Mais um campeonato carioca se acaba e o recorde de gols em uma edição segue vivo. Pelo formato da competição, é até insuperável, como os 58 gols de Pelé no campeonato paulista de 1958. O recorde carioca é de 39 gols em 1941, pertence ao Pirillo, campeão com Flamengo em 1942, bicampeão em 1943, tricampeão em 1944, autor de mais de 200 gols com o Flamengo até 1947. Até hoje, Pirillo é o quarto maior artilheiro da história do clube. Porém, tem com ele uma certa injustiça, apesar de todos os gols e títulos, não tem o reconhecimento que merece, uma coisa que já acontecia quando jogava.
Sylvio Pirillo nasceu no 26 de julho de 1916 em Porto Alegre, talvez já uma coisa que o distancia da Nação rubro-negra. Começou no Americano de Porto Alegre e assinou no Internacional em 1936, substituindo Mancuso, um dos maiores ídolos do futebol gaúcho. No Inter, formou a dupla “Corda e Caçamba” ao lado do futuro técnico Osvaldo Brandão. Numa época de conflito entre amadorismo e profissionalismo, o Internacional e o Grêmio não participaram do campeonato gaúcho, assim Pirillo nunca conquistou o campeonato. Portanto, marcou a história do GreNal com 10 gols em 11 jogos no clássico, e jogou depois no Uruguai, no Peñarol.
Em 1941, o maior ídolo do Flamengo, Leônidas, estava em decadência. Lesão no joelho, conflito com o técnico Flávio Costa, com o presidente Gustavo de Carvalho, Leônidas até foi numa prisão militar durante 7 meses. Flamengo contratou o gaúcho Pirillo, que tinha a dura, quase impossível, missão de substituir o ídolo do povo. No livro Nação rubro-negra de Edilberto Coutinho, Pirillo lembra: “Dizia-se que nem Jesus Cristo, se voltasse à terra, podia substituir Leônidas da Silva. Mas acabei conseguindo que a torcida do Flamengo me aceitasse”. Já no seu primeiro jogo com o Manto Sagrado, na estreia do campeonato carioca de 1941, Flamengo venceu 5×2 Madureira na Gávea e Pirillo fez 3 gols.
Porém, o famoso compositor e radialista Ary Barroso não se conformava com a saída de Leônidas e criticava Pirillo. “Sem Leõnidas, não podia ser” não se cansava de lembrar Ary Barroso. E Pirillo não se cansava de fazer gols: 1 contra Fluminense, 2 contra Vasco e São Cristóvão, 3 contra Bangu para fechar o primeiro turno. Entre o segundo e o terceiro turno, Pirillo só não fez gol em 2 dos 14 jogos! Fez gol contra todo mundo e de todo jeito. No seu livro Anos 40: viagem à década sem copa, Roberto Sander completa: “Durante todo o campeonato de 1941, ele foi marcando um gol atrás do outro. A sua personalidade cordata e conciliadora também o ajudava a, no mínimo, não aguçar a revolta do torcedor. Pirillo era um cavalheiro e jamais se abalava com as crítica”. Na última fase do campeonato, Pirillo fez um gol contra Botafogo, contra Vasco, 2 contra Bangu e chegou o Fla-Flu decisivo. Pirillo fez sua parte com mais 2 gols, mas no famoso Fla-Flu da Lagoa eternizado pelo Mário Filho, Fluminense conseguiu o empate e conquistou o titulo.
Pirillo foi insuperável no campeonato carioca, com 39 gols em 28 jogos. Os 39 gols são um recorde até hoje, quem diria para sempre. Porém, talvez porque não ficou com o título no final, talvez por causa do jeito calmo e discreto, bem ao contrário do exuberante e irreverente Leônidas, Pirillo não conquistou completamente a Nação, que não esquecia o ídolo Leônidas, mesmo com sua saída definitiva do clube. No início de 1942, Pirillo foi merecidamente convocado na Seleção para o campeonato sul-americano no Uruguai. No Centenario onde brilhou durante dois anos com a camisa de Peñarol, sua estreia foi bis repetita daquela com o Flamengo: vitória contra o Chile e 3 gols de Pirillo. No campeonato, Pirillo até fez outro hat-trick, contra o Equador, mas o título ficou na mão dos uruguaios e Pirillo perdeu a artilharia por um gol de diferença com a dupla argentina Masantonio – Moreno. E Pirillo nunca mais convocado com a Seleção. Mesmo com tantos craques na época, até na Seleção, Pirillo foi injustiçado.
