Ídolos #45: Hernane

Ídolos #45: Hernane

Para a crônica #45, um nome vem rapidamente na cabeça. Um jogador que escolheu esse número na camisa para seu clube seguinte, em homenagem ao número de gols que fez com o Manto Sagrado, em homenagem à torcida do Flamengo. Um jogador quase comum, mas que virou ídolo da Nação.

Hernane Vidal de Souza nasceu no 8 de abril de 1986 em Bom Jesus da Lapa, interior da Bahia. Começou na várzea da Bahia e nunca passou na base de um grande clube, até de um clube pequeno. Chegou no interior de São Paulo, já com 21 anos. Seu técnico no Atibaia, Eduardo Clara, falou assim do futuro ídolo do Flamengo: “Talento, sorte e estrela. Ele nunca jogou categoria de base na vida. Chegou da Bahia sem nunca ter jogado partida oficial. Lembro que ele era grandão e vi muito potencial. Era um finalizador nato. A bola procurava ele. Batia na trave e voltava para ele fazer”.

Hernane jogou em vários clubes do interior paulistano e se destacou com a camisa do Mogi Morim, sendo vice-artilheiro do campeonato paulista de 2012, atrás apenas de ninguém menos que Neymar. Seus 16 gols em 22 jogos foram suficientes para garantir um lugar na seleção do campeonato paulista e um empréstimo no Flamengo. Mesmo em tempos sombrios do Flamengo, Ronaldinho tinha acabado de sair do clube, o atacante de já 26 anos chegou sem muita esperança, para ser reserva, ou até terceira opção, atrás de Vágner Love e Deivid. Tempos sombrios mesmo.

Mas Hernane era predestinado e mostrou isso logo no primeiro jogo no Flamengo. Entrou no segundo tempo contra Coritiba e precisou de apenas 18 minutos em campo para fazer seu primeiro gol com o Manto Sagrado e garantir a vitória do Flamengo. “Esse foi o primeiro de muitos gols com a camisa do Flamengo” garantiu o então camisa 22, que demorou para cumprir a promessa. Em 2012, foram apenas outros dois gols, na sua amada Bahia e um golaço de voleio contra Figueirense. Uma temporada decepcionante, coletivamente e individualmente.

Em 2013, sem dinheiro nos cofres, Flamengo liberou Vágner Love e Liedson, e comprou Hernane, ainda sem muitas esperanças. Hernane recebeu a camisa 9, Carlos Eduardo tinha a camisa 10. Tempos difíceis no Flamengo, que em cima disso não tinha o Maracanã, na fase de reconstrução, ou destruição, para a Copa. Mas Hernane era predestinado. No primeiro jogo da temporada, fez os dois gols na vitória 2×0 sobre Quissamã. Nos 7 primeiros jogos, fez 8 gols, inclusive gols nos clássicos contra Vasco e Botafogo. Fazia gol de todo jeito, de pé esquerdo, pé direito, de cabeça. Na verdade, tinha uma coisa que não fazia, se não me engano, nos 45 gols com o Manto Sagrado, não fez sequer um de fora da área. Hernane era um jogador de grande área, às vezes de pequena área. O que não mudava era a comemoração, cheia de raça, vontade e garra.

Em boa fase, Hernane começou a ser chamado de “Chicharito Hernane”, mas não gostou e preferia o apelido de Brocador. E gols ele brocava, assim foi prontamente atendido pelo maior patrimônio do Flamengo, a torcida. Porém, ainda no campeonato carioca, Hernane entrou num jejum, com apenas um gol em 8 jogos. Voltou a brocar no melhor clássico, o Fla-Flu, com uma alegoria de gol: Hernane caiu, se levantou e na sequência fez o gol de cabeça. E voltou numa fase de artilheiro, fez 3 na Copa do Brasil contra Remo, outros dois contra Macaé para fechar o campeonato carioca com uma eliminação precoce sim, mas também uma primeira artilharia em 2013, com 12 gols em 15 jogos.

Hernane já virava um nome importante da temporada do Flamengo. A indicação para a contratação foi do dirigente Jairo dos Santos e vale a pena citar a matéria do SporTV sobre as anotações de Jairo, que primeiramente não gostou do Hernane: “Dificuldade em dominar a bola, não demostrou habilidade em geral, sem condições de ser jogador para o Flamengo, atualmente. Chances de dar certo: 15%”. Depois, Jairo voltou a ver jogar Hernane no campeonato paulista de 2012. “Uma coisa me chamou a atenção: Hernane disputava a artilharia do Campeonato Paulista com o Neymar e, mesmo nas últimas rodadas, deixava o individualismo de lado em prol do jogo coletivo”, disse Jairo, que notou 10 características de Hernane. Além de ser “ambidestro, com forte chute de esquerda”, “oportunista” e “atuando como pivô”, além de ter “boa percepção tática”, ser “finalizador”, de ter “bom jogo aéreo”, são os itens 5 e 10 que me marcam mais. O 5 é: “atento aos lances e decidido nas divididas: luta com o time” e o 10: “não reclama, mostra bom comportamento, concentração, coesão, tranquilidade emocional, espírito de equipe”. E acho que é por isso, além dos gols claro, que Hernane virou ídolo do Flamengo. Num momento complicado para o time e a torcida, honrou o Manto, como muitos, e ao mesmo tempo, poucos, fizeram na história do Flamengo.

