O ano 1936 é um dos mais importantes da história do Flamengo, graças ao maior presidente do Flamengo, que deu seu nome ao estádio da Gávea que ajudou a construir, José Bastos Padilha. E José Bastos Padilha foi muito além do estádio, ele transformou Flamengo. Escreveu Roberto Assaf no Jornal do Brasil em 2002: “Foi Padilha quem convenceu os companheiros de diretoria a abandonarem o regime amador e embarcarem em 1933 no trem do profissionalismo no futebol, a realidade que sócios românticos insistiam em ignorar. Foi Padilha quem abriu as portas do Flamengo para os jogadores negros, delicadamente afastados do clube até 1934, por uma maioria racista que frequentava o clube. Graças à compra dos passes de craques como Domingos da Guia, Médio, Fausto, Waldemar de Brito e principalmente Leônidas da Silva, o Flamengo, até então apenas um clube popular, tornou-se um fenômeno das massas. Logo, trouxe da Europa o húngaro Dori Krüschner, o técnico que revolucionou taticamente o futebol brasileiro. Padilha foi o primeiro “marqueteiro” do futebol, empreendendo campanhas de adesão ao rubro-negro, baseadas em slogans que criou, como “Uma vez Flamengo, Flamengo até morrer”, que veiculava no Jornal dos Sports, o diário que adquiriu para transformar, disfarçadamente, no jornal do Flamengo, algo fabuloso para a época”.
O grande jornalista Mário Filho, que deu seu nome ao estádio do Maracanã que ajudou a construir e que nesse mesmo ano de 1936 tornou-se o redator-chefe do Jornal dos Sports, escreveu na sua obra clássica O Negro no futebol brasileiro: “Indo em busca do preto, o Flamengo ia de encontro ao gosto do povo. Queria ser o clube mais querido, mais popular do Brasil”. O ano de 1936 é o terceiro ato do nascimento do Flamengo: 1895 e o remo, 1911 e o futebol, 1936 e o povo. José Bastos Padilha começou a contratar os melhores jogadores do momento, na maioria jogadores negros. Fausto foi o primeiro a chegar no clube, depois ainda teve Newton Canegal, Médio, Jarbas, Waldemar de Brito, mas sobretudo Leônidas da Silva. Foi ele que ajudou a transformar Flamengo, o time dos ricos dissidentes e rebeldes, advogados e médicos, se tornava o clube do povo.
Mais do que a imprensa escrita e o Jornal dos Sports, meio dos alfabetizados, foi o rádio que também ajudou a transformar o Flamengo. Nesse mesmo ano de 1936, foi inaugurado o Radio Nacional no Rio de Janeiro, que passou a retransmitir todos os jogos do Flamengo, no Brasil inteiro, para o povo todo. E Flamengo era o povo, se construiu, como em 1911, em oposição ao Fluminense. O time das Laranjeiras gosta de se orgulhar de ter no seu time o mestiço Carlos Alberto, filho de fotografo, já em 1914. Como se Fluminense lutou contra racismo, contra preconceitos, contra a desigualdade social. Carlos Alberto era rico, por isso era aceito no Fluminense, que lutou durante muito tempo contra a profissionalização, que permitia a inserção dos pobres no futebol da elite. Pobre nas Laranjeiras, nem pensar.
Flamengo abriu as portas do clube para os pobres e os negros, Fluminense abriu as portas para os italianos e os paulistanos. Chegaram Romeu, Tim, Demósthenes ou Hércules. Em 1912, Flamengo passou das regatas ao futebol, e em 1936, Flamengo passou da elite ao povo, sendo como maior exemplo o centroavante e ídolo Leônidas. E o Fla-Flu se transformou mais uma vez em 1936, virou a elite contra o povo, o pó-de-arroz contra o pó-de-carvão. O pobre, o favelado, o negro, tinha um time para torcer, tinha Flamengo para amenizar a dureza da vida, para colocar alegria no dia a dia.
Como o calendário gregoriano, Flamengo começou o ano de 1936 no 1° de janeiro. Começou em Curitiba, no Couto Pereira, com uma vitória 3×2 sobre Coritiba, dois gols de Caldeira, um de Jarbas. No time, tinha também um futuro grande treinador, Zezé Moreira. Depois de outros amistosos no Paraná, Flamengo voltou a jogar contra Coritiba, agora para a Taça João Viana Seiler. E Flamengo conquistou a taça, goleou Coritiba 7×2, com dobletes de Nelson, Jarbas, Caldeira e mais um gol de Alfredinho. E no time, mais um futuro grande técnico, o então goleiro Dorival Knipel, chamado de Yustrich pela semelhança com outro goleiro, o argentino Juan Elias Yustrich.
