A camisa 16 pode ser camisa de goleiro, então para a 16a crônica, vamos de um goleiro, de um monumento no Flamengo. Que os grandes goleiros do Flamengo, de Fernandinho a Diego Alves, sem esquecer de Yustrich, Jurandir, Garcia, Cantarelli, Zé Carlos, Gilmar Rinaldi e outros me perdoam, ou talvez nem precisa porque eles vão concordar comigo, mas só vejo dois candidatos ao posto de maior goleiro da história do Flamengo: Raul e Júlio César. Não vi ao vivo os dois, comecei a acompanhar Flamengo em 2005 e o melhor que eu vi foi Bruno, mas, por causa das coisas que ele fez fora, ele nunca terá sua crônica aqui. Fica dois candidatos, e eu vou de ordem cronológica, começo com Raul.
Nascido no 27 de setembro de 1944 no Paraná, começou sua carreira de goleiro no Athletico Paranaense, jogou no rival Coritiba, também jogou no São Paulo, mas foi no Cruzeiro que escreveu o primeiro grande capítulo de sua carreira. Nos meados dos anos 1960, o futebol brasileiro ainda era limitado quase apenas ao eixo Rio – São Paulo, até a final da Taça Brasil 1966, entre Cruzeiro e Santos. No Mineirão, um baile cruzeirense contra o Santos de Pelé, 5×0 no intervalo, 6×2 no final. No Pacaembu, Santos, que tinha conquistado as 5 últimas edições da Taça Brasil, ainda era favorito, mas perdeu 3×2. Cruzeiro é campeão, Cruzeiro mudou para sempre o futebol brasileiro. E ao lado dos craques Tostão e Dirceu Lopes, Raul, goleiro de apenas 22 anos, foi decisivo, parando até Pelé. Para a revista francesa Lucarne Opposée, escrevi um artigo sobre esse título do Cruzeiro e tive a sorte e a alegria de entrevistar Raul Plassmann, uma lenda cruzeirense.
Não vou falar mais sobre o jogo contra Santos, mas deixo aqui as palavras de Raul sobre a camisa amarela que ele já usava na época de Cruzeiro: “Quando comecei a jogar no Cruzeiro, ninguém trocava camisa, você jogava dois ou três anos com a mesma camisa. Quando fiz meu primeiro jogo no Cruzeiro, o goleiro titular era muito pequeno. A camisa dele não entrava, resolvi pegar um moletom de frio que o lateral esquerdo Neco usava. Ele me emprestou a camisa, fiz um número 1 de esparadrapo atrás da camisa. Teve muita repercussão porque era uma camisa de cor e todo goleiro usava uma camisa cinza ou preta. O presidente do Cruzeiro gostou muito, achava que dava sorte porque era muito supersticioso e ele mandou fazer 10 camisas amarelas para mim. Comecei a usar mais por causa da vontade do presidente e do clube”. Raul criou um novo habito para os goleiros e fez parte do maior Cruzeiro de todos os tempos, ganhando muito títulos, a Taça Brasil sim, o pentacampeonato mineiro entre 1965 e 1969 também, outros 5 campeonatos mineiros na década de 1970, e ainda mais importante, a primeira Copa Libertadores do Cruzeiro, o segundo clube brasileiro a ganhar a Libertadores depois do Santos de Pelé, em 1976. Uma lenda do Cruzeiro.
Mas esse blog é sobre Flamengo e Raul virou uma lenda do Flamengo. Chegou no Maior do Mundo em 1978, depois da Copa do Mundo que ele não jogou. Na Seleção, estreou em 1968 com um amistoso contra a Argentina no seu Mineirão, e depois só voltou a jogar em 1975 durante a Copa América, onde o Brasil foi eliminado num sorteio duvidoso. Conquistou em 1976 a Taça do Atlântico, a Copa Roca e o Torneio Bicentenário dos Estados Unidos, sem ser o goleiro titular. No Flamengo, Raul estreou num Fla-Flu na Espanha e logo conquistou o Troféu Cidade de Palma de Mallorca, com uma vitória 2×1 contra o poderoso Real Madrid. Era o início de uma nova Era no Flamengo, que tinha uma base promissora, mas faltava alguns lideres para transformar o potencial em potência. Raul Plassmann foi um deles.