No campeonato carioca de 1942, Pirillo faltou alguns jogos no início e Flamengo começou de forma modesta, com 5 vitórias, 3 empates e 2 derrotas. Na sua volta, Pirillo fez um gol no 2×2 contra Botafogo. Depois, Flamengo só venceu, 15 vitórias consecutivas, muitas vezes com gol de Pirillo. Contra Vasco, Botafogo, Bonsucesso, Bangu, Pirillo deixava um gol, ou mais. Contra o America, num improvável 8×5 na Gávea, Pirillo fez 5 gols! Só Fluminense escapou da lista das vítimas de Pirillo, que passou em branco no primeiro Fla-Flu e não jogou o segundo. Chegou o último jogo do campeonato, outro Fla-Flu, só que agora era Flamengo que precisava do empate para ser campeão. Nas Laranjeiras, Pirillo abriu o placar, Fluminense chegou ao empate e só, Flamengo era o campeão. O botafoguense Heleno foi artilheiro do campeonato, mas Pirillo, com 23 gols em 24 jogos, foi artilheiro do Flamengo. Em seguida, Flamengo concluiu a temporada de 1942 com uma excursão em São Paulo, 3 jogos no Pacaembu, 4 gols de Pirillo, Flamengo invicto.
No campeonato carioca de 1943, foi bi repetita. Pirillo perdeu a estreia do campeonato, mas logo depois fez gols, 1 contra Botafogo, 2 contra Canto do Rio, 3 contra Bonsucesso. No histórico 6×2 contra Vasco, maior goleada do Flamengo sobre Vasco até 2024, Pirillo fez 2 gols. No jogo do título, outra goleada, 5×0 contra Bangu, Pirillo de novo fez 2 gols. Acabou o campeonato com 12 gols em 16 jogos, porém os maiores ídolos da Nação eram Domingos, Biguá, Zizinho. Até seu companheiro de ataque, Perácio, artilheiro do Flamengo no campeonato com 14 gols, era mais ídolo, mesmo que Pirillo foi o artilheiro da temporada, com 27 gols.
No campeonato carioca de 1944, saíram Domingos, no Corinthians, Perácio, na guerra, Valido, na aposentadoria. Para Pirillo, foi tri repetita. Faltou alguns jogos, mas continuou a fazer seus gols, destaque para um hat-trick na vitória 4×1 sobre Bangu. Na penúltima rodada, fez 2 gols na goleada 6×1 sobre Fluminense. Porém, chegou para o jogo decisivo bem debilitado. Explica o próprio Pirillo no livro Nação rubro-negra de Edilberto Coutinho: “Eu tinha aquele problema da orquite. Foi ministrada uma injeção, para diminuir as dores, e consegui jogar o tempo todo, embora com alguma dificuldade para correr, me movimentar mais. O Valido estava com febre alta”. Mas Valido, voltando da aposentadoria, foi o grande nome de um jogo inesquecível, um jogo eternizado no Francêsguista e na história do Flamengo, vitória sobre Vasco, gol de Valido. Pela primeira vez, Flamengo era tricampeão.
De novo Pirillo foi artilheiro do Flamengo no campeonato, com 14 gols em 16 jogos. No tricampeonato, fez 49 gols em 56 jogos, artilheiro máximo do Flamengo. Com sua modéstia de costume, Pirillo homenageou outro jogador: “É fácil ser artilheiro se ao nosso lado está um Zizinho”. Flamengo não conseguiu o tetra em 1945, mas Pirillo ainda fez seus golzinhos, 9 gols em 13 jogos, na verdade em 5 jogos já que fez 4 dobletes no campeonato. Pirillo deixou a artilheira rubro-negra do campeonato carioca para Adílson, mas foi o artilheiro do torneio municipal e mais uma vez o artilheiro do ano do Flamengo com 32 gols. Sobretudo, Pirillo foi o grande herói do Fla-Flu do torneio municipal, até hoje a maior goleada do Fla-Flu. No São Januário, Flamengo venceu 7×0 com 4 gols de Pirillo, um dos únicos 3 jogadores com Zico e Simões a fazer 4 gols num Fla-Flu. Com 18 gols, Pirillo é o segundo maior artilheiro do Fla-Flu, ultrapassado apenas pelo insuperável Zico.