Flamengo ainda jogou dois amistosos contra a Portuguesa, o primeiro no estado de São Paulo e o segundo no Rio de Janeiro, nas Laranjeiras. No primeiro jogo, o arbitro da partida era bem conhecido, Arthur Friedenreich, maior jogador brasileiro da era do amadorismo e que tinha pendurado as chuteiras um ano antes, no próprio Flamengo. Outro nome conhecido é Flávio Costa, técnico do Flamengo, que tinha 30 anos na época. Como jogador, Flávio Costa fez toda a carreira no Flamengo, entre o time titular e o time reserva. Era um meio-campista jogando na base da raça, chamado de Alicate por sua capacidade a correr em campo e recuperar bolas. Em 1934, ainda jogador, começou a treinar o Flamengo. Revolucionou a profissão de técnico e ainda hoje, certamente para sempre, é o técnico que mais dirigiu Flamengo, 777 jogos em 5 passagens entre 1934 e 1965. Uma lenda rubro-negra.
Em 1936, três anos depois da oficialização do profissionalismo, Flamengo jogou o Torneio Aberto, um torneio em mata-mata criado um ano antes e onde quase todos os times, amadores ou profissionais, de Rio de Janeiro ou do Minas Gerais, podiam participar. Em 1936, 47 times participaram do torneio e Flamengo começou contra Modesto, time de Quintino, terra do Zico. Flamengo começou sem modéstia, com goleada 6×2, 3 gols de Jarbas, 2 gols de Alfredinho, 1 gol de Caldeira. Em seguida, goleou Villa Joppert 9×2, com dobletes de Sá, Jarbas e Engel e um hat-trick de Alfredinho, e goleou Bandeirantes 8×2, destaque para os 5 gols de Alfredinho, ídolo um pouco esquecido na história gigante do Flamengo, mas que, depois de brilhar no Fluminense, foi artilheiro do Flamengo em 1934, 1935 e 1936, antes de voltar ao Fluminense. Uma lenda do Fla-Flu.
Entre dois jogos do Torneio Aberto, Flamengo jogou alguns amistosos, único meio de ganhar dinheiro no início do profissionalismo, o marketing ou a televisão ainda eram muito longe do futebol. No 21 de maio de 1936, teve o primeiro Fla-Flu do ano, muito longe de ser o último, com um empate 2×2, com 2 gols de Alfredinho, lenda do Fla-Flu. Em amistosos, Flamengo venceu tanto o Atlético Mineiro que o Cruzeiro. Ainda em amistosos, Flamengo também goleou tanto Bonsucesso 7×1, com 4 gols de Alfredinho, que Estrela do Norte 8×2, com 6 gols de Alfredinho, igualando o recorde de mais gols num jogo de um jogador do Flamengo, que pertencia a Nélson, que fez 6 gols em 1933 num 16×2 contra River. Nesse jogo contra Estrela do Norte, o técnico Flávio Costa disputou em campo seu único jogo do ano, o último de sua carreira com o Manto Sagrado, e até fez um gol.
De volta no Torneio Aberto, Fla começou com mais uma goleada, 8×2 contra Bandeirantes, 5 gols de Alfredinho, mais o caminho foi mais difícil depois: vitórias 2×0 contra Engenho de Dentro e 2×1 contra Bonsucesso com um gol no último minuto da prorrogação de Alfredinho, sempre Alfredinho. Depois, mais dois amistosos contra times mineiros, uma derrota 4×2 contra o América nas Laranjeiras, e um empate 2×2 contra Cruzeiro no estádio Juscelino Kubitschek em Belo Horizonte. O primeiro jogo marcou a primeira partida de Leônidas com o Manto Sagrado, o segundo marcou o primeiro tento de Leônidas com o Maior do Rio. Sem dúvida, uma nova Era para o Flamengo, que via o início de quem será seu maior ídolo na primeira metade do século XX, um ídolo imortal e já eternizado nesse blog.
De volta no Torneio Aberto, agora no quadrangular final, com Fluminense, America e Bonsucesso. E Flamengo começou com um Fla-Flu, o segundo do ano, que, como o primeiro, acabou num 2×2. Mas esse Fla-Flu do 16 de agosto de 1936 nas Laranjeiras é ainda mais histórico. Pela primeira vez, Flávio Costa escalava os três maiores jogadores brasileiros da década, três pretos, Domingos na zaga, Fausto no meio e Leônidas no ataque. Ainda tinha Médio, irmão de Domingos, e Jarbas, que chegou no clube em 1933 e é considerado o primeiro jogador negro do Flamengo. O clube rubro-negro tinha 5 jogadores no seu time que eram negros, um time metade negro, metade rubro, cem por cento Flamengo. Uma nova Era para o Flamengo, uma nova Era para o Fla-Flu, uma nova Era para o futebol brasileiro.
Ainda no Torneio Aberto, Flamengo venceu o America 2×1, 2 gols de Leônidas, e empatou 1×1 contra Bonsucesso, gol de Alfredinho. O novo e o antigo artilheiro para um Flamengo que talvez, provavelmente, nunca tinha sido tão forte. Flamengo precisava de uma vitória no último jogo para ser campeão, abriu o placar contra o Bonsucesso com gol de Alfredinho, mas cedeu o empate e teve que ir numa decisão extra em dois jogos contra… Fluminense obviamente. No jogo de ida, 1×1, gol de Jarbas para Fla, gol de Hércules para Flu. No jogo de volta nas Laranjeiras, um Flamengo poderoso, com Domingos na defesa, com Fausto no meio, com Leônidas no ataque, com 17.393 espectadores, publico muito bom para a época, com gol de Sá, o único gol da partida. Flamengo campeão, em cima do Fluminense.
