Times históricos #28: Flamengo 1968

Em 1968, Flamengo vinha de uma fase difícil. Não levava uma taça há três anos, quando conquistou o campeonato carioca 1965, e ganhou apenas 22 dos 70 jogos disputados em 1967. O jejum já incomodava e a diretoria resolveu investir. Chamou de volta o antigo ídolo Silva, que não brilhou muito no Barcelona, por causa do regulamento que impedia os estrangeiros de participar dos jogos oficias, e no Santos, talvez por causa do Pelé. A vontade do Silva de voltar a vestir o Manto Sagrado foi maior que as negociações difíceis com o Barcelona. Falou Silva, até antes do negócio ser concluído: “Para ser franco, eu sempre tive a intuição de que mais cedo ou mais tarde eu voltaria. Isso porque me sinto mais confiante e certo de ser ídolo quando estou na equipe do Flamengo. Gosto muito da confiança que a torcida tem em mim e da maneira como ela me recebe. Foi no Flamengo que atingi a minha melhor forma técnica e foi aqui que fiz muitos amigos. Nunca cheguei a me afastar do Flamengo, mesmo após vendido ao Barcelona”. Flamengo também contratou o zagueiro uruguaio Manicera, titular na Copa do Mundo de 1966, e tinha grandes esperanças para o ano de 1968.

O técnico era campeão do mundo, Aymoré Moreira, que chegou no Flamengo no final de 1967. O time era bom, com jogadores como Zequinha, Carlinhos, Liminha, Paulo Henrique, Luís Carlos, Reyes, Rodrigues Neto, César Lemos, Fio Maravilha. Só faltava os títulos. E Flamengo começou o ano com uma decepção já, um empate 2×2 contra Fluminense de Feira na Gávea. Ainda na Gávea, venceu Água Verde e foi até Campinas para um torneio amistoso. Perdeu logo no primeiro jogo, 2×5 contra o time da casa, Guarani, e ainda perdeu a disputa do terceiro lugar, contra Grêmio, de um torneio que finalmente foi vencido por outro time carioca, Bangu. Aymoré Moreira saiu do clube e foi substituído pelo Válter Miraglia, que jogou no Flamengo entre 1948 e 1955.

Na primeira excursão do ano, na Argentina, Flamengo perdeu 2×0 contra Boca Juniors e venceu 2×1 Rosário Central com doblete de César Maluco, irmão de Caio Cambalhota, herói do Fla-Flu de 1972 que eternizei no blog pouco tempo atrás. Flamengo voltou ao Brasil para um amistoso que marcou a reestreia de Silva. Na época, alguns amistosos valiam ouro, valiam dinheiro, e podiam lotar o Maracanã. É um jogo que ainda devo eternizar no Francêsguista. O adversário era um dos maiores times da época, o Cruzeiro de Tostão e Dirceu Lopes, tricampeão mineiro, campeão da Taça Brasil de 1966, aplicando goleada no Santos de Pelé. Para o primeiro jogo do ano no estádio, o Maracanã estava lotado, com 86.275 pagantes, um número incrível para um simples amistoso. Mas não era um simples amistoso, era a volta de Silva, que fez 2 gols no primeiro tempo, um do pé esquerdo, o outro de falta. Na geral, a torcida, inspirada como o próprio Silva, cantou um samba de Osvaldo Nunes: “Voltei, aqui é o meu lugar, minha emoção é grande, a saudade ainda maior, vim aqui para ficar”. César Maluco fez outro antes do intervalo, Silva foi substituído pelo Almir Pingo no intervalo, Luís Carlos fez mais dois gols no segundo tempo. No final, uma goleada 5×2 do Flamengo e uma frase eterna de Silva Batuta: “Essa torcida me deixa maluco. Quando ela começa a gritar, sou até capaz de morrer em campo. É por isso que prefiro não voltar no segundo tempo. Sei que ainda não estou bem fisicamente e peço à torcida que tenha paciência para esperar a minha volta em melhor forma física. Juntos, vamos viver muitos momentos de plenitude. Nascemos um para o outro”.

