Ídolos #32: Cantarele

Ídolos #32: Cantarele

No jogo de Libertadores com Millonarios, o goleiro Rossi tomou um gol e viu sua marca de invencibilidade ser interrompida com 1.134 minutos. É um novo recorde para um goleiro do Flamengo, Rossi ultrapassando Cantarele, que ficou 959 minutos sem ter o gol vazio em 1979. Cantarele não se mostrou incomodado ao ver seu recorde batido: “Recordes são feitos para serem quebrados. Feliz por ter permanecido tantos anos fazendo parte de um fato histórico do clube. Contente em ver um Flamengo sempre querendo crescer cada dia mais”. Provavelmente porque, além de ser grande goleiro, Cantarele é de um rubro-negrismo feroz e que ultrapassa qualquer dúvida.

Antônio Luis Cantarele nasceu no 26 de setembro de 1953 em Além Paraíba, Minas Gerais. Seu nome foi escrito às vezes Cantarele, às vezes Cantarelli, outras vezes Cantareli. Segundo o próprio goleiro, em entrevista com o quase homônimo Leonardo Cantarelli, foi registrado como Cantarele apesar da grafia correta do nome de origem italiana ser Cantarelli: “O meu nome foi registrado errado. Antigamente era comum o escrivão não conhecer outra língua e acabava escrevendo de forma errada. Eu sou o filho mais velho dos meus pais e os meus outros 4 irmãos, tem o sobrenome Cantarelli registrado da forma correta. Só o meu que não”. Vamos então de Cantarele.

A cidade natal de Cantarele, Além Paraíba, no Minas Gerais, está separada do estado do Rio de Janeiro e das cidades fluminenses de Carmo e Sapucaia apenas pelo rio Paraíba do Sul. Cantarele estava muito mais perto da cidade de Rio de Janeiro do que de Belo Horizonte. Porém, Cantarele ainda estava muito longe do Flamengo. Cantarele escolheu ser goleiro por causa da idolatria que tinha pelo Manga, um dos maiores goleiros do Botafogo e do Internacional. Cantarele jogava as peladas dele na cidade de Além Paraíba, até um dia que mudou sua vida: “Era uma partida na minha cidade. Eu estava com 15 anos e havia 2 olheiros do Rio. Um trabalhava para o Vasco e o outro para o Flamengo e também para o Botafogo. Inicialmente me levaram para fazer teste no Botafogo, mas lá acabaram não ficando comigo, pois alegaram que eu era muito novo. No ano seguinte, o mesmo olheiro me levou para o Flamengo. Era um período de férias escolares, aí fiquei treinando e se não desse certo eu retornava para casa. No entanto, gostaram de mim e eu fiquei. Queria aproveitar a oportunidade”.

Cantarele estava no Flamengo, mas o olheiro do Vasco não se arrependeu. Indicou ao clube cruzmaltino outro goleiro de Além Paraíba, Mazarópi, que enfrentou inumerosas vezes Cantarele nos Clássicos dos Milhões e ficou 1.816 minutos sem ter o gol vazado entre 1978 e 1979, um recorde mundial. O raio dos goleiros imbatíveis caiu de forma inacreditável duas vezes no mesmo pequeno lugar. Na base do Flamengo, Cantarele conheceu vários futuros craques, como Zico, Rondinelli, Geraldo e Júnior. Flamengo foi campeão carioca de juvenis em 1972, com uma campanha quase perfeita: 17 vitórias, 5 empates, 3 derrotas, 27 gols pro, 8 gols contra. O final também foi perfeito, uma vitória 2×0 contra Vasco no jogo decisivo. Em 1973, Flamengo repetiu a dose e conquistou o bicampeonato. E neste mesmo ano, Cantarele fez seu primeiro jogo com o time principal, num amistoso no Espírito Santo, lançado pelo Joubert e substituindo Ubirajara Motta, que foi o primeiro goleiro a fazer um gol pelo Flamengo. Flamengo venceu 3×1, gols de Doval, Arílson e Zico. Se não me engano, foi o Ubirajara Motta que levou o gol do combinado de Cachoeiro do Itapemirim e Cantarele, já, preservou sua meta invicta.

Cantarele só fez um jogo profissional em 1973 e voltou a jogar no time principal em 1974, fazendo seu primeiro jogo oficial contra o America, no Brasileirão. Ainda estava na reserva do Renato e foi do banco que assistiu ao título carioca de 1974, conquistado em cima do Vasco, um jogo eterno no Francêsguista. Mas Cantarele era promissor e a diretoria resolveu vender Renato ao rival Fluminense para dar espaço ao Cantarele. E Cantarele não decepcionou. Não tão alto para um goleiro (1,78 m), compensava com ótima impulsão e visão de jogo, o que o permitia, muitos anos antes de Manuel Neuer, de sair da meta para cortar o lançamento do adversário. Cantarele virou titular num time com vários craques da casa, Rondinelli, Júnior, Geraldo e claro, Zico. O time era muito promissor, mas ainda faltava os títulos. Em 1976 e 1977, Cantarele viu duas vezes o vizinho mineiro Mazarópi levar o melhor nas disputas de pênaltis e Vasco eliminar Flamengo no campeonato carioca.

Em 1978, Flamengo contratou outro grande goleiro, Raul Plassmann, vindo de Cruzeiro. Cantarele ficou titular e foi com ele no gol que Flamengo mudou sua história, conquistando o campeonato carioca contra Vasco com gol salvador do ídolo Rondinelli, o que marcou o início de uma geração multicampeã. Fala Cantarele ao jornalista Leonardo Cantarelli: “Era uma geração vencedora e que gostava do Flamengo. Um time identificado com o clube, diferente de hoje, onde muitos jogadores beijam escudos de equipes, mas não a amam de verdade. Aquela equipe amava o Flamengo”. Ainda como titular, Cantarele completou o tricampeonato carioca em 1979, com dois títulos no mesmo ano, um ano histórico no Francêsguista. Antes de Raul eternizar a camisa amarelo do goleiro do Flamengo, Cantarele eternizou a camisa verde, mas também jogou com uma azul, cinza ou preta.

Em 1980, Raul passou a ser titular, mas Cantarele, de tanto que amava Flamengo, ficou no clube. “Aproveitei a oportunidade que a vida me deu. Jogar em um clube tão importante do Brasil e por tanto tempo. Mais de 500 jogos como titular. O torcedor daquela época quando me vê na rua, me cumprimenta, felicita e relembra aqueles bons tempos. Isso é bacana. Os mais novos, infelizmente não me conhecem, mas faz parte” fala Cantarele. Mesmo sendo reserva, era regularmente escalado no time titular, participou de vários jogos na Europa durante excursões do Flamengo, também jogou uma partida no Brasileirão de 1980, 4 jogos da Libertadores de 1981 e 2 do Brasileirão de 1982, todas essas competições foram conquistadas pelo Mengão. Flamengo também podia conquistar tudo porque tinha ótimos reservas, que não alteravam a qualidade do time, como Cantarele.

Na semifinal da Copa Libertadores de 1982, Cantarele foi culpado nos gols de Penãrol que decretaram a eliminação do Flamengo, João Saldanha falando por exemplo de uma “falha primaria de Cantarelli” no gol de falta de Jair. Ao meu ver, foi julgado de forma muita severa e não tinha muito a fazer sobre o gol de Jair. Cantarele ainda fez um jogo no Brasileirão de 1983, suficiente para levar um tricampeonato pessoal (com apenas 4 jogos!) e foi emprestado ao Náutico, onde foi vice-campeão pernambucano. Mas Cantarele não podia ficar longe do Flamengo durante muito tempo e voltou na Gávea em 1984, quando disputou o posto de titular com o argentino Fillol. Relembra Cantarele: “Com o Fillol houve uma disputa boa pela titularidade. Eu a ganhei em 1985, mas acabei lesionando o joelho em uma partida contra o Bangu em 1986. Fiquei um ano parado. Quando retornei,o Zé Carlos era o titular e não saiu mais. Fiquei até 1989 e depois resolvi me aposentar”.

O último jogo oficial de Cantarele não faz jus ao talento e importância de Cantarele no clube, levou uma goleada 6×1 contra Grêmio, que eliminou Flamengo na semifinal da Copa do Brasil de 1989. Cantarele ainda voltou a calçar as luvas em 1990 no jogo de despedida de Zico, por quem Cantarele tinha, claro, só admiração: “Senti nitidamente seu caráter, a maneira como se destacava no grupo. E isso sem jamais exigir regalias, sempre pedia em favor do grupo. Com isso, conquistou o respeito e a admiração dos companheiros”. No Maracanã, Cantarele subsistiu seu antigo companheiro, Raul, outro ídolo no Francêsguista. E como Raul, não levou gol durante o jogo que acabou num 2×2, com os dois gols sofridos pelo Zé Carlos.

Depois de pendurar definitivamente as luvas, Cantarele passou a ser olheiro pelo Flamengo, até recomendando ao clube Ronaldo Fenômeno… “Eu vi o Ronaldo atuando e o aprovei. Entretanto, o Flamengo não quis ficar com ele. Na época, eu não soube o motivo que fez com ele não ficasse no clube. Tempos depois, vi entrevista dele dizendo que ele morava muito longe do CT do Flamengo e a diretoria não quis custear o trajeto de ida e volta”. Depois, foi preparador de goleiros em Flamengo, Corinthians e Palmeiras, trabalhando com campeões do mundo como Gilmar Rinaldi, Dida e Marcos. A amizade com Zico o levou do CFZ até a Turquia, passando pelo Japão, quando foi preparador de goleiros na Copa de 2006: “Adorei a minha passagem pelo Japão. Pude passar muito do meu conhecimento para eles. Ensinei eles a cair e não se machucar, a antever uma jogada e forçar o atacante a fazer o que ele não quer, evitando assim um gol. De início eu tinha um intérprete que me ajudava na comunicação e um dos goleiros havia morado em São Paulo e sabia português. Conforme o tempo passou, eu aprendi o básico da língua japonesa: o que era necessário para o dia a dia e para os treinamentos”.

Como quase sempre, Cantarele voltou ao Flamengo, sendo preparador de goleiros e depois assistente de Jayme de Almeida, que conhecia desde a base do Flamengo, 40 anos atrás. Juntos, levaram a Copa do Brasil de 2013. Hoje, Cantarele continua a acompanhar o Flamengo, agora apenas como torcedor. Hoje, Cantarele não é mais o goleiro do Flamengo com mais tempo sem levar gol. Mas ainda é o goleiro, e até o sexto jogador, que mais vestiu o Manto Sagrado, com 557 jogos. Esse recorde dificilmente será superado. De 1973 até 1990, na reserva ou como titular, Cantarele sempre foi exemplar no Flamengo.

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O autor

Marcelin Chamoin, francês de nascimento, carioca de setembro de 2022 até julho de 2023. Brasileiro no coração, flamenguista na alma.

“Uma vez Flamengo, Flamengo além da morte”