Jogos eternos #154: Flamengo 3×2 Vasco 1923

A rivalidade entre Flamengo e Vasco vem de longe. Para alguns, do final dos anos 1990, quando o vice-presidente vascaíno Eurico Miranda inflamou a rivalidade. Para outros, vem de 1989, quando o craque flamenguista Bebeto assinou com o Vasco. Os mais antigos não podem esquecer de duas décadas de rivalidade e jogos disputadíssimos nos anos 1970 e 1980, quando os clubes eram representados para o maior ídolo deles, craque e símbolo, Zico para Flamengo, Roberto Dinamite para Vasco. Os saudosistas lembram que o nome Clássico dos Milhões nasceu com o surgimento do Maracanã, que podia abrigar tantos torcedores a partir de 1950. Lembram também que o Expresso da Vitória, o time do Vasco que foi a base da Seleção vice-campeã mundial em 1950, brilhou entre dois tricampeonatos do Flamengo, 1942-1943-1944 e 1953-1954-1955.

A rivalidade entre Flamengo e Vasco vem de longe, de muito longe. Vem até antes do futebol. No nome dos dois clubes, as mesmas letras CR, para Clube de Regatas. A rivalidade nasceu no início do século XX, nasceu no mar, quando os clubes eram apenas regatas. Em 1911, um pé do Flamengo pisou num gramado de futebol. Cinco anos depois e uma fusão com o clube de futebol do Lusitânia, Vasco também começou a jogar futebol, ainda nas divisões inferiores. Venceu a Série B do campeonato carioca em 1922 e subiu no futebol de elite no ano seguinte.

O futebol era de elite mesmo, apenas 35 anos depois da abolição do escrivadão. Os dirigentes dos clubes cariocas eram da elite, e até os jogadores. No Flamengo, os jogadores eram advogados, engenheiros como Moderato, médicos como Junqueira. O futebol era amador, jogava-se por diversão e por amor a camisa, ao clube, sem qualquer pretensão financeira. Ou amadorismo era regra para impedir o pobre de jogar no mesmo campo. No Vasco não, no Vasco podia jogar todo mundo, pobre, negro, branco, mestiço, só a habilidade com a bola contava. Os dirigentes contornaram a regra do amadorismo com o apoio da comunidade portuguesa, que ofereceu falsos empregos aos jogadores.

Assim, quando a turma do Flamengo estudava ou trabalhava durante o dia, os jogadores do Vasco treinavam, se exercitavam, melhoravam. Com a preparação física do técnico uruguaio Ramón Platero, Vasco começou a ganhar, não parou de ganhar. Talvez se o Vasco não ganhasse, imitando um Andarahy, clube da Zona Norte que nunca lutava pelo título de campeão, não teria problemas. Mas Vasco ganhou, a maioria dos jogos de virada ou no segundo tempo graças ao melhor preparo físico. Foi o caso no jogo de ida contra Flamengo, o Mengo abriu o placar, mas perdeu 3×1 no segundo tempo. E Vasco, vindo da Série B, jogando com semianalfabetos, com portugueses, com italianos, com negros, ia conquistar o título, incomodar os ricos. O futebol já começava a se tornar paixão do Rio, paixão do povo, principalmente graças ao campeonato sul-americano de 1919, conquistado pelo Brasil nas Laranjeiras contra o Uruguai do negro Gradín. E a cada vitória, o Vasco conquistava novos torcedores, pobres e negros, portugueses e analfabetos.

Em 1922, no centenário da Independência do Brasil, ressurgiu um sentimento antiportuguês. E Vasco, até no nome, era Portugal. E Vasco ia conquistar o campeonato carioca, deixando para trás Flamengo, Fluminense, Botafogo, America, os grandes até o momento. Vasco ganhou 8 jogos consecutivos, a dúvida não era se Vasco ia ser campeão, mas quando ia ser. Pela honra do Brasil, pela salvação do rico, Vasco tinha que perder ao menos um jogo, um miserável jogo. Para amenizar a diferença de preparo físico, os “moços de boas famílias” do Flamengo começaram a treinar durante a semana, nas noites depois do trabalho, no campo da rua Paissandu. Foi neste contexto que aconteceu o Flamengo x Vasco do 8 de julho de 1923, data especial para mim, nasci um 7 de julho. O Flamengo x Vasco virou Brasil x Portugal. Se nas regatas, os dois clubes eram rivais no sentido simples de adversários, agora no futebol eram rivais mesmo, inimigos, beligerantes. O gramado de futebol era um campo de batalha.

Com tanta gente interessada para o jogo, o encontro aconteceu nas Laranjeiras, estádio do Fluminense e maior estádio da cidade. Mesmo defendendo um futebol amador, a Liga Metropolitana vendeu mais ingressos do que vagas no estádio. Escreveu, com ortografo da época o jornal O Imparcial: “Há uma semana que em todos os círculos desta cidade em outra cousa não se falava. O match era motivo obrigatório de todas as conversas. Dahi a explicação natural da colossal assistência que afluiu à bella praça de desportos da Rua Guanabara. Mais de 35 mil pessoas, sem exagero, enchiam as vastas dependências do tricolor”. O Jornal do Commercio foi além: “Jamais, nesta capital, affluiu igual concurrência em jogos de football. Não havia um único lugar no ground. Calculamos em cerca de 55 mil pessoas o número de espectadores verificados hontem”. Começava assim de verdade a rivalidade entre Flamengo e Vasco, começava o Clássico dos Milhões.

O lendário jornalista Mário Filho nomeou a partida o Jogo das Pás de Remo, escrevendo que os remadores do Flamengo batiam nas arquibancadas nos torcedores vascaínos. Não se sabe se é verdade, certeza é que a arquibancada estava cheia. Com tanta gente, a pista de atletismo foi invadida pelos torcedores em pé, criando antes do Maracanã, uma geral, ainda rica, ainda de terno e chapéu. Mais um extrato de um jornal da época, o Correio da Manhã: “A partida assumiu a proporção de um vultoso acontecimento, que ultrapassou os limites do mundo sportivo, para interessar, fora desse âmbito, à toda a cidade. Não há positivamente exemplo, no Rio, de um facto ou de um match que tenha despertado interesse tão vivo. Não conhecemos, francamente, na história do football carioca uma competição que tivesse alardeado tão ruidoso sucesso […] Há várias opções para público de tal porte. O principal é que todos os adversários do Vasco estavam roxos para que ele perdesse. Era uma torcida, em regra, contra os camisas pretas”.

No 8 de julho de 1923, Flamengo foi escalado assim: Iberê; Pennaforte, Telefone; Mameda, Seabra, Dino; Sidney Pullen, Candiota, Junqueira, Moderato, Nonô. No time, tinha vários ídolos da época do amadorismo, como Moderato, que fez 2 gols na Copa do Mundo de 1930, Junqueira campeão do campeonato sul-americano 1922 e Sidney Pullen, também técnico do time e que, apesar de ser inglês, jogou na Seleção brasileira. Campeão carioca em 1915, o primeiro da história do Flamengo, foi convocado no Exército inglês para a Primeira Guerra Mundial e, como havia prometido, voltou depois da guerra ao Flamengo para conquistar mais um título carioca, em 1925. Mas o melhor jogador era provavelmente Nonô, que foi o primeiro jogador do Flamengo a ser artilheiro de uma edição do campeonato carioca, justamente em 1923. Com 120 gols com o Manto Sagrado, foi o maior artilheiro da história do Flamengo até 1940 quando foi ultrapassado pelo ídolo do povo Leônidas.

Uma palavra agora sobre o juiz, o dirigente histórico do Botafogo, Carlito Rocha, na época os juízes eram jogadores de outros clubes ou dirigentes. A palavra é do Carlito Rocha mesmo, que falou sobre o jogo em 1979 para o Jornal do Brasil: “Naquela época, os clubes se reuniam e indicavam o árbitro. Eu era um dos cotados porque o Vasco e o Flamengo confiavam em mim […] Eu amava o meu Botafogo. Mas houve um jogo em que marquei dois pênaltis contra. Eu estava querendo a vitória do meu clube, mas era durão no apito […] Nessa partida entre Flamengo e Vasco, quando começou efetivamente a grande fase desses dois clubes como rivais, por mim teria vencido o Vasco. Muita gente, naquela época, não queria que os negros jogassem, e eles foram entrando. E o Vasco colaborou muito para isso […] No dia daquele clássico, o campo do Fluminense ficou lotado. Me lembro que muitas pessoas não conseguiram entrar. Dentro de campo, na poste, também havia muita gente. Foi um acontecimento da época. Mesmo assim, não me preocupei com a arbitragem”.

Flamengo, treinado, motivado, apoiado por uma Nação, abriu o placar com Candiota, fez o segundo gol com Nonô. No intervalo, 2×0 para o Flamengo. Mas no início do segundo tempo, o Vasco, quem sabe o Portugal, reduziu a vantagem com gol de Ceci. E a torcida flamenguista, a Nação rubro-negra, tremeu. Seria que Vasco ia conseguir de novo a virada, ia conseguir o campeonato invicto? Escreveu Marcel Pereira no livro A Nação, como e por que o Flamengo se tornou o clube com a maior torcida do Brasil: “O Vasco teria sido campeão invicto se não fosse o Flamengo. O mais curioso é que a cidade inteira pensou junto ‘só podia ser o Flamengo’. Mesmo quem não era rubro-negro depositou nele a última esperança. Era questão de honra bater a soberba do colonizador português. Se não fosse o Flamengo, quem poderia defender a honra do futebol da cidade e do país? Meteu-se até o Brasil na história”. O terceiro Flamengo – Vasco da história virou uma guerra da pátria. Falei sobre o jogo de ida, vencido pelo Vasco, mas foi o segundo Clássico dos Milhões da história. O primeiro, no Torneio Início de 1922, foi vencido, claro, pelo Flamengo.

E no 8 de julho de 1923, Vasco, pressionando pelo menos ao empate, não conseguiu nem o empate. Quem fez mais um gol foi Flamengo, com o médico Junqueira, emprestado dois anos depois ao Paulistano para participar da primeira excursão de um time brasileiro na Europa. E 4 minutos antes de fim do jogo, de novo Vasco reagiu, gol de Arlindo, de novo Vasco pressionou para o empate, de novo Flamengo não cedeu. Os vascaínos frustrados com a derrota, a única do campeonato, inventaram um gol mal anulado pelo juiz, versão desmentida pelos jornais da época, como o Correio da Manhã, que escreveu: “O juiz, convidado especialmente pelos dous disputantes, foi excellente em toda a marcação. Agradou a gregos e troianos pelo acerto de todos os seus actos”. “Carlos Martins da Rocha foi energético e brilhante, se tornando alvo de francos e merecidos elogios de toda a assistência, indistinctamente” acrescentou o bem nomeado O Imparcial, que também escreveu: “A victória deveria cabe àquelle que mais téchnica e inteligência desenvolvesse. Foi o que sucedeu. Venceu a valorosa eleven que, inegavelmente, melhor atuação produziu”.

Vamos ficar com o juiz e dirigente botafoguense Carlito Rocha, que homenageou o time do Flamengo em 1979: “O Flamengo tinha grandes estrelas. Sidney Pullen era muito bom. Nonô era valente. Moderato magnífico. A verdade é que o ataque do Flamengo era um espetáculo […] e até mesmo se jogasse hoje faria miséria. Nesse jogo, houve uma festa tão grande que nem cheguei a tomar minha laranjada no fim. Era o único prêmio ao árbitro. Eu fazia tudo por amadorismo. Não ganhava um tostão. O futebol sempre foi a minha paixão”. O futebol, profissional ou amador, se tornava a paixão do povo e o Flamengo x Vasco era o coração do Rio. O Flamengo não era o campeão da cidade, mas era a honra do Brasil. Continua Marcel Pereira no seu livro: “Quando acabou o jogo, foi mesmo 3 a 2. Aí começou o carnaval. Toda a cidade soube, sem rádio sem nada, na mesma hora, que o Flamengo tinha vencido. E como era o Flamengo, esperou-se pelo carnaval rubro-negro. Estava tudo preparado. Organizou-se um cortejo de automóveis, enorme, mais de cem carros, com bandeiras do Flamengo cobrindo os capôs, as capotas arriadas, os jogadores sentados em cima, torcedores de pé nos para-lamas”.

Os torcedores do Flamengo partiram para um carnaval de uma noite inteira, até, num sentimento antiportuguês, destruindo uma estátua de Pedro Alves Cabral. Não há como, e não deveria, negar a importância do Vasco na luta contra racismo. Mas Flamengo, há mais de 100 anos, já mostrava que era o maior e o melhor time no Clássico dos Milhões.

Uma resposta para “Jogos eternos #154: Flamengo 3×2 Vasco 1923”.

  1. Avatar de Jogos eternos #196: Flamengo 2×1 Vasco 1987 – Francêsguista, as crônicas de um francês apaixonado pelo Flamengo

    […] favorito no futebol, mas nada supera a rivalidade entre Flamengo e Vasco, que começou em 1923 com vitória 3×2 do Flamengo, um jogo eterno no Francêsguista. Faz mais de 100 anos que os dois times lutam e disputam grandes duelos e títulos. O ápice da […]

    Curtir

Deixar mensagem para Jogos eternos #196: Flamengo 2×1 Vasco 1987 – Francêsguista, as crônicas de um francês apaixonado pelo Flamengo Cancelar resposta

O autor

Marcelin Chamoin, francês de nascimento, carioca de setembro de 2022 até julho de 2023. Brasileiro no coração, flamenguista na alma.

“Uma vez Flamengo, Flamengo além da morte”