Ainda no Maracanã, Flamengo perdeu num amistoso contra o time argentino do Racing, campeão mundial meses antes, e estreou no campeonato carioca com vitória 3×0 contra a Portuguesa, dois gols de César Maluco e um de Luís Carlos. No jogo seguinte contra Bangu, Silva voltou e fez o único gol da partida, de cabeça no final do jogo. Silva ainda fez 3 gols e uma assistência na goleada 5×0 contra São Cristóvão. E quando não era Siva Batuta, era César Maluco, que fez 2 gols na vitória 2×1 contra Olaria. Flamengo perdeu contra o Botafogo, campeão em 1967, mas venceu Fluminense 4×2, com 2 gols de Silva nos 20 primeiros minutos. O Batuta também fez os três gols do jogo contra Bonsucesso. No feriado do 1o de maio de 1968, teve um Flamengo x Vasco com 155.098 presentes no Maracanã, número incrível para um jogo que não era decisão. E foi outro jogo eterno, Vasco abriu o placar, Flamengo virou com dois golaços, um de falta de Onça e um de letra de Dionísio depois de cruzamento de Zanata. Flamengo fechou o primeiro turno no segundo lugar de seu grupo, com um ponto a menos que Botafogo.

Flamengo estreou no turno final do campeonato carioca com vitória 1×0 no Fla-Flu, gol de Fio Maravilha. Depois de dois amistosos no Maracanã, contra a seleção do Congo e o Santos, Fla voltou no campeonato carioca, com vitória 2×0 contra Madureira antes de um empate 2×2 contra o America. O jogo teve uma arbitragem polêmica e o presidente rubro-negro Luís Roberto Veiga Brito até ameaçou de abandonar o campeonato: “Trata-se de uma repetição das manobras sórdidas desfechadas nos anos anteriores para nos prejudicar, mas desta vez não vamos nos conformar”. Flamengo fechou o turno com 3 vitórias, 3 empates e uma derrota, muito longe do Botafogo, que conquistou o bicampeonato carioca com 7 vitórias em 7 jogos, a última um 4×0 contra Vasco na frente de 141.689 torcedores no Maracanã. O artilheiro do campeonato foi o atacante alvinegro Roberto com 13 gols, na frente dos 11 gols de Silva Batuta e dos 10 de César Maluco.

Depois de alguns amistosos no Brasil, muitas vezes sem a presença de Silva Batuta por causa de dores musculares, Flamengo estreou na Taça Guanabara com vitória 2×1 sobre o America, gols de Silva e Luís Carlos. Numa época ainda sem Brasileirão, a Taça Guanabara era uma competição à parte do campeonato carioca e tinha muito prestígio, ainda mais para um clube que não vencia o campeonato carioca desde 1965. O que também tinha prestígio era as excursões no exterior, ainda mais depois da Copa do Mundo 1958 conquistado pelo Brasil na Suécia. Dez anos depois, Flamengo foi na Europa e voltou na Espanha, onde jogava quase todos os anos desde 1957, quando participou da inauguração do Camp Nou contra Burnley, um jogo eterno no Francêsguista.

Em 1968, Flamengo jogava de novo no Camp Nou, no Troféu Joan Gamper, do nome do fundador do Barcelona. Flamengo participou para ajudar na compra do passe ao Barcelona de Silva Batuta, que brilhou na semifinal contra o Athletic Bilbao, com um de seus gols mais bonitos de sua carreira. No final do jogo, com o placar ainda no 0x0, Murilo driblou dois e deixou para Zélio, que cruzou. Silva chegou, bicicletou, golaçou. Flamengo venceu 1×0 mas perdeu 5×4 na grande final contra o Barcelona, com o quinto gol espanhol em franco impedimento segundo o Jornal do Brasil, que também viu o goleiro Marco Aurélio falhar em 3 gols do Barcelona. Cinco meses depois da derrota contra o Racing no Maracanã, Flamengo perdeu de novo contra os campeões do mundo, agora em Riazor no Torneio Conde de Fenosa. Flamengo finalmente conquistou um troféu com o torneio Restelo no Portugal depois de vitória 3×2 sobre Belenenses, gols de Rodrigues Neto, Reyes e Liminha.

Flamengo seguiu a excursão na África, jogando pela primeira vez de sua história no Marrocos. Na África, Flamengo já tinha jogado no Gana em 1962 e na Costa de Marfim em 1964. Até antes o Santos de Pelé, Flamengo já era nome certo na África. Em 1968, jogou o Torneio Mohammed V, do nome do Rei do Marrocos, que conseguiu a independência do país em 1956. Primeiro jogo, no estádio Marcel Cerdan, foi contra o time da casa, o FAR Rabat, com vários jogadores que participaram da Copa do Mundo 1970 com o Marrocos. Liminha abriu o placar, antes do gol marroquino, empatando a partida. Pouco antes do fim do jogo, Silva Batuta fez o gol da vitória, mas o novo Rei do Marrocos, Hassan II, filho de Mohammed V, saiu da tribuna de honra para invalidar o gol. A bola tinha saído do campo e um reserva do Flamengo foi mais rápido que o gandula para devolver a bola. Paulo Henrique fez o lateral rápido, para Silva que foi ainda mais rápido para fazer o gol. O Rei não gostou, reclamou e o juiz, também marroquino, invalidou o gol, contrariando as regras e os deuses do futebol. Cinco minutos depois, Silva fez outro gol e o Rei não teve o que falar. Uma história similar aconteceu na Copa do Mundo de 1982 num jogo entre minha França e Kuwait, quando o irmão do emir do Kuwait saiu da tribuna para anular um gol de Giresse. Como o Flamengo, a França fez outro gol logo depois o gol mal anulado.

