Eu já falei que eu queria escrever a crônica sobre Zico igual à carreira dele com o Manto Sagrado. Mas a perfeição não é atingível para mim e quero transformar esse blog em um livro depois de minha volta na França, que já está chegando. Zico não pode faltar nesse livro, então vem essa crônica, que até duvidei a nomear simplesmente Deus. Zico ou Deus, uma palavra de 4 letras, um sinônimo.
A torcida do Flamengo tem muita sorte de ter um ídolo com Zico. Para 99,99% da torcida, o maior ídolo do Flamengo é Zico. Mas o 0,01% que falta é ou louco ou não flamenguista, então Zico é unanimidade no Flamengo. Acho que não tem muitos outros jogadores que são tão ídolos no clube deles, tão unanimidade. Talvez Messi no Barcelona, Pelé no Santos, Maradona com Napoli. Tem o Rei do futebol e el Dios, e Zico é tudo isso, é Nosso Rei, mas também é Deus. Zico tem a realeza de um rei e a eternidade de um Deus. A Santíssima Trinidade é isso: Zico, Zico e Zico.
Zico era Flamengo antes de nascer e será depois de morrer, Zico é Flamengo para a eternidade. Na família Coimbra, até os animais eram Flamengo. O cachorro se chamava Mengo e o papagaio era rubro-negro. Tudo por causa do pai, o português José Antunes, que chegou ao Brasil em 1911, ano da fundação da seção do futebol do Flamengo. Nessa época, o Vasco como futebol nem existia. E o pai de Deus assistiu a um jogo em 1916, alguns meses depois da fundação da seção do futebol do Vasco. Foi um America x Flamengo. America ganhou, mas Antunes gostou da camisa rubro-negra, gostou do Manto Sagrado. Virou flamenguista, até sócio do Flamengo, e a família agora era flamenguista por todo o tempo que Flamengo vai existir, a família é Flamengo para a eternidade. Quando um filho nascia, ele recebia uma camisa do Flamengo. Zico era Flamengo antes de nascer.
A família Coimbra era predestinada pelo Flamengo, pelo futebol também. O pai teve uma oportunidade no próprio Flamengo, mas o patrão dele na padaria onde ele trabalhava, um vascaíno doente, sabendo que a ausência no trabalho era para fazer um teste no Flamengo, não o liberou. Explica o próprio Zico no livro Zico, 50 anos de futebol, de Roberto Assaf e Roger Garcia: “Quando era rapaz, meu pai foi goleiro do Municipal, chegando a ganhar o tricampeonato da Liga Amadora. Assim, surgiu até uma oportunidade para jogar no Flamengo. À época, ele trabalhava numa padaria e o patrão dele era Vasco. Ao saber que ele poderia jogar no Flamengo, o patrão ameaçou-o de demissão. Mas tomou ódio do Vasco, ódio mesmo, impressionante. Foi terrível para ele aceitar a ida do Edu para o Vasco. Quando brincavam com ele, perguntando-lhe como um português fazia para torcer pelo Flamengo, ele retrucava: ‘Português é sabão e vascaíno, eu sou é lusitano’”.
Zico cresceu com o futebol, cresceu com o Flamengo. Na casa, o antigo jogo de botões. Fala Zico no mesmo livro de Roberto Assaf e Roger Garcia: “Fazia os campeonatos, havia aqueles botões em que punha a cara dos jogadores: o Flamengo era sempre o campeão; e o Dida, invariavelmente o artilheiro”. Zico cresceu com o Maracanã, com Flamengo e de novo com Dida, o primeiro ídolo. Primeira lembrança do Maraca de Zico é um jogo eterno aqui, o do título do Rio – São Paulo 1961 contra o Corinthians, com gol de Dida. Depois, Zico foi várias vezes no Maracanã, sempre torcendo, vibrando com o Flamengo. Fala Zico no livro Gigantes do futebol brasileiro de João Máximo e Marcos de Castro: “No Maraca, na arquibancada, sempre atrás das balizas. E via a rede balançando. E ouvia. Era música para os meus ouvidos de menino”.