Quatro dias depois, Flamengo estreava no campeonato carioca, disputado entre apenas 6 equipes numa época ainda de conflito no Rio sobre o profissionalismo. O ano de 1936 também foi o último ano de dois campeonatos cariocas distintos, o da LCF, com Flamengo e Fluminense, e que defendia o profissionalismo, e o da FMD, com Botafogo e Vasco, ligada a CBD e ainda defensor de uma Era sem mais sentido do amadorismo. Flamengo começou o campeonato carioca com vitória 2×1 sobre Bonsucesso, com 2 gols de Alfredinho, um artilheiro nato. Depois, um empate contra America e goleadas contra Jequiá e a Portuguesa, depois, mais um Fla-Flu, mais uma vitória rubro-negra, gols de Leônidas e Nelson. Depois, de novo, um empate contra America e goleadas contra Jequiá e a Portuguesa, com dois hat-tricks de Leônidas nos dois últimos jogos. Flamengo perdeu o sexto Fla-Flu do ano, apesar de um gol de Ladislau, também preto, também irmão de Domingos, e que tinha jogado no Flamengo para uma excursão no Uruguai em 1933, primeira abertura do Flamengo aos jogadores negros.
E veio uma vitória 4×0 contra Bonsucesso, com doblete de Jarbas e, claro, gols de Leônidas e Alfredinho. Como o campeonato carioca tinha apenas 6 times, a LCF organizou um terceiro turno, todos jogando contra todos. Para Flamengo, derrota contra America, vitória contra Bonsucesso e empate para mais um Fla-Flu, 1×1, gols dos ídolos, o negro do subúrbio carioca Leônidas para Flamengo, o italiano de São Paulo Romeu para Fluminense. Mais um capítulo para a lenda do Fla-Flu. Flamengo ainda venceu a Portuguesa, goleou Jequiá 8×1 com 4 gols de Sá e chegou empatado com Fluminense no topo da tabela: 10 vitórias, 3 empates e 2 derrotas. Os dois times tinham 16 gols contra, mas Fluminense marcou 57 gols, contra 44 para o Flamengo. Mas nessa época, não tinha esse critério de desempate e o campeonato carioca 1936 se decidiu com 3 jogos em finais, com 3 Fla-Flu.
Antes da final, dois amistosos para Flamengo contra Villa Nova, time mineiro. No estádio Presidente Antônio Carlos de Belo Horizonte, um empate 3×3, e nas Laranjeiras, a Nação ainda não tinha a Gávea, outra obra do presidente José Bastos Padilha, Flamengo venceu Villa Nova 4×2 com 2 gols de Leônidas. No 20 de dezembro de 1936, começou a final do campeonato carioca, com o oitavo Fla-Flu do ano, o Fla-Flu 70 da história, com um retrospecto equilibrado: 25 vitórias do Flamengo, 23 empates, 21 vitórias do Fluminense. E em 1936, deu mais um empate, com gols de ídolos, Jarbas e Leônidas para Flamengo, Russo e Hércules para Fluminense. Infelizmente, no segundo jogo, Russo e Hércules voltaram a marcar, agora um doblete para cada um e Flamengo foi goleado. Precisando da vitória no terceiro jogo, Flamengo viu Leônidas ser expulso e Fluminense conquistou um título que não ganhava desde 1924.
Mesmo sem o título no final, o ano de 1936 foi um grande ano para o Flamengo, principalmente para a chegada de novos ídolos negros, Fausto, Domingos e Leônidas, que ajudou também a mudar o Fla-Flu, que voltará a ser o grande jogo das edições seguintes do campeonato carioca, agora único, entre 1937 e 1941. Para seu primeiro ano no clube, Leônidas fez 22 gols e o artilheiro do ano foi Alfredinho, com números impressionantes: 45 gols em 39 jogos. Alfredinho batia assim o recorde de Nonô, também às vezes considerado como o primeiro jogador negro do Flamengo por ser mulato. Nonô fez 30 gols em 1925 e morreu jovem, da tuberculose em 1931, um ano depois de pendurar as chuteiras com 31 anos de idade. Nonô foi o primeiro jogador do Flamengo a alcançar os 100 gols com Flamengo, Alfredinho o segundo. Alfredinho ainda fez em 1937 um jogo, e dois gols, com o Manto Sagrado, e voltou ao Fluminense, clube onde tinha jogado entre 1926 e 1933, e escreveu novos capítulos do Fla-Flu.
Fecho essa crônica com o grande presidente rubro-negro José Bastos Padilha, que mudou a história do Flamengo e que fez do Flamengo o mais popular do Brasil. Uma vez Flamengo, Flamengo até morrer.








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