No início de 1946, Pirillo chegou a se tornar o maior artilheiro da história do Flamengo. Não tinha as estatísticas de hoje, e foi num amistoso contra Sport na Ilha do Retiro que ultrapassou Jarbas, sem ninguém saber. No campeonato carioca, Pirillo brocou como de costume, com 18 gols em 19 jogos. Destaque para o hat-trick contra Canto do Rio e o poker-trick na goleada 10×0 sobre Bonsucesso, teve também dobletes contra o America, Fluminense e Bangu. Porém decepcionou no quadrangular final com apenas um gol, no último jogo contra Botafogo, quando Flamengo já não brigava mais pelo título. Seus 25 gols na temporada foram ultrapassados pelo artilheiro rubro-negro do ano, Perácio, com 34 gols. Em 1947, Pirillo voltou a ser artilheiro do ano, com 36 gols, inclusive 12 em 17 jogos no campeonato carioca. Porém, Flamengo ficou apenas no 5o lugar e Pirillo, com 31 anos e histórico de lesões no joelho, foi considerado velho e decadente. Fez seu último jogo com o Manto Sagrado no 28 de dezembro de 1947, no General Severiano. Claro, sendo o artilheiro que era, Pirillo não passou em branco, fez 2 gols na vitória 4×0 sobre Bangu.
Pirillo não parou muito longe e foi contratado pelo Botafogo do novo presidente Carlito Rocha, que buscava um substituto para o ídolo das massas botafoguenses, Heleno de Freitas. “Meu destino tem sido de substituir grandes ídolos. Leônidas foi o primeiro, agora Heleno” lembrou Pirillo. E a história se repetiu para Pirillo. Faltou o primeiro jogo do campeonato carioca de 1948, uma derrota dura 0x4 contra São Cristóvão, mas logo na sua estreia, fez um gol contra Canto do Rio. E Botafogo não perdeu mais. Pirillo conquistou a admiração de seu companheiro, o grande Nílton Santos, a Enciclopédia do futebol: “Tinha muita habilidade, infernizava os zagueiros com deslocamentos constantes, e era, sobretudo, um homem de rara valentia. Para decidir na técnica, sabíamos que poderíamos contar com ele; na catimba, também, e na hora da briga, nem se fala”. Pirillo fez 13 gols e seu senso coletivo, além de sua capacidade a jogar sem bola, uma inovação segundo Nílton Santos, ajudaram seu companheiro Octávio a se consagrar artilheiro do campeonato. Mais importante ainda, depois de 13 anos sem conquistar o título, Botafogo foi campeão carioca.
Pirillo jogou no Botafogo até 1952, quando pendurou as chuteiras. Começou uma carreira de técnico, começou bem, vencendo o torneio Rio-São Paulo 1957 com Fluminense, o que lhe abriu as portas para comandar a Seleção brasileira. Foi ele que convocou pela primeira vez o Rei Pelé, que estreou na Seleção com 16 anos, fazendo gol contra a Argentina. A chegada de João Havelange na CBD foi o fim da linha como técnico da Seleção de Pirillo, substituído pelo Osvaldo Brandão, com quem formava a dupla “Corda e Caçamba” no Internacional. Pirillo ainda foi campeão paulista 1963 com Palmeiras, contra quem não pude nada em 1974, quando treinava o Corinthians. “Não tenho nada contra o Sylvio Pirillo, mas tenho certeza de que, se o Brandão fosse o nosso treinador, o Corinthians teria sido campeão” julgou severamente Rivelino, bode expiatório da derrota do Corinthians.
Como jogador, Pirillo conquistou quatro vezes o campeonato carioca, o inesquecível tricampeonato rubro-negro 1942-1943-1944 e o campeonato de 1948, também importantíssimo na história do Botafogo. Por ironia, foi apenas uma vez artilheiro do campeonato, mas com um recorde insuperável, 39 gols em 1941. No Flamengo, foram 208 gols em 237 jogos, é o quarto maior artilheiro da história do clube, atrás apenas de Zico, Dida e Henrique Frade. Por 14 vezes, fez 3 gols em um jogo, por 5 vezes fez 4 gols. Sua média de 0,88 gol por jogo é a segunda melhor dos 10 maiores artilheiros do clube, ultrapassada apenas por Leônidas, aquele que Pirillo não conseguiu substituir plenamente nos corações rubro-negros.
Pirillo, na sua grandeza, ofusca até nosso maior ídolo. Zico foi o mais perto de superar o recorde insuperável de 39 gols num campeonato carioca. Na edição de 1979, Zico fez 34 gols em 26 jogos, e perdeu 7 jogos por causa de uma distensão muscular. Pelo meus cálculos de estatístico de formação, dava para Zico superar o recorde de Pirillo. O próprio Zico, no livro Zico, 50 anos de futebol, de Roberto Assaf e Roger Garcia, considera: “Eu cheguei a 34 gols, faltava um turno inteiro, eu estava marcando três por partida, foi uma pena”. Uma pena sim, mas ao menos o recorde é rubro-negro, pertence a um ídolo um pouco esquecido hoje, um pouco subestimado antes, mas que brilhou e fez brilhar muitas vezes, com muitos gols, o Manto Sagrado.








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