Zico cresceu com futebol em casa, com jogadores de futebol em casa, os irmãos Antunes e Edu. Os irmãos ajudaram Zico para estrear no time de juventude, até jogando contra jogadores mais velhos, mas depois foi só o talento e o trabalho de Zico para segurar a vaga no time. Fala ainda Zico, agora no seu próprio livro Zico conta sua história: “Meus irmãos Antunes e Edu já eram jogadores profissionais e viviam brincando que ‘o melhor da família’ ainda estava em Quintino. O Edu acabou me levando para treinar na escolinha do America. Só que, naquela mesma semana, um amigo da família, o Ximango, que era torcedor fanático do Flamengo, trouxe o Celso Garcia, um locutor esportivo muito conhecido, para assistir a uma partida do River, nosso time de futebol de salão. O Ximango queria que o Celso me visse jogar”.
Precisaria de um livro inteiro para falar do Zico no Flamengo. Em 1967, Zico jogou um torneio na Piedade, com a camisa do Santos, com a camisa 10 de Pelé. Zico fez 9 gols na vitória 14×4, deixou Celso Garcia maravilhado. Zico nunca foi no clube do irmão Edu, o America, foi no Flamengo. A história não começou aqui, começou antes do nascimento de Zico. Mas agora Zico era jogador do Flamengo. E o começo foi muito difícil, o técnico da base e antigo jogador Modesto Bria quase vetou Zico de jogar. Zico treinou, fez um primeiro jogo contra Everest, fez 2 gols na vitória 4×3. Mas como o Everest, nome parece predestinado para Zico, era só o início de um muito longo e muito difícil caminho. Falou depois do jogo para Zico seu irmão e maior conselheiro, Antunes: “Escuta, garoto… Põe isto na cabeça… Você é um jogador de futebol. Nasceu para isso, quer vencer, quer ser muito bom, o melhor, se possível! Então, fique sabendo que você vai ter que renunciar a muitas coisas e que a sua vida vai se transformar. Não vai ser como a vida de outros garotos da sua idade. Vai ter muito sacrifício, treinos que não acabam mais, disciplina…”.
E foi difícil, foi muito sacrifício, foi muita disciplina. Zico era craque, mas ainda muito franzino, sofria com zagueirões altos e fortes, e fez apenas 3 gols em 18 jogos em 1969. Zico era franzino, mas era craque. E o vice-presidente do clube, George Helal, acreditou no Zico, montou um programa com o técnico Joubert, o médico José de Paula Chaves, o preparador físico José Roberto Francallaci. E ainda mais, George Helal pagou da própria bolsa o programa. Mas foi Zico que fez os sacrifícios, que teve uma disciplina de um atleta e ser humano diferenciado. Zico saia de casa de Quintino às 5h30, ia na escolinha do Flamengo na Gávea, depois na escola na Presidente Vargas, depois na academia de Leblon para fazer musculação, cochilando ou estudando no ônibus e no trem, voltando para casa as 10h30 da noite. E no dia seguinte, fazia tudo de novo. Foi um sacrifício que valia a pena, como fala o próprio Zico, no livro Zico, paixão e glória de um ídolo, de Lucia Rito: “Foi um superesforço. É preciso ter muita paciência e querer vencer na carreira para aguentar a barra. As salas de musculação eram ambientes muitos solitários. Não é como as academias de hoje, onde a garotada vai por curtição. Eu precisava cumprir um programa rígido de exercícios, para exercer o meu ofício. Repetia os exercícios centenas de vezes, procurava me superar a cada dia, e não tinha tempo para bate-papo. Minha vida era toda cronometrada naquele tempo. Mas não me arrependo, faria tudo de novo”.