Flamengo estava na final e pela terceira vez do ano, jogava contra o Racing, campeão mundial. O time argentino abriu o placar com apenas 5 minutos de jogo, mas Luís Cláudio empatou 10 minutos depois. No segundo tempo, Liminha fez o gol da virada e Silva fez mais um. O gol de Salomone no final não serviu para os argentinos, o campeão era o Maior do Mundo, Flamengo. O torneio Mohammed V, disputado de 1962 até 1989, foi vencido por grandes times, como Real Madrid, Barcelona, Boca Juniors e Bayern de Munique, e Flamengo é o único brasileiro a ter conquistado a Taça, apesar de participação do São Paulo, Grêmio e Internacional. No seu livro Seja no mar, seja na Terra, 125 anos de histórias, Roberto Assaf escreve: “O Troféu Mohammed V, de ouro e prata, com cerca de um metro de altura, foi entregue por Hassan II ao capitão Paulo Henrique. À noite, o rei ofereceu um banquete no Palácio de Habous para os visitantes. O Flamengo voltou via Air France. Chegou ao Rio em 3 de setembro, trazendo a taça, além dos 55 mil dólares. Cada jogador recebeu de prêmio em torno de dois mil e quinhentos cruzeiros novos. Dava para comprar um carro nacional com dois anos de uso. Os tempos mudaram, sem dúvida, mas o Trophée Mohammed V está na Gávea, para quem quiser conhecê-lo”. O grande herói da conquista foi mais uma vez o camisa 10 Silva Batuta. Meses depois, Silva assinou no próprio Racing, onde está até hoje o único brasileiro a ter sido artilheiro do campeonato argentino.

De volta no Brasil, Flamengo continuava na Taça Guanabara, em busca de outro título, agora oficial. Agora quem escreve é o Marcel Pereira, no seu livro A Nação, como e por que o Flamengo se tornou o clube com a maior torcida do Brasil: “Veio a Taça Guanabara, na qual o Flamengo venceu os quatro jogos iniciais. Daí empatou com o Botafogo e perdeu para o Bonsucesso dentro do Maracanã. Na última rodada, o Flamengo jogava por um empate contra o Bonsuça no Maracanã. O estádio estava lotado. O Botafogo, acreditando que a parada já estava resolvida, saiu em excursão à Europa. Foi traumático. O time rubro-negro ficou 80% do tempo de jogo no campo do adversário. A bola não entrava. Finalizou inúmeras vezes e a bola não entrava. O Bonsucesso deu dois ataques no jogo inteiro, e fez dois gols. A derrota por 2 a 0 forçou a interrupção da viagem alvinegra pelo Velho Continente. Flamengo e Botafogo terminaram com nove pontos. O regulamento previa que os dois primeiros fizessem a final”.

Botafogo voltou às pressas no Brasil e Flamengo estreou no Torneio Roberto Gomes Pedrosa, maior inspiração para o Brasileirão, criado em 1971. O primeiro jogo estava marcado no Maracanã, contra o Santos de Pelé, que visitou antes do jogo um orfanato de Rio. As crianças pediu ao Pelé não fazer gol contra Flamengo, o Rei cumpriu a promessa, mas Santos ganhou 2×0 com gols de Edu e Toninho. Na decisão da Taça Guanabara contra Botafogo, Flamengo jogou em branco por superstição do diretor Flávio Soares, o rubro-negro tinha acabado de vencer o torneio no Marrocos com a camisa branca. Não deu sorte, na frente de 94.535 pagantes no Maracanã, Flamengo levou o primeiro gol, feito por Gérson, que saiu de Flamengo em 1963 brigando com a diretoria. No segundo tempo, Dionísio empatou, mas Zequinha, que ainda jogava no Flamengo no início de 1968, deixou Botafogo de novo na frente. Num pênalti, Gérson fez o doblete e Roberto fez o gol do título botafoguense, da goleada 4×1. Flamengo passava mais uma vez em branco.

Na segunda rodada do Torneio Roberto Gomes Pedrosa, de novo com gol de Dionísio, Flamengo derrotou Cruzeiro 1×0. Cruzeiro não perdia há cinco meses, sua última derrota foi justamente contