Ídolos #17: Zizinho

Ídolos #17: Zizinho

Eu já falei que gosto de separar a história do Flamengo do pré-Zico e do post-Zico de tanto ele mudou o clube. E no período de 1912 até 1971, acho que teve três ídolos máximos: Leônidas, de quem já falei aqui, Zizinho, e Dida, de quem falaria um dia. Mas hoje a crônica é sobre Zizinho. Para o descrever, basta dizer que Zizinho foi o maior ídolo de Pelé e a maior inspiração de Didi, que explica na sua autobiografia: “Ziza era pura magia. Além do mais, tinha um dom especial. Colocava a bola aonde queria. Conheci goleiro que não dormia na véspera. Tinha pesadelos com o Zizinho”.

Começo essa crônica com uma anedota sobre Zizinho, que pelo que eu sei, só aconteceu com ele e o próprio Pelé. Num jogo amistoso, Zizinho foi expulso pelo juiz. Mas o promotor do jogo não deixou e preferiu expulsar o próprio juiz para permitir a volta de Zizinho. Esse era o futebol de Zizinho, que nasceu em São Gonçalo no 14 de setembro de 1921 e cresceu em Niterói. Fez testes em vários clubes do Rio, não foi aprovado, até o teste na Gávea. E a tarefa não era fácil: substituir nada menos que o Leônidas. No jogo-treino, Zizinho perdeu sua primeira bola, fez dois golaços em seguida. Escrevem João Máximo e Marcos de Castro no livro Gigantes do futebol brasileiro: “Passou por um, dois, três, foi avançando até a área, driblou mais outro e chutou forte, no canto. Pouco depois, um lance parecido; nova sucessão de dribles e outro gol. Flávio e todo o pessoal do Flamengo, inclusive Leônidas, não sabiam o que dizer”. O início de uma história muito linda.

Como um presente, para ele e ainda mais para os flamenguistas, Zizinho fez seu primeiro jogo com o Manto Sagrado no 24 de dezembro de 1939, uma derrota 3×4 contra Independiente, jogo marcado também pelo gol de bicicleta de Leônidas. Zizinho jogou tanto que, completamente exausto, teve que sair a 10 minutos do fim do jogo. Claro, não vi Zizinho jogar, mas gosto de imaginar ele jogando, reinando no meio de campo. Parecia capaz de fazer tudo: defender, driblar, fazer o passe, fazer o gol. Gosto dessa frase no livro Gigantes do futebol brasileiro: “Ser completo, e cada vez mais completo, foi o segredo de Zizinho”. Posso também citar outro craque do meio de campo, outro feiticeiro de Niterói, Gérson: “Uma vez perguntaram sobre o Ziza ao Pelé, e ele respondeu: ‘Esse era o mestre’. Melhor não vai ter. É difícil definir o mestre. É a inteligência, a capacidade, o PHD. O mestre não tem explicação”.

No Flamengo, foram gols, assistências, carrinhos, corridas. Uma vez, quando pessoas criticavam Zizinho pelo seu estilo boêmio, Flávio Costa pegou a camisa de Zizinho, torceu-a, mostrou a suor e falou que Zizinho podia sair tanto que ele queria se ele continuava fazendo tantos esforços no campo. Zizinho deu vida para futebol, deu vida para o Flamengo. Em 328 jogos no Flamengo entre 1939 e 1950, fez 146 gols, um total que ainda lhe vale o décimo lugar na história do clube. Mas vale a pena repetir, Zizinho foi muito mais do que gols no Flamengo.

Zizinho também foi história de pernas quebradas. Em 1942, num jogo tenso entre as seleções paulista e carioca, Zizinho quebrou a perna de Agostinho. O próprio Agostinho, o público e a imprensa paulistas nunca o perdoaram. Zizinho chegou a ser condenado a dois meses de prisão com sursis e sempre foi vaiado pelo público paulista, até com jogos da Seleção brasileira. Na estreia do campeonato carioca 1946, Zizinho quebrou a própria perna, num choque com Adauto, jogador do Bangu. Explica Zizinho: “Foi uma estupidez minha. O jogo estava ganho, mas eu queria mais. Fui com toda a velocidade numa jogada na linha de fundo. Quando tentei cruzar, por causa do gramado irregular, acabei furando e acertando a trava da chuteira do Adauto. Ele era meu amigo e tenho certeza que não teve a menor intenção de me machucar. O pessoal do Flamengo criou um clima para que eu o processasse, mas não tinha nada a ver. Tanto que pedi que levassem o Adauto ao hospital para me visitar. Ele foi e parecia meio envergonhado. Fui logo dizendo: ‘Negão, o que aconteceu, aconteceu. Tem gente que quebra a perna andando na rua, sendo atropelado ou descendo uma escada. Eu quebrei no meu trabalho. Nós vamos continuar amigos. Esqueça isso, desça o cacete no próximo jogo, pois o que ocorreu foi um acidente’”.

Zizinho recusou-se a ir na Justiça, dizendo: “Achar que Adauto tenha me atingido de propósito é admitir má intenção minha no lance com Agostinho”. Um autêntico craque, em todos os sentidos da palavra, ao contrario de Agostinho, que mandou um telegrama para Zizinho, alegrando-se da lesão. “Doeu mais quando rachei a perna do Agostinho do que quando partiram a minha. Fiquei tão chateado que passei uns 15 dias recluso em Friburgo”, ainda fala o craque e mestre Ziza. Zizinho sofreu, trabalhou e voltou, um ano depois, na estreia do campeonato carioca 1947. E já no primeiro jogo, Zizinho quebrou de novo a perna. Ainda Zizinho: “Com o perônio partido, joguei ainda duas partidas. Só que depois da segunda, contra o Olaria, na Gávea, comecei a sentir dores terríveis. Quando saltei da barca em Niterói, não podia mais andar. Fui carregado por torcedores até em casa. Ainda por cima, chovia muito esse dia. Fiquei gelado de tanta dor. No dia seguinte, minha mãe, que era enfermeira, me levou no hospital e ficou constatado que estava mesmo com a perna fraturada. Foram mais não sei quantos meses em convalescênça”. Um guerreiro. Voltou de novo e foi eleito “jogador mais eficiente” do campeonato pelo Jornal dos Sports. Um craque.

Claro, Zizinho também foi um craque da Seleção, o líder na técnica e na raça. Estreou no campeonato sul-americano 1942 contra a Argentina e fez seu primeiro gol contra o Equador, no mesmo torneio. Em 1945, fez parte de um dos maiores times da Seleção, no campeonato sul-americano no Chile. Escreveu o jornalista Luiz Mendes no livro Os dez mais do Flamengo de Roberto Sander: “Zizinho estava em plena forma. Seu futebol era algo de extraordinário. Vê-lo jogar trazia a todos um prazer indescritível. Fazia coisas com a bola que contando ninguém acredita. Pena que não existia televisão para registrar tudo”. Infelizmente, não foi campeão, mas conquistou a Copa Roca no final do ano contra a Argentina, fazendo gol num eterno 6×2 no São Januário, ao lado de Leônidas, Ademir, Chico e Heleno, todos craques, todos fazendo gol. No início do ano de 1946, outro campeonato sul-americano, na Argentina. Zizinho fez 4 gols contra o Chile, um recorde da seleção brasileira na época, mas no jogo decisivo, a Seleção apanhou da Argentina toda, dos jogadores, do público e até da polícia, que ainda ameaçou o time se não voltava em campo. O técnico Flávio Costa pediu ao time deixar a Argentina ganhar e Zizinho pediu a substituição: “Já havia apanhado muito. Não concordava com aquilo. O Flávio Costa acabou aceitando”. Com a Seleção, o maior título de Zizinho veio no campeonato sul-americano 1949 e a maior decepção no Maracanaço de 1950. Como Leônidas, como Zico, Zizinho merecia ser campeão do mundo, mas o título não veio. Coisa de futebol.

Como falou o próprio Zizinho, a “maior mágoa de sua carreira” foi em 1950. Mas não foi a perda da Copa, foi a perda de sua maior alegria e maior orgulho, vestir o Manto Sagrado. Em 1950, um pouco antes da Copa do Mundo, Zizinho foi vendido pelo Flamengo no Bangu. Uma história de politica e uma covardia do presidente do Flamengo, Dario Melo de Pinto. Relembra Zizinho: “No início, eu nem acreditei. Foi quando o doutor Silverinha (Guilherme da Silveira Filho era patrono e presidente do Bangu) pegou o telefone e ligou para o Dário Melo de Pinto, presidente do Flamengo. Fiquei pasmo com a confirmação da história. Pedi então que ele colocasse o contrato na mesa que eu assinaria. Estava magoado pela forma com que me dispensaram. Cheguei a jogar um campeonato inteiro pelo Flamengo com o tornozelo enfaixado. Eu tirava a bota de esparadrapo depois das partidas e meu tornozelo ficava enorme, completamente inchado. Passava a semana inteira sem treinar e no domingo jogava de novo. Até com a perna fraturada cheguei a jogar. Eu me sacrifiquei demais pelo Flamengo. Merecia mais consideração”. No Flamengo, foram muitos gols, um tricampeonato carioca 1942-1944, muitas camisas cheias de suor, muitos torcedores fanáticos e conquistados com o futebol de Zizinho, mas no final, foi uma mágoa.

Foi um grande erro vender Zizinho, que ainda mostrou que ele era craque. No dia seguinte de sua transferência, fez um golaço de voleio para ajudar a seleção carioca a conquistar o Campeonato Brasileiro de Seleções. Mostrou que era craque no Bangu, no São Paulo FC onde conquistou o campeonato paulista 1957, e até na Seleção, quando fez dois gols contra o Paraguai para conquistar a Taça Oswaldo Cruz 1955. Nessa partida, Zizinho jogou ao lado de outro craque, Didi, também maravilhado com o futebol de Zizinho. Relembra Didi na sua biografia, escrita pelo Péris Ribeiro: “Quando vim para o Rio, o Zizinho era o jogador mais famoso do Brasil. Havia se consagrado como o maestro do primeiro tricampeonato do Flamengo, e tudo o que fazia, dentro e fora de campo, logo virava notícia. Era Mestre Ziza pra lá, Mestre Ziza pra cá… Mas o Ziza merecia toda aquela fama. Era seu fã. E fiquei mais fã ainda, depois de vê-lo jogar seguidamente. Com o tempo, criaram uma rivalidade entre nós. Afinal, brigávamos pela mesma posição na Seleção Brasileira. Mas o Flávio Costa, malandramente, ajeitou as coisas. Tanto que, em 1955, o Brasil foi campeão de uma Taça Oswaldo Cruz, comigo e o Ziza jogando juntos. Demos um baile no Paraguai, em pleno Maracanã. Como não podia deixar de ser, nos tornamos grandes amigos. E fico orgulhoso do Zizinho ser o maior ídolo, o grande espelho do Pelé. Quanto aos nossos estilos, costumo dizer que o Ziza levava o recado a domicílio, isto é: gostava de estragar a bola na boa, no pé do atacante. Já eu preferia mandar pelo correio, fazia o lançamento longo, de 40 metros. Além do mais, sempre gostei de pensar mais o jogo, enquanto ele gostava de correr o campo todo, como um guerreiro. Mesmo sendo um gênio da bola. E que gênio!”.

Claro, não vi jogar Zizinho, o ídolo de Pelé. Então, para fechar essa crônica, deixo a palavra para quem viu jogar, jornalistas do Brasil e de fora, como o italiano Giordano Fatori, que escreveu durante a Copa de 1950 para a Gazzeta dello Sport: “O futebol de Zizinho me faz lembrar Da Vinci pintando alguma obra rara”. Mas quem fala melhor do Zizinho ainda é o craque da literatura brasileira, Armando Nogueira: “Tinha o futebol na medula e no cérebro, no coração e nos músculos. Era, ao mesmo tempo, o pianista e o carregador do piano. Sempre suou a camisa, na derrota ou na vitória – era um operário; mas quanta beleza na transpiração de sua obra”.

12 respostas para “Ídolos #17: Zizinho”.

  1. Avatar de Ídolos #19: Zico – Francesguista

    […] máximo do Flamengo. Teve vários ídolos do Flamengo, ídolos de gerações, como Leônidas, Zizinho, Dida, Carlinhos, Leandro, Júnior, Romário, Julio César, Adriano, Obina, Hernane, Arrascaeta, […]

    Curtir

  2. Avatar de Times históricos #21: Flamengo 1951 – Francesguista

    […] mas menos dura do que no jogo do ida, quando Flamengo perdeu 6×0 contra o Bangu de Zizinho! O antigo ídolo do Flamengo foi cedido algumas semanas antes pelo presidente Dario Melo de Pinto, que ainda tentou convencer a […]

    Curtir

  3. Avatar de Ídolos #23: Modesto Bría – Francesguista

    […] no final do campeonato carioca de 1943 quando Flamengo era líder, com ídolos como Domingos, Zizinho, Jaime, Biguá e Pirilo. Um time histórico, que já tinha conquistado o campeonato carioca um ano […]

    Curtir

  4. Avatar de Ídolos #25: Rubens – Francesguista

    […] tinha conquistado o campeonato carioca desde 1944 e perdeu em 1950 o maior ídolo dos anos 1940, Zizinho, vendido num vacilação do presidente Dario de Melo Pinto, substituído logo depois pelo grande […]