Zico ganhou 16 quilos em 3 anos e estreou no Maracanã em 1970 com os juvenis contra o America. Ainda recebeu as chuteiras de um ídolo perto da aposentadoria, Carlinhos, que tinha recebido 16 anos antes as chuteiras de um outro ídolo, Biguá. Zico fez 27 gols em 22 jogos em 1970 com os juvenis e fez seu primeiro gol no Maracanã, ainda com os juvenis, no 14 de março de 1971, alguns dias depois de seu 18o aniversario. No preliminar de um Flamengo x Botafogo, na frente de muitos dos 142.892 presentes nesse dia, Zico bateu um pênalti, fez passar o Maraca do silêncio mais profundo a alegria mais pura. Fala Zico no livro Zico, 50 anos de futebol: “Fiquei assim impressionado com o silêncio das arquibancadas. Dava para sentir aqueles milhares de olhos me acompanhando, querendo adivinhar, pela minha maneira de ajeitar a bola, de tomar distância, se eu ia acertar o chute. Soube que minha mãe começou a rezar e que meu irmão Edu ficou tão nervoso que queria sair e só voltar depois da cobrança. Corri e chutei – gol. O Maracanã explodiu. Eu ia sentir aquilo muitas e muitas vezes. Juro que senti o chão tremer. O chão treme, a gente treme também, por isso tem que correr, pular, socar o ar, qualquer coisa!”.
Pouco tempo depois, Zico estreou como profissional, no 29 de julho de 1971, num clássico contra Vasco, um eterno Clássico dos Milhões. Estreou com uma assistência e uma vitória 2×1. Foi lançado pelo feiticeiro Fleitas Solich, que também tinha lançado, 17 anos antes, o ídolo do Zico, Dida. Zico fez o primeiro gol da história do Flamengo no Brasileirão, num 1×1 contra Bahia na Fonta Nova, e ganhou do locutor Waldyr Amaral o apelido Galinho de Quintino, por causa do estilo brigador e do cabelo grande, que parecia uma crista. Mas a chegada no topo é um caminho longo, cheio de dificuldades. Ainda franzino e sem a confiança do novo técnico Zagalo, Zico voltou nos juvenis em 1972. Apesar de ter feito o gol do título do pré-olímpico em 1971 contra a Argentina, Zico não foi chamado pelas Olimpíadas, a maior mágoa de sua carreira, por causa da promessa do técnico Antoninho, que tinha garantido ao Zico uma vaga no time. Fala Zico no livro Zico conta sua história: “Fiquei quebrado por dentro. Senti-me traído… Se futebol era isso, então eu não queria mais saber de nada! Minha família inteira me cercou, tentou me animar, mas eu não conseguia me recuperar. Alguma coisa, uma espécie de confiança nos outros, na justiça do mundo, tinha se desfeito. A seleção havia se classificado para os Jogos Olímpicos com um gol meu, eu confiara na promessa da convocação… Fiquei muito abatido e só pensava em largar o futebol. E aquilo me deprimia ainda mais, porque já me via sem fazer a coisa que mais adorava na vida. Os dias foram rolando meio sem vontade nem jeito, até que chegou a final do campeonato dos juvenis. Estávamos decidindo contra o Vasco e terminamos o primeiro tempo vencendo de 1 a 0. Só que, além do meu estado de espírito – ainda bem por baixo – ou justamente por causa disso, havia passado muito mal na concentração. Cheguei até a vomitar, e tudo o que eu queria era que chegasse logo o intervalo, já pensando em pedir para sair – estava me arrastando em campo no final do primeiro tempo”. O irmão Antunes proibiu a substituição e Flamengo foi campeão, Zico fazendo o gol do título. Era a volta por cima, para o topo do mundo.
Zico voltou no time principal em 1973, como reserva polivalente num ataque cheio de craques, como Rogério, Dario, Afonsinho, Doval e Paulo César Caju. Explica Zico: “Naquele ataque, joguei em todas as posições. Armava, lançava, distribuía da intermediária, invadia pelos flancos e pelo meio, fazia as assistências, centrava e finalizava. Tive que aprender a fazer um pouco de tudo, a aproveitar cada oportunidade que aparecia para mostrar o quanto poderia ser útil ao time”. Uma estrela, nascida há muito tempo, começava a brilhar. Zico trabalhou muito nos treinos, sempre concluídos com 80 faltas e 20 pênaltis. Zico ficou na reserva apesar da chegada como técnico principal de Joubert, seu técnico nos juvenis. Zico continuou a trabalhar, brilhou nos treinos, brilhou nos amistosos, inclusive um 5×1 contra o Corinthians de Rivelino, e um 3×1 contra Zeljeznicar, time da Iugoslávia, Zico fazendo doblete nos dois jogos. Escreveu o eterno mas tricolor Nelson Rodrigues: “Ao longo dos 90 minutos, os iugoslavos foram dominados, envolvidos, batidos. Zico foi uma figura excepcional. É um jogador que está a caminho de uma furiosa plenitude. Como sabe lidar com a bola, como seus passes saem límpidos, precisos. Zico entrou nessa fase em que o jogador faz o que quer com a bola”.
Zico era craque, mas sempre trabalhou como o mais simples operário nos treinos. Sempre tentou melhorar seu futebol, nos treinos, nos jogos também. Ainda Zico: “O que eu mais fazia dentro do campo era pensar. Pensar como estava meu time, quem estava em melhor condição no momento de passar a bola, nas fraquezas que o adversário demonstrava e como eu podia aproveitá-las para vencer o jogo. Com o tempo, aprendi, na hora de bater uma falta, por exemplo, a identificar o lado mais fraco do goleiro. Como ele sai, se sai antes. Eu provocava faltas porque sabia como fazer o gol. Então, sempre acabava uma partida mais cansado da cabeça, do que das pernas. De tanto pensar”. E Zico começou a fazer o que ele ouviu muitas vezes na infância no Maraca, fazia a música das redes balançando depois do gol. Foram muitos gols, 49 gols só em 1974, ultrapassando o recorde do ídolo Dida. Ainda em 1974, Zico foi eleito o melhor jogador do Brasileirão e conquistou no final do ano o campeonato carioca depois de um empate com Vasco. A camisa 10 do Flamengo tinha um dono, a torcida do Flamengo tinha um ídolo.
O ano de 1975 foi ano da primeira artilharia do campeonato carioca, ano da consolidação da dupla com Geraldo, outro craque, que o pai de Zico chamava de “filho marrom”. Também foi o ano da maior conquista de Arthur Antunes Coimbra, o casamento com a namorada da infância, vizinha de Quintinho, também flamenguista, Sandra. Um dos padrinhos do casamento foi George Helal, que ajudou Zico a ser Zico no início da carreira. Em 1976, Zico estreou na Seleção brasileira na Taça do Atlântico com grande estilo: jogo no Centenário contra o Uruguai, vitória 2×1, gol de falta, dois dias depois, jogo no Monumental contra a Argentina, vitória 2×1, gol de falta. Uma estrela amarelinha começava a brilhar. Duas semanas depois, fez 4 gols num jogo eterno contra Fluminense. “Zicovardia” manchetou o Jornal dos Sports. Nelson Rodrigues, jornalista tricolor mas longe de ser um idiota da objetividade ou do clubismo, curvou-se ao Zico: “Tenho dito e repetido que Zico é o maior jogador do mundo. Há os que negam, cegos pelo óbvio ululante. Mas, se a evidência quer dizer alguma coisa, não cabe dúvida, nem sofisma”. Mas Zico não era apenas gols. Explica João Máximo, outro jornalista tricolor: “O Zico foi um desequilibrador de jogo. Quando ele pegava na bola, a jogada podia até não terminar em gol, mas ele tinha uma inteligência, uma habilidade, uma agilidade, uma capacidade de decisão, que o torcedor do time adversário, como era o meu caso, tinha medo. Quando ele chegava na bola era o momento de angústia do jogo”.