No Brasileirão de 2013, Hernane passou em branco nos 4 primeiros jogos, fez gol contra Criciúma e depois não jogou durante quase dois meses. Teve a pausa para a Copa das confederações, Hernane ainda perdeu a posição para a nova contratação de peso (mediano), o boliviano Marcelo Moreno. O Brocador nem saia mais do banco. A volta de Hernane, que também foi a volta do Flamengo no Maracanã depois de 3 anos de obras, foi heroica. Hernane entrou para os 15 minutos finais do clássico contra Botafogo, que vencia 1×0. No último minuto dos acréscimos, fez assistência para Elias e Flamengo escapou da derrota, ainda ficando na vice-lanterna. Hernane saiu do jejum de gols num outro clássico, o Fla-Flu, também de forma heroica. Num jogo eternizado no Francêsguista, fez 2 gols, incluindo um golaço de letra, talvez seu gol mais bonito com o Flamengo.

E Hernane se consagrou como o artilheiro do Novo Maracanã, de uma forma absurda. Entre os meses de setembro e outubro, disputou 8 jogos no Maracanã, passou apenas em branco contra Botafogo e fez ao total 12 gols! E detalhe, no jogo sem gol, o mandante era Botafogo. E no mesmo período, disputou 7 jogos fora do Maracanã e fez apenas um gol! E detalhe, o gol foi marcado num jogo em que Flamengo era mandante, mas deslocalizou a partida no Mané Garrincha, que viu Hernane brocar contra Vasco… Hernane era o homem dos clássicos, o homem do Maracanã, o homem-gol.

Porém, nada supera o jogo contra Botafogo nas quartas de final da Copa do Brasil. Claro, teve os gols na temporada, o estilo brigador e brocador, mas tem o jogo contra Botafogo, um jogo eterno no Francêsguista e na história do Flamengo. O Botafogo favoritaço, o Flamengo lutando para não cair no Brasileirão, o Flamengo sofrendo, mas lutando com toda sua alma, sua história. Teve Elias nas oitavas, tinha Hernane nas quartas. Um Novo Maracanã louco para vibrar, com o Flamengo que tinha, com os jogadores que tinham. Teve um show de Hernane, um primeiro gol do pé esquerdo depois de falta e confusão na grande área, um segundo gol, ainda no primeiro tempo, ainda com o pé esquerdo, depois de chute de Paulinho defendido pelo Jefferson. “Ambidestro, com forte chute de esquerda” e “oportunista” tinha avisado Jairo dos Santos.

Jairo também falou que tinha “bom jogo aéreo” e no segundo tempo, André Santos cruzou, Hernane cabeceou, triplicou e apenas com esse jogo, se eternizou na galeria dos ídolos do Flamengo. Ainda mais que no segundo gol, fez uma comemoração que pode se repetir a cada Flamengo x Botafogo, o chororô criado pelo Souza e repetido por muitos, mas ao mesmo tempo, poucos ídolos do Flamengo. Ainda no Maracanã, Hernane fez seus gols contra Goiás, tanto na Copa do Brasil que no Brasileirão, e Flamengo partiu para uma final da Copa do Brasil, contra o Athletico Paranaense. Outro jogo eterno, e um final mais que perfeito. No estilo oportunista, brigador e brocador, Hernane fez o gol, o sinal do acabou, e acabou mesmo. Acho que nunca antes, e nunca depois, o Novo Maracanã gritou tanto, explodiu tanto que nesse gol do Brocador. Com problemas financeiros e um time limitado, Flamengo conquistou um dos títulos mais festejados de sua história, um título inesquecível para quem pegou essa época, viveu esses momentos de frustrações e glórias ainda maiores.

Hernane conseguia outra artilharia e ainda brocou no final da temporada, o último gol contra Cruzeiro no Maracanã, para ser vice-artilheiro do Brasileirão, para se consagrar o artilheiro do ano no Brasil, com um total inesperado de 36 gols. Inclusive com 20 gols no Novo Maracanã, então um recorde, ultrapassado por um rubro-negro apenas em 2019 pelo Gabigol na goleada histórica sobre Grêmio, exatamente 6 anos após o hat-trick de Hernane contra Botafogo. Em 2014, Hernane ainda fez seus golzinhos, incluindo 4 na goleada 5×2 contra Macaé, mas viveu com lesões, o que não impediu a torcida rubro-negra de pedir sua convocação na Copa. Hernane ainda rendeu uma boa grana ao clube quando foi vendido ao Al-Nassr. No clube de Arábia Saudita, escolheu diretamente o número 45 na camisa, como o número de gols no Flamengo. Depois, teve boas passagens no Sport e com Bahia, joga até hoje, sendo artilheiro do campeonato amazonense 2025 com Confiança, e agora fazendo seus golzinhos no Cianorte.

A Nação já teve como ídolos centroavantes que não eram gênios nem craques, mas que honravam o Manto, jogadores valentes, que compensavam a falta de técnica com um coração enorme. Num duelo entre Obina e Hernane, tenho minha preferência para o primeiro, por ser justamente o primeiro, época em que comecei a assistir aos jogos do Flamengo. Mas o Flamengo também sofreu no início da década de 2010 e não caiu, de divisão ou de tamanho de torcida, muito graças ao Brocador, aos seus gols e seu carisma, se eternizando na galeria dos ídolos rubro-negros, com um temporada inesquecível, 36 gols e algumas noites mágicas no Maracanã.

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O autor

Marcelin Chamoin, francês de nascimento, carioca de setembro de 2022 até julho de 2023. Brasileiro no coração, flamenguista na alma.

“Uma vez Flamengo, Flamengo além da morte”