    Curtir

  5. Avatar de Times históricos #24: Flamengo 1944 – Francesguista

    […] maior para você”. Uma loucura. Outra loucura de Dario de Melo Pinto foi vender outro ídolo, Zizinho, em 1950. Enfim, como Leônidas, Domingos foi fazer sucesso em São Paulo, no Corinthians, e […]

    Curtir

  6. Avatar de Ídolos #35: Friedenreich – Francêsguista, as crônicas de um francês apaixonado pelo Flamengo

    […] foi Fenômeno antes de Ronaldo, Gênio antes de Zico, Rei antes de Pelé, Mestre antes de Zizinho, foi inspiração para Leônidas e tantos outros jogadores, foi herói para todos os brasileiros e […]

    Curtir

  7. Avatar de Times históricos #30: Flamengo 1940 – Francêsguista, as crônicas de um francês apaixonado pelo Flamengo

    […] Zizinho, um ídolo do Flamengo e no Francêsguista, começou a aparecer no Flamengo no final de 1939, com dois jogos contra Independiente. Quando Leônidas brigava com a diretoria, Zizinho brilhava em campo. Aos 18 anos, já era um craque. Escreve Roberto Sander no livro Anos 40, viagem à década sem Copa: “Nesse campeonato de 1940, com apenas 18 anos, ele se tornava titular, mostrando um futebol de precoce resplendor. Apesar de não ser exatamente um homem-gol, e sim um exímio articulador de jogadas, Zizinho marcaria seis vezes. Ele era aquele típico meia, tão escasso hoje em dia, que armava o jogo e chegava à área para concluir”. Ainda Roberto Sander, agora no livro Os dez mais do Flamengo: “Em 1940, Zizinho já mostraria do que era capaz. Jogo após jogo ele se revelava um atleta de categoria superior. Suas atuações provocaram um deslumbramento tal que logo foi alçado ao posto de fora-de-série. Ele passaria a representar algo parecido com o que Leônidas representou em meados da década anterior. Tinha aquele algo mais dos gênios. Seu futebol aliava técnica, lucidez e extrema objetividade. Isso sem falar do drible fácil, dos chutes bem colocados e das penetrações insinuantes pelo campo adversário, que comumente terminavam em gol”. […]

    Curtir

  8. Avatar de Ídolos #39: Domingos – Francêsguista, as crônicas de um francês apaixonado pelo Flamengo

    […] o atacante e, depois, roubava-lhe a bola, numa fração de segundos”. Falou o companheiro Zizinho, ainda em ascensão na carreira: “Domingos foi o Pelé dos zagueiros, o melhor de […]

    Curtir

  9. Avatar de Jogos eternos #229: Flamengo 3×4 Independiente 1939 – Francêsguista, as crônicas de um francês apaixonado pelo Flamengo

    […] marcou a estreia de um jovem meio-campista, que completou 18 anos poucas semanas antes, um outro ídolo no Flamengo e no Francêsguista, Zizinho. O jovem de Niterói fez um teste no Flamengo e entrou num jogo-treino no lugar de ninguém menos […]

    Curtir

  10. Avatar de Ídolos #40: Silva Batuta – Francêsguista, as crônicas de um francês apaixonado pelo Flamengo

    […] seu primeiro título num time que tinha como ídolos Mauro, De Sordi, Maurinho, Canhoteiro e claro, Zizinho, o Mestre Ziza. Silva jogava pouco e o técnico húngaro Béla Guttmann, que sabia tudo da bola, avisou os […]

    Curtir

  11. Avatar de Times históricos #33: Flamengo 1943 – Francêsguista, as crônicas de um francês apaixonado pelo Flamengo

    […] início ao sistema 4-2-4 no Brasil. Porém, a alma do time era o outro artilheiro do Fla-Flu, o inesquecível Zizinho. No seu livro Anos 40, viagem à década sem copa, Roberto Sander escreve: “Perto de completar 21 […]

    Curtir

  12. Avatar de Ídolos #44: Valido – Francêsguista, as crônicas de um francês apaixonado pelo Flamengo

    […] dois gols, mas em dois clássicos, contra Vasco e Botafogo. Em 1942, com a consagração de mais um ídolo, Zizinho, Valido foi deslocado na ala direita e passou a fazer mais gols. Já na estreia do campeonato, mais […]

    Curtir

Deixar mensagem para Jogos eternos #229: Flamengo 3×4 Independiente 1939 – Francêsguista, as crônicas de um francês apaixonado pelo Flamengo Cancelar resposta

O autor

Marcelin Chamoin, francês de nascimento, carioca de setembro de 2022 até julho de 2023. Brasileiro no coração, flamenguista na alma.

“Uma vez Flamengo, Flamengo além da morte”