Mas o caminho ao topo do mundo, ao Monte Everest, é cheio de dificuldades, de etapas difíceis. Zico perdeu um pênalti decisivo contra Vasco e perdeu a vaga de titular na Copa do Mundo de 1978, uma jogada infeliz do portanto técnico do Flamengo Cláudio Coutinho, influenciado pelo presidente da CBF, o vascaíno e também militar, mas almirante, Heleno Nunes. Uma mudança que talvez custou ao Brasil o Tetra esse ano. Mas Zico voltou no topo de tudo, com um time do Flamengo cheio de craques da casa, mas quase desfeito diante dos insucessos. Flamengo voltou no topo do Rio em 1978, num Clássico dos Milhões eterno, com um escanteio de Zico e uma cabeçada de Rondinelli. Em 1979, Flamengo brilhou na Espanha e completou o tricampeonato carioca. Zico foi artilheiro do campeonato carioca pela quinta vez e chegou ao topo da artilharia geral do Flamengo, ultrapassando mais uma vez o ídolo Dida. Com 81 gols só esse ano, Zico também chegou ao topo da idolatria máxima do Flamengo, a maior conquista de Zico. Diferente de muitos outros clubes, o Flamengo tem como maior ídolo só Zico, apenas Zico, exclusivamente Zico.
E Zico chegou no topo do Brasil em 1980, com um gol na vitória 3×2 sobre o Atlético Mineiro, no Maracanã e seus 154.355 apaixonados. Flamengo era o campeão do Brasil pela primeira vez e Zico no topo da artilharia do Brasileirão pela primeira vez, com 21 gols. Em 1981, Zico foi no topo da América, com dois doblete e golaço de falta na final da Libertadores contra Cobreloa, No final do ano, foi no topo do Mundo, no Monte Everest, com uma atuação magistral de Zico no maior jogo do Flamengo, o 3×0 contra Liverpool, que ficou marcado na história. Em 1982, o passe foi do Zico, o título foi no Olímpico, Zico foi artilheiro, de novo com 21 gols, Zico foi eleito melhor jogador, Zico foi tudo. Só não foi campeão do mundo com o Brasil esse ano, uma pena, uma injustiça. No meu coração, ele é campeão do mundo. Zico é no topo de meu coração rubro-negro.
Em 1983, a primeira Era Zico chegou ao fim no Flamengo. Zico não queria sair do Flamengo, a torcida do Flamengo ainda menos. Zico tinha 30 anos, já uma idade considerada avançada para um jogador de futebol na época, e foi vítima do presidente Antônio Augusto Dunshee de Abranches, que queria o vender. Fala Zico no livro Gigantes do futebol brasileiro: “Eu não tinha o menor interesse em deixar o Flamengo, mas o presidente Antônio Augusto forçou a minha saída. Mostrou que na verdade não queria que eu continuasse no clube, porque existiu essa possibilidade, com a Adidas pagando as luvas de renovação de contrato, como se dispunha a pagar. Mas ele quis jogar para a torcida, invertendo as coisas e dizendo que eu é que estava forçando minha saída do clube. Esse tipo de procedimento infelizmente é comum entre os cartolas brasileiros”. Sem nenhum dos 155.523 presentes no Maracanã nesse dia sabendo da saída iminente do ídolo, Zico jogou muito na final do Brasileirão 1983 contra Santos, abrindo o placar com menos de um minuto de jogo, oferecendo ao Flamengo seu terceiro título nacional em 4 anos, reforçando a sua supremacia no futebol brasileiro.
Zico merecia, igual ao Leandro, vestir só o Manto Sagrado e a Amarelinha na sua carreira. “Ele mudou a história do clube. Existem dois Flamengo: antes e depois de Zico” explica George Helal. Zico é uma divindade, poderia ter seu próprio calendário, com a criação no 3 de março de 1953 do calendário gregoriano. Com apenas alguns meses do ano 1 do calendário Zico, Flamengo já iniciava seu segundo tricampeonato carioca. Até o ano 31, Flamengo tinha vencido tudo no mundo. Zico merecia jogar só no Flamengo, e merecia também um melhor time na Europa do que Udinese, onde se tornou também ídolo. Quase foi artilheiro do campeonato italiano na primeira temporada, perdendo de um gol para Platini, que fez 6 jogos a mais. A única coisa boa da saída do Zico do Flamengo foi que ele voltou. O presidente Augusto Antônio Dunshee de Abranches teve que sair do clube depois de cometer o crime contra o futebol, contra o Flamengo, de vender Zico. George Helal, o apoio de sempre de Zico, foi eleito presidente e montou o Projeto Zico para repatriar o craque. A torcida bancou e Zico era de novo do Mengo. Nunca deixou de ser do Mengo, mas agora era de novo jogador do Flamengo.
No 12 de julho de 1985, ou no 10o dia do 4o mês do ano 32 do calendário Zico, Zico voltou a vestir da camisa 10 do Mengo, num amistoso contra um time de amigos de Zico, que tinha a presença de ídolos jogando na Itália, Júnior, Falcão e até Maradona, que vestiu uma camisa amarela e verde. Zico fez um golaço de falta num ângulo impossível. Dois dias depois, Deus voltou agora de forma oficial, num jogo do Brasileirão contra Bahia. Flamengo ganhou 3×0, Zico fez um golaço de falta no Maraca, como se nunca tinha saído do Flamengo, como se nunca tinha deixado de fazer ouvir a doce música das redes para a geral. O time, treinado pelo Zagalo, era muito bom, e dava para brigar pelos títulos, mas depois de chegar no topo do Mundo, no Monte Everest, tem que descer, com etapas igualmente, às vezes mais, difíceis do que na subida. Depois de Augusto Antônio Dunshee de Abranches, foi Márcio Nunes que cometeu um crime contra o futebol. Com uma entrada criminosa, o jogador de Bangu quebrou os dois joelhos e o tornozelo esquerdo de Zico, quebrou o coração dos flamenguistas. Quase quebrou o futebol de Zico, mas Zico é acima de tudo.
Fala Zico sobre a lesão no seu livro Zico conta sua história: “Se, naquele momento, eu tivesse adivinhado o que me aguardaria nos próximos meses – na verdade, a última operação que realizei, em consequência, mesmo que indiretamente, dessa lesão, foi em 94 –, não sei qual teria sido minha atitude, ali, no momento. Talvez largasse tudo e fosse para casa aproveitar a vida. Ou não… É, acho que não aguentaria mesmo. Sempre disse que queria parar um dia com o futebol, e não que o futebol parasse comigo. Queria parar jogando, não por cause de uma lesão. E, depois, tinha a Copa para disputar, tinha tanta coisa que achava que ainda poderia obter do futebol, tanta coisa que eu achava que ainda poderia fazer…”. Zico trabalhou muito, como nos tempos de juvenil, acordando cedo para trabalhar, para sofrer na academia. Zico voltou no final do ano de 1985 e fez mais um Fla-Flu eterno em 1986, com hat-trick, com música nas redes, com golaço de falta.
Mas depois Zico voltou a se machucar várias vezes, sempre lesões musculares, o que o impedia de pegar ritmo. Jogou a Copa de 1986 e perdeu um pênalti contra a França. Fala Zico sobre a operação, agora no livro Zico, paixão e glória de um ídolo: “Me deu vontade de morrer, achei que nunca mais jogaria futebol novamente. Minha perna passara tanto tempo semi-arqueada, que, até conseguir esticá-la, foi um sofrimento terrível. Eram dores insuportáveis. Fiz um esforço constante, porém cuidadoso, para não romper os pontos. Cada centímetro a mais que meu calcanhar conseguia deslizar, numa risca traçada na banheira lá de casa, era comemorado com choro e palmas. Levei quatro meses para conseguir esticar a perna por inteiro”. Durante o processo, Zico ainda teve a dor de perder o pai, como ele fala no livro Zico, 50 anos de futebol: “Acho que a morte do meu pai foi decorrência também de tudo o que passei. O sofrimento dele de ver um filho na situação em que eu estava. E você acompanhar o trauma de um filho, aos 85 anos, é difícil. Acho que isso o debilitou ainda mais, e depressão gera doença”.