Raul chegou no Flamengo com quase 34 anos, já veterano, quase um velho, inclusive um apelido dele. Para mim, o Flamengo de 1978-1983 é um dos 10 melhores times de toda a história do futebol e cada grande time, ou quase, começa com um grande goleiro. Foi o caso do Flamengo de 1978-1983. E a ajuda de Raul não foi só no gol, também foi no vestiário, onde com Paulo César Carpegiani, que chegou um ano antes, ajudou os jovens, Zico e Rondinelli, também já lideres, e depois Júnior, Leandro, Adílio, Tita e todos que fizeram do Flamengo o campeão de tudo. “Todos aqueles bons resultados foram consequência da política do clube de valorizar a prata da casa, mas, por outro lado, contratando aqui e ali jogadores experientes, como foram os casos do Raul e do Carpegiani. Assim, quem vinha das categorias de base já encontrava um suporte. Oitenta por cento do elenco se identificava com o clube e isso contagiava quem vinha de fora” explica Júnior no livro Os dez mais do Flamengo de Roberto Sander. Flamengo começou a ganhar no Rio de Janeiro, com o tricampeonato carioca 1978-1979-1979 Especial.
Depois do Rio, o Brasil, e o Brasileirão 1980 conquistado em cima do Atlético Mineiro. No jogo de ida no Mineirão, Flamengo perdeu 1×0, gol de Reinaldo. Os jovens jogadores do Flamengo não se assustaram com a derrota em Belo Horizonte, até comemoraram o resultado no vestiário. Relembra Raul no livro 6x Mengão de Paschoal Ambrosio Filho: “Estava a maior festa. Todo mundo se abraçando. Parecia que a gente tinha ganhado o título. Aí eu perguntei ao Júnior: ‘Ô cara, que festa é essa? Parece até que a gente já é campeão’. O Capacete respondeu com um sorriso: ‘E você acha que a gente vai perder pra eles lá no Maraca, Véio?’ Aí eu também entrei na festa”. No Maracanã, Flamengo ganhou 3×2 e foi campeão em cima do maior rival do Cruzeiro, que também ia ser o maior rival do Flamengo fora do Rio. Flamengo campeão do Rio, campeão do Brasil. E Raul ídolo do Flamengo.
Para sua primeira participação na Copa Libertadores, Flamengo chegou até a final e no dia 23 de novembro de 1981 no Centenário, foi campeão da América, o terceiro clube brasileiro a conquistar a Copa Libertadores depois do Santos de Pelé e do Cruzeiro de Raul. E teve a oportunidade de conquistar o Mundo, lá no Japão, contra Liverpool, no dia 13 de dezembro de 1981, jogo mais importante da grande história do Flamengo, para mim e para Raul também. Mais um trecho de minha entrevista com Raul, com uma pequena história que eu acho sensacional: “No Flamengo, eu usei camisa amarela e camisa verde também, as camisas chegavam para mim. Quando fomos decidir o Mundial contra Liverpool no Tóquio, todo mundo sabia que eu era o goleiro que ficou marcado pelo fato de usar camisa amarela. Nós fomos para Los Angeles, ficamos três dias por causa do fuso horário, para minimizar um pouco a diferença no Japão. O Domingos Bosco, que era o supervisor, me falou: ‘Raul, nós esquecemos sua camisa, você não tem camisa para jogar. Vou sair em Los Angeles para comprar uma camisa’. Falei: “Mas Bosco, aqui não tem futebol, só tem beisebol, basquete, você não vai encontrar”. Ele entrou numa loja de roupas comuns e, olha como é a vida, ele comprou outro moletom, igualzinho ao do Neco, lateral do Cruzeiro. Idêntico, igualzinho, parecia um replay de minha vida”.
Com uma camisa amarela, sem o escudo do Flamengo, Raul conquistou o Mundial, mas apareceu pouco durante o jogo contra Liverpool. “Fiquei meio frustrado porque não participei do jogo. Só veio uma bola. O Flamengo podia ter jogado sem goleiro, que seria 3 a 1”, explicou Raul no livro 20 jogos do Flamengo de Marcos Eduardo Neves. Raul não foi decisivo no Mundial de 1981, mas foi no Brasileirão de 1982. Nas quartas de final, contra Santos no Maraca, Raul fez várias defesas. No jogo de volta da final contra Grêmio, Raul jogou machucado, jogou com a braçadeira de capitão cedida pelo Zico, jogou muito, com defesaças, preservou o 0x0, preservou as chances de Flamengo de ser campeão. A maior defesa foi a mais polêmica, Grêmio viu uma mão de Andrade na grande área, mas foi defesaça de Raul, foi legal, em todos os sentidos da palavra. No desempate, Raul recusou a braçadeira oferecida mais uma vez pelo Zico, achando normal Zico levantar a taça de campeão. Dois jogadores de classe, dentro e fora do campo. E com um 1×0 gol de Nunes, o capitão Zico levantou a taça, o Flamengo foi campeão.
Alguns meses depois, a Seleção brasileira perdia o Tetra na Sarrià. Acho que Telê errou na escalação do time, no gol, no meio de campo e no ataque. Acho que o melhor goleiro brasileiro no momento era Emerson Leão. Mas, pelo caráter dele, é compreensível não o levar na Copa. Agora, acho que dos três goleiros que foram na Copa, o melhor e o que deveria ter sido titular era Carlos. Mas eu acho que Raul merecia, não apenas ir na Copa de 1982, mas também ter o lugar de titular. Talvez com ele a história seria diferente, afinal se Raul provou uma coisa na vida, é que ele sabe ganhar títulos, e muitos. Mas a história é assim e parece que Raul não tem mágoa, declarando na época: “Quem joga no Flamengo não precisa de Seleção”. Até porque Flamengo é uma Seleção. Em 1983, mais um replay na vida de Raul, mais um título brasileiro com o Flamengo, dessa vez contra Santos, com 155.523 torcedores no Maracanã para ver o 3×0, para ver o tricampeonato.
Com 39 anos, ainda titular num dos maiores times do mundo, Raul pendurou as luvas e a camisa amarela no fim do ano de 1983. Teve um jogo de despedida no Maracanã em 1983, onde cedeu o lugar para o novo goleiro do Flamengo, Abelha, que não repetiu a mesma história. Um Raul, um só. Flamengo perdeu 3×2 contra uma seleção de amigos e Raul voltou ao Maracanã quase 7 anos depois para despedida de outro ídolo, o maior de todos, Zico. Dessa vez, Raul saiu do gol durante o jogo para a entrada de Cantarelli. Então, acho justo no meu jogo fictício do Flamengo de todos os tempos, Raul ceder seu lugar ao Júlio César no decorrer do jogo.
Fecho essa crônica com mais um trecho de minha entrevista de Raul, sobre a camisa amarela usada no 3×0 contra Liverpool, sem o escudo do Flamengo por causa de ser um simples moletom de Los Angeles: “Sempre me senti incomodado por não ter o escudo no peito para a decisão mundial do Flamengo, no jogo mais importante da vida do clube. Então, fui ao Flamengo pedir licença e pago Flamengo para produzir minhas camisas de goleiro que representam o título mundial. Coloquei o escudo do Flamengo, por isso que eu paguei Flamengo. Eu fiz 500 camisas comemorativas, Cidel comprou uma”. Cidel é o presidente da Fla Paris, e Raul é mais um ídolo do Flamengo a ser presente para as embaixadas e consulados do Flamengo e para os flamenguistas em geral. Durante suas férias em Paris, Raul até encontrou membros da Fla Paris para visitar a Cidade Luz. Faltei o encontro, eu já estava no Rio, mas pretendo ir daqui a pouco no Minas Gerais e gostaria de encontrar Raul, fazer mais uma entrevista, para falar do Cruzeiro multicampeão, e claro, da instituição do Flamengo, protegida muitas vezes pelo talento, pela raça e pela camisa amarela de Raul.








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