Com 5 dias sem jogo do Flamengo, tem tempo para mais um jogo eterno, um dos mais importantes da história do clube. O rival é o maior, Vasco. O ano é 1944, fim de guerra na Europa, o que terá sua importância para o futebol carioca. O Flamengo era o bicampeão carioca 1942-1943, o Vasco era no início do Expresso da Vitória com alguns craques como Lelé, Isaías, Chico e Ademir e os argentinos Berascochea e Rafanelli.
Flamengo ganhou o campeonato carioca 1942 facilmente, o campeonato carioca 1943 menos facilmente, e em 1944 foi ainda mais difícil. Domingos foi vendido ao Corinthians e o atacante Perácio, conhecido como “o homem do chute mortal”, se juntou a Força Expedicionária Brasileira e foi combater o fascismo na Itália. A guerra tinha consequências até no Brasil, Palestra Itália virou Palmeiras ou Cruzeiro, e Flamengo, sem Perácio, estava sem força ofensiva. Jacir, Sanz, Djalma ou Tião, ninguém convencia o exigente técnico Flávio Costa. Flamengo perdeu 5×2 do Botafogo e estava 7 pontos atrás do líder. O campeonato, o tricampeonato, era quase perdido. Quase.
Sem Domingos e sem Perácio, Flamengo também estava sem Agustín Valido. Argentino, o atacante Valido jogou no Boca Juniors e Lanús antes de ir em 1937 no Brasil e no Flamengo. Era o início do platinismo, onde o Brasil achava que era bem inferior ao futebol do Uruguai e sobretudo da Argentina. Muitos clubes, sobretudo Flamengo e Fluminense, compraram jogadores argentinos ou uruguaios. Valido, Arcádio Lopez, Artur Naon, Raimundo Orsi, Agustín Cosso, Sabino Coletta, Carlos Volante e Alfredo González para Flamengo, Armando Reganeschi, Esteban Malazzo, Angel Capuano, Luis Maria Rongo e Américo Spinelli para Fluminense. Tinha até técnicos, como o uruguaio Ondino Viera, treinador do Fluminense entre 1938 e 1942, do Vasco a partir de 1942. Muitos argentinos, mas ninguém jogou tanto que Valido. Foi campeão carioca em 1939 ao lado de Leônidas e Domingos, com 12 gols em 22 jogos. Em 1942, ele fez contra Canto do Rio o primeiro gol da campanha vencedora do campeonato carioca. Jogou, ao lado de Newton Canegal e Jayme de Almeida, todos os 27 jogos do campeonato carioca 1942 mas com 29 anos, pendurou as chuteiras antes do campeonato carioca 1943 para cuidar de seus negócios.
Sem Domingos, sem Perácio, sem Valido, Flamengo apanhou 5×2 do Botafogo, sentou-se em campo, mas reagiu. Ganhou 5 jogos consecutivos até uma goleada 7×1 contra Bangu no General Severiano. Flamengo estava de volta no campeonato. O grande Roberto Sander escreveu no seu livro Anos 40: Viagem à década sem Copa: “Na semana seguinte a esse jogo um encontro mudaria de vez o rumo do campeonato. Foi quando o então aposentado Valido apareceu na Gávea para visitar os ex-companheiros e pedir a Flávio Costa o campo emprestado para um jogo dos funcionários de sua gráfica. Como tinha todo crédito, o campo foi cedido. No dia da partida, Valido, na ausência de um funcionário, acabou jogando. Flávio estava por perto e ficou impressionado com o quanto ex-jogador ainda estava em forma. Fez um apelo para que ele voltasse ao Flamengo. Mesmo surpreso, Valido aceitou o desafio”. Valido foi inscrito na federação como amador, fez dois treinos, e jogou o Fla-Flu. Outro desafio para o Flamengo era a reforma do estádio da Gávea, com a proibição das tribunas de madeira. Em menos de um mês, Flamengo construiu arquibancadas de cimento e botou o Fla-Flu na Gávea.
E Flamengo goleou Fluminense, 6×1. Mesmo sem marcar, Valido fez um grande jogo, alimentando Pirillo, autor de 2 gols, e Zizinho, que fez um gol. Valido se exaustou, quase até cair em campo. Explicam Roberto Assaf e Roger Garcia no livro Grandes jogos do Flamengo da Fundação ao Hexa: “O esforço empregado no clássico, disputado sob forte calor, deixou Valido desidratado, com uma febre que permaneceu por toda a semana e, portanto, afastado da partida contra o Vasco, no domingo 28, que decidiria o campeonato. Nesse dia, embora ainda um tento debilitado, Valido foi à Gávea, como mero espectador. Flávio Costa tinha pelo menos três jogadores para a ponta direita: Jacir, Nilo e Tião. Mas resolveu contrária às recomendações, e até o bom senso, escalando o seu ex-jogador. O treinador tinha quase 20 anos de clube, quatro títulos cariocas, um deles como jogador, nos idos de 1927, e ninguém ali ousava questioná-lo”. Explicaria também depois Valido: “Passei a semana com febre. Eu estava magro, abatido, mas me obrigaram a entrar”.
Antes do jogo, o jogo preliminar com os reservas, incluindo Jair Rosa Pinto para Vasco, cortado do jogo principal por falta de raça. Valido tinha raça e entrou no jogo no sacrifício. Já no meio-dia, a Gávea estava cheia, com quase todos os 20.308 espectadores do jogo já presentes para o jogo. No dia 29 de outubro de 1944, Flávio Costa escalou Flamengo assim: Jurandir; Newton Canegal, Quirino, Biguá; Modesto Bria, Jayme de Almeida; Valido, Zizinho, Pirillo, Tião, Vevé. No preliminar do jogo, uma vitória 5×1 do Vasco com 4 gols de Jair Rosa Pinto. Nas páginas do Jornal do Brasil, uma enquete para saber quem ia marcar o gol do título: 1.522 pessoas apostavam no Ademir, outros 1.218 no Pirillo e 437 loucos esperavam ver o aposentado Valido marcar o gol do Tri. O aposentado e debilitado Valido, que passou quase todo o jogo na ala direita, apenas fazendo o número. Se as substituições fossem autorizadas na época, provavelmente Valido teria deixado o jogo. Mas não tinha, só tinha Valido, sem correr, sem chutar, sem pular.
Vamos então no minuto 41 do segundo tempo, um minuto quase tão eterno no Flamengo x Vasco que o minuto 43 do segundo tempo, imortalizado 57 anos depois. Em 1944, na Gávea, o placar ainda era 0x0, um placar que oferecia um final em 3 jogos. Numa falta de Vevé, Valido, sem força para pular, se apoiou nas costas do Argemiro para fazer o gol da cabeça, o gol do Tri. Foi falta sim, mas o juiz não viu ou não apitou, foi gol válido de Valido, foi o gol do primeiro tricampeonato do Flamengo. Foi uma explosão na Gávea, uma certeza de felicidade, uma invasão no campo dos 20.308 torcedores, e até mais, como relembra Zizinho: “Quando a bola atingiu a rede vascaína, houve uma invasão de campo como eu nunca havia visto. Até os soldados que eram todos Flamengo, juntaram-se à torcida e o campo ficou totalmente tomado por aquela multidão que vibrava enlouquecida de alegria”. Flamengo campeão, Flamengo tricampeão.
Pirillo fez 15 gols em 16 jogos, Zizinho 8 gols nos 18 jogos do campeonato e o soldado Perácio 3 gols em 5 jogos antes de ir na Itália. Mas o herói da guerra foi Valido, com um gol que criou uma nova rivalidade entre Flamengo e Vasco. “Se o clube já era popular, com essa conquista obtida na base de heroísmo, ficou ainda mais, pois, a partir daí, se criou a mística da camisa rubro-negra de buscar as vitórias na pior adversidade. Pelo lado do Vasco, a frustração foi enorme. Sentiu-se como se alguém lhe houvesse tirado o doce da boca”, escreveu Roberto Sander. Os vascaínos choram até hoje desse gol de Valido não legal para eles, muito legal para nós. José Lins do Rego, nove dedos na literatura e um no futebol, escreveu: “Para o Brasil, o Tri do Flamengo é mais importante que a Batalha de Stalingrado”. Mas confesso que prefiro a palavra de Ary Barroso, dez dedos na música, uma voz no microfone e um coração flamenguista, sobre a suposta falta de Valido: “Ele se escorou sim. E teria sido melhor ainda se estivesse impedido e feito com a mão…”.
Fecho essa crônica com as palavras de Valido, argentino e flamenguista, ainda emocionado 50 anos depois do gol do Tri: “Posso relembrar a história desse gol, que me fez entrar definitivamente para a história do meu clube de duas maneiras. Na primeira, eu digo que não adianta contar a verdade, porque os vascaínos preferem a mentira. Então, eu vou dizer: trepei mesmo no Argemiro para cabecear. Na segunda, explico que não posso deixar de elogiar o cruzamento do Vevé, que veio perfeito, tanto que só tive o trabalho de meter a cabeça na bola para tirá-la do Barqueta. Mas acredite: ela veio tão forte e pesada que fiquei com a testa roxa por 15 dias. E vou dizer: eu não estava me sentindo muito bem, pelo menos para jogar, mas aqueles eram outros tempos, a gente tinha sobretudo amor à camisa e eu não ia deixar uma chance daquelas passar. Além disso, os companheiros insistiram e o Flávio Costa acabou me escalando. Naquele dia, quem me ajudou foi Deus. Mas também devo tudo isso ao presidente José Bastos Padilha, o maior que o clube teve em todos os tempos, que me contratou. Aquele gol e o tricampeonato representaram um fecho de ouro para mim, pois desde a Argentina sempre sonhei em atuar no Brasil, onde só encontrei felicidade e glórias. Depois do jogo, tive uma crise nervosa tão grande que fui obrigado a sair do Rio para me recuperar. Muita emoção. Então, resolvi dar um adeus, aí, sim, definitivo, ao futebol. Mas olha, na verdade nunca consegui me desligar completamente do Flamengo”.








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