Zico voltou no 21 de junho de 1987, exatamente um ano após o pênalti perdido contra a França. Fez gol num outro Fla-Flu eterno, de pênalti. Depois do pênalti contra a França, Zico nunca mais perdeu um pênalti. E 1987 foi um ano histórico. Já escrevi que gostava muito do título da Copa União, o Brasileirão de 1987, com um dos maiores times da história do Flamengo. Mas adoro esse título principalmente por causa de Zico, que tem uma história de superação no futebol como talvez só o Ronaldo Fenômeno, que tem como ídolo o próprio Zico, tem. “Foi um título emocionante. Não só em função de tudo que eu havia passado, mas por causa do Thiago. Foi o primeiro ano que ele pôde me acompanhar melhor, nunca tinha me visto. E também quando acabou o jogo com o Inter, eu já estava descendo para o vestiário e a torcida começou a gritar o meu nome. Tive que voltar para dentro do campo e dar a volta olímpica, porque eu já tinha saído do jogo” relembra Zico. Zico era agora no Monte Olimpo, a casa dos Doze Deuses, doze nomes, como um time de futebol apoiado pelo décimo segundo Deus, a maior Nação do Mundo, a torcida do Mengo. E o primeiro Deus, o Deus do céu, do raio e do travão, é Zico, Zico é Zeus, Zico é tudo.
Zico ainda jogou em 1988 e 1989 e se despediu como profissional, no 2 de dezembro de 1989, num clássico contra Fluminense, um eterno Fla-Flu. Se despediu com um golaço de falta e uma goleada 5×0. Ainda teve outra despedida, no início de 1990, reunindo vários jogadores do Flamengo e do Mundo. Antes do jogo, meu escritor preferido sobre o futebol, Armando Nogueira, anunciou a festa: “Maracanã, enfeita de bandeiras tuas arquibancadas que hoje é dia de festa no futebol. Encomenda um céu repleto de estrelas. Convida a lua (de preferência a lua cheia). Veste roupa de domingo nos teus gandulas. Põe pilha nova no radinho do Geraldino. E, por favor, não esquece de regar a grama (de preferência com água-de-cheiro). Avisa à multidão que ninguém pode faltar. É despedida de Zico e estou sabendo, de fonte limpa, que hoje à noite, ele vai repetir conosco a bela coleção de gols que fez nos seus 20 anos de Maracanã”. Outro a escrever sobre o jogo foi Sérgio Cabral para o jornal O Dia: “Adeus Zico. Nós, vascaínos, tricolores, botafoguense etc., dormiremos mais tranquilos sabendo que uma falta cometida nas proximidades de nossa área não será tão perigosa assim. Que não teremos de enfrentar os seus dribles, seus lançamentos, suas soluções inteligentíssimas para as jogadas mais difíceis, a sua movimentação que o levava, em frações de segundo, da intermediária à porta do gol e aos gritos de “Zico! Zico! Zico!” quando você fazia uma das suas e chutava aquelas bolas que tocavam na rede e batiam em cheio em nossos corações. Em compensação, nós, que tanto amamos nossos clubes quanto o futebol, estaremos com as nossas tardes de domingo mais pobres. E, aí, veja, que ironia, teremos saudades de você”.
