Antes de fechar um ano de glórias, volto bem atrás no tempo, em 1939. Também foi um ano de glórias para o Flamengo, conquistando o campeonato carioca depois de 12 anos na fila. Também era uma época conhecida como platinismo, com um complexo de inferioridade em relação aos argentinos. O complexo de ‘vira-latas’ piorou com a derrota 5×1 em pleno São Januário na Copa Roca, com gol de “honra” de Leônidas, maior craque e ídolo do Brasil e do Flamengo. Explica Roberto Sander no seu excelente livro Anos 40: viagem à década sem Copa: “Esse resultado gerou um trauma que acompanhou a seleção por boa parte da década de 1940. Tínhamos um colossal complexo de inferioridade. Víamos os argentinos como europeus”.
Não por acaso o Flamengo contratou vários craques argentinos, até jogadores comuns, nessa época. Entre 1937 e 1944, nada menos que 22 jogadores argentinos vestiram o Manto Sagrado, com destaque para Volante, Valido e González. Também não por acaso o Independiente, campeão argentino de 1939, foi convidado para uma excursão no Brasil no final do ano. Em 24 de dezembro de 1939, venceu Flamengo por 4×3, um jogo eternizado no blog apesar da derrota, com estreia de Zizinho e golaço de bicicleta de Leônidas. Uma semana depois, uma revanche foi marcada no São Januário, casa do Vasco em particular e do futebol brasileiro em geral.
A derrota do Flamengo no primeiro jogo sobre Independiente foi considerada injusta pela imprensa carioca. Assim, uma ‘revanche’ foi marcada, inicialmente em 1o de janeiro de 1940, finalmente um dia antes, ou seja, um ano antes. Escreveu o Correio da Manhã: “Revanche é um modo de dizer. O que os donos da temporada queriam era outro jogo em que o rubro-negro participasse porque é um gremio de maior torcida da cidade. Pensaram que era só chamar os teams a campo e a população inteira correria para ver o cotejo”. Em 31 de dezembro de 1939, o técnico Flávio Costa escalou Flamengo assim: Yustrich; Domingos, Newton Canegal; Artigas, Jocelino, Médio; Sá, Zizinho, Jarbas, González, Leônidas.
No São Januário, Flamengo precisou de apenas quatro minutos para impor sua superioridade sobre os argentinos. “Jarbas cobrou bem um corner concedido por Lecéa, e González, saltando com o zagueiro portenho, cabeceou firme para assinalar o primeiro goal do Flamengo”, escreveu no dia seguinte o Jornal dos Sports. E Flamengo continuou a dominar o jogo, impor seu ritmo, seu futebol. Agora a palavra para a Gazeta de Notícias: “Sucedem-se os ataques, e doze minutos após, Zizinho de posse do couro, dá a Leônidas que driblando toda a defesa obtem o segundo goal do Flamengo”. O Mengão tinha nas mãos uma dupla de ouro, com os dois principais jogadores de duas épocas distintas, mas infelizmente, foi pouco aproveitada em campo.
Outro lamento, agora de um dia só, era a possível goleada sobre Independiente, que finalmente não chegou. No segundo tempo, Flamengo sentiu tanto o desfalque do insuperável Domingos na zaga, como depois do argentino González na frente. Leônidas também se machucou, mas ficou em campo. O juiz argentino não viu um pênalti óbvio sobre Leônidas e o Independiente passou a ter mais controle do jogo, ainda sem brilhar. Yustrich impediu com brilho um gol de Zorila, mas finalmente foi vencido por Martinez.
“Nítida e indiscutível vitória do Flamengo sobre o Independiente por 2×1” manchetou a Gazeta de Notícias. O Globo Sportivo foi além: “A campanha do Independiente em canchas cariocas veio alterar, profundamente, uma ideia que se formara após a disputa da Copa Roca – a respeito do futebol argentino. Supunha-se antes que, dificilmente o campeão da AFA experimentaria um revés em toda a temporada internacional. O que sucedeu foi o contrário. Desiludiu o Independiente”. Talvez o futebol brasileiro ainda não era melhor que o futebol argentino. Mas o campeão carioca Flamengo, com seus craques do quase passado Domingos e Leônidas, com seu craque do já presente Zizinho, era melhor que o campeão argentino. E com os craques do futuro, o Flamengo será o Maior do Mundo.
Acabava assim um ano, uma década, num mundo em guerra. “Há no Flamengo esta predestinação para ser, em certos momentos, uma válvula de escape às nossas tristezas”, escreveu uma vez José Lins do Rego. O eterno Nelson Rodrigues escolheu a felicidade: “A alegria rubro-negra não se parece com nenhuma outra. Não sei se é mais funda ou mais dilacerada, ou mais santa, só sei que é diferente”. O Flamengo, campeão ou não, sempre foi o dono do Rio de Janeiro, só por causa da torcida. E já era o caso nos primórdios do futebol, quando se falava ‘goal’ em vez de ‘gol’, ‘team’ em vez de ‘time’, quando Flamengo era “um gremio de maior torcida da cidade”, onde “a população inteira correria para ver o cotejo”. Explicava o maior de todos, o Mário Filho: “Por que o Flamengo tornou-se o clube mais amado do Brasil? Porque o Flamengo se deixa amar à vontade…”.
Para fechar mais uma gloriosa página do Flamengo, de novo a palavra para o tricolor que mais entendeu a alma rubro-negra, Nelson Rodrigues: “Por onde vai, o Rubro-Negro arrasta multidões fanatizadas. Há quem morra com seu nome gravado no coração, a ponta de canivete. O Flamengo tornou-se uma força da natureza e, repito, o Flamengo venta, chove, troveja, relampeja. Cada brasileiro, vivo ou morto, já foi Flamengo por um instante, por um dia”. Uma vez Flamengo, Flamengo além da morte.





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