rondinelli subiu na grande área. Lembra o zagueirão para Lance!: “Tenho consciência de que dei um vacilo uns três, quatro minutos antes da jogada com ele. O Carpeggiani, que era o capitão, falou algo nesse sentido: ‘Como é que você vai subir pro lance se você deu uma vacilada? Fica lá que você não vai resolver nada na frente’. Eu pensei ‘estou há dois tempos tentando evitar gol, quero ajudar a sair daqui com esse time campeão. Vou desobedecer!’. Eu estava com 23 anos, tentando me firmar como titular. Se eu posso ir, eu vou, pela minha intuição. E o Zico sabia da minha intuição, não à toa eu digo que ele não cruza a bola, ele alça. Ele sabia”.

Zico fez um sinal para Rondinelli, que já existia nos tempos dos juvenis. Lembra Zico: “A bola caiu no pé do fotógrafo uruguaio que fazia nosso churrasco e ele mandou a bola para mim. Eu a levei para o canto e fiz sinal para o Rondinelli. Havia uma combinação para essa jogada só em cobranças de faltas, mas na hora acabei fazendo o sinal e acho que ele foi malandro, porque ficou esperando. Quando ele subia, o Roberto Dinamite vinha sempre com ele, mas naquela bobeou, eu fiz o sinal e quando ele partiu eu mandei”. Zico cobrou, bem no alto, na segunda trave. Roberto Dinamite deixou a marcação. Rondinelli chegou.

Rondinelli tinha dez centímetros a menos que Abel, aquele que pensava que era brincadeira Flamengo fazer um gol por cima. A solução era na raça. Rondinelli chegou, subiu, voou. Cabeceou, golaçou. Mudou sua história, eternizou seu nome na galeria dos ídolos rubro-negros. De nome completo, Antônio José Rondinelli Tobias. Apenas Rondinelli, ou melhor, o “Deus da Raça”. E o sobrenome virou nome. “Rondinelli é um sobrenome. Mas virou nome! Surgiram depois mais de 4 mil Rondinellis. Virou primeiro nome. E olha que a mídia não era como hoje. Era basicamente jornal impresso e rádio. A paixão da nossa época era de rua, do corpo a corpo. Tudo começou ali, naquele momento”, explicou depois o ídolo do dia, o herói de milhares de vidas.

Ainda Rondinelli sobre o gol que mudou sua vida: “Sempre fui um jogador aguerrido. Faltava para mim uma referência a tudo que eu praticava em campo. E aconteceu através desse gol. Fui atrás desse lance. Ganhei carro, entrava em lojas e ganhava roupas de graça. Ia jantar em família e na hora de pagar a conta, o maître do restaurante chegava e dizia que outra pessoa havia me reconhecido e deixado tudo pago em agradecimento pela alegria que eu tinha proporcionado”. Com uma cabeçada mortal, Rondinelli se tornava imortal no Flamengo. Já escrevi aqui que gosto de trindades. E eu tenho minha trindade de gols decisivos em cima do Vasco para conquistar o campeonato carioca: Valido em 1944, Rondinelli em 1978, Petkovic em 2001. Ponto. E se precisa de uma trindade de gols de cabeça: de novo Rondinelli, depois Ronaldo Angelim no Hexa, e agora Danilo em Lima. Ponto. Escanteio para Flamengo, quem bate é Zico, Pet, Arrasca, outra Santa Trinidade, quem faz o gol é um zagueiro de raça, quem é o campeão é o Flamengo.

O gol não só mudou a trajetória de Rondinelli, mudou a do próprio Flamengo e de sua geração de ouro. Sem esse gol, não tem o tricampeonato carioca de 1979, talvez não o Brasileirão de 1980, a Liberta e o Mundial de 1981. O Flamengo será diferente. “Dentro do campo, a conquista do Estadual foi o início de tudo. Até hoje, quando revejo aquele gol, me arrepio. É o que mais me emociona”, explica Zico, que, ninguém lembra, foi expulso no final do jogo. Mas foi reverenciado como maior jogador do país. “O melhor do time pela raça, pela categoria e pela habilidade em se deslocar para os espaços certos e de compor, com talento, tanto o meio-campo como o ataque. Tudo isso sob severa marcação”, escreveu o Jornal do Brasil quando o Jornal dos Sports preferiu: “O que mais pode ser escrito sobre o maior craque do futebol brasileiro. Toques geniais, dribles estonteantes, toques de alta categoria, tudo com absoluta perfeição”.

Também não posso resistir a tentação de reproduzir a crônica do eterno Nelson Rodrigues: “Amigos, eis a pergunta que sempre faço, sempre fiz, com as dívidas do Flamengo. Se o Rubro-Negro não as tivesse, eu entenderia o espanto, entenderia o escândalo. O brasileiro é, por excelência, o sujeito que deve […] Uns três minutos para acabar a partida, córner a favor do Rubro-Negro. Acontece que baixou uma inspiração sobre Zico. Ele resolveu cobrar o escanteio. Corre, apanha a bola e a coloca no lugar certo. Todo mundo sente que não há mais tempo para ganhar a partida. Mas uma fé obtusa e invencível crispa Zico […] Sucede que Zico caprichou. Sucede, também, que lá vinha Rondinelli. Rompia pela área do Vasco com uma sede mortal de gol. Entre todos que estavam presentes no Mário Filho – em campo ou nas arquibancadas, cadeiras e gerais – só Rondinelli foi iluminado pela certeza de gol. Ele sabia que ia marcar e só não sabia como. E, então, Zico bateu o córner. E, então, Rondinelli subiu, leve, alado. Subiu mais que os outros. A bola saiu redondinha. Leão, naquela tarde, fizera defesas incríveis. Mas qualquer um se cansa de milagre. A bola morreu dentro das redes. Era o gol e, mais do que isso, o título. O Flamengo era campeão da cabeça aos sapatos. E eu dizia, na casa do Marcelo Soares de Moura: – ‘Não me falem em dívidas do Flamengo. O clube que arranca da cidade aquele grito, esse está acima de todas as dívidas’”.

Para fechar a crônica, volto com a palavra do herói do dia, festejado em todos os lugares do Brasil, em várias gerações e famílias, por ter mudado o destino do Flamengo: “O que mais me orgulha é que aquele gol, que eu tive a felicidade de marcar sobre o Vasco, acabou representando o início da consagração de uma geração de profissionais que vestiu o manto sagrado, e de uma nova mentalidade que passou a existir dentro do Flamengo. Eu não me refiro apenas aos jogadores que levantaram os títulos que aconteceram na sequência, mas a todos os que participaram das conquistas, incluindo treinadores, preparadores físicos, massagistas, médicos, roupeiros e dirigentes, e aí não interessa quanto tempo cada um deles passou lá dentro […] Aquela tarde-noite, enfim, foi única, inesquecível e interminável”.

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O autor

Marcelin Chamoin, francês de nascimento, carioca de setembro de 2022 até julho de 2023. Brasileiro no coração, flamenguista na alma.

“Uma vez Flamengo, Flamengo além da morte”