Mas, como essa crônica inútil, nada pode ser escrito que seja maior do que Zico, maior do que a perfeição mais pura. Zico pendurou as chuteiras, e como Biguá para Carlinhos, como Carlinhos fez antes para ele mesmo, Zico deu as chuteiras para uma jovem promessa da base, o chamado Pintinho. A herança era muito pesada, infelizmente, ou felizmente, Zico não tem herdeiro. O futebol de Zico, só Zico mesmo. Depois, Zico voltou a jogar, ajudou a tornar o futebol profissional no Japão, virou ídolo, virou o Deus do Sol. Pendurou definitivamente as chuteiras, com 831 gols em carreira, 509 pelo Flamengo, 333 no Maracanã, mais dois recordes de Zico. Zico é o dono do Maracanã. De todas as estrelas que voaram no Estadio Jornalista Mário Filho, Zico é o filho mais pródigo do Maraca, o prodígio, o maior símbolo. Explica Zico: “Cinco anos depois do meu primeiro jogo, eu me localizava no Maracanã até de olhos fechados. Podia chutar no gol sem olhar, sabia que direção dar ao chute pela posição que os repórteres ocupavam atrás da linha de fundo. Localizava as bandeiras. Mesmo de costas eu sabia onde ia acertar. O Maracanã era a minha casa. Eu conhecia a textura da grama, o pique da bola e o principal personagem do jogo, a torcida. Ainda hoje, quando vou ao Maraca, me emociono ao lembrar dos gols que bati. É de arrepiar”.
Depois da primeira morte do jogador, Zico virou ídolo na Turquia como técnico, trabalhou na politica, ajudou a pôr fim ao sistema do passe, abriu um centro de futebol, fez muitas coisas, principalmente para o futebol. Mas acho que é maior função de Zico é de ser ídolo máximo do Flamengo. Teve vários ídolos do Flamengo, ídolos de gerações, como Leônidas, Zizinho, Dida, Carlinhos, Leandro, Júnior, Romário, Julio César, Adriano, Obina, Hernane, Arrascaeta, Gabigol. Teve muitos, mas só Zico é ídolo de todas as gerações. Quando o menino começa a se apaixonar pelo Flamengo, a vestir sua alma de rubro-negrismo, ele naturalmente vira fã de Zico. Zico é ídolo de todos, Zico é para sempre o ídolo máximo do Flamengo. E é um sentimento que vai além dos flamenguistas. Quando fui assistir ao jogo das estrelas de Zico no final do ano de 2022, meu amigo francês Marco, que sabe quase nada do Flamengo, assistindo ao jogo e vendo a paixão do povo pelo Zico, queria personalizar seu Manto Sagrado com a eterna camisa 10 de Zico.
Mas antes de se apaixonar pelo Zico, o amigo francês apaixonou-se pelo Flamengo, apaixonou-se pela paixão do torcedor. Flamengo tem a maior torcida do mundo, uma torcida diferente, capaz de tudo, ainda mais para Zico. Tem torcedor que poderia vender tudo que tem só para passar um momento com Zico. A torcida do Flamengo fez para Zico inúmeras festas, no Maraca ou em outros lugares do Brasil, do Mundo, sempre endeusando Zico. Zico tem sorte de ser o maior ídolo de uma torcida tão incrível. Mas também, nessa função de ídolo maior do Flamengo, nessa missão, Zico nunca falhou. E a torcida do Flamengo tem muita sorte de ter como maior ídolo um jogador e um ser humano como Zico. Incrível de ser um dos maiores jogadores da história do futebol e de ser tão humilde. A humildade de Zico, como o talento dele em campo ou o amor pelo Mengo, nunca foi questionada. Tem inúmeras histórias de torcedores atendidos pelo Zico com o maior carinho, o maior respeito, a maior humildade. Tive a sorte de encontrar Zico, zerei a vida e foi como encontrar Deus. Estava nervoso, mas Zico, com toda sua simplicidade e jeito de ser, deixa todo mundo confortável. Acredito que no dia de minha morte vou encontrar Deus e espero que o encontro será tão bom que o encontro com Deus nessa vida terrestre, no 18 de novembro de 2022, ou 16o dia do 8o mês do ano 70 do calendário Zico.
Flamengo e Zico é um encontro feito no paraíso, duas entidades misticas e míticas. Zico nasceu antes de Arthur Antunes Coimbra, e vou plagiar duas vezes o grande tricolor Nelson Rodrigues. Primeiramente, Flamengo nasceu 40 minutos antes do nada. E mais, Flamengo e Zico nasceram com a vocação da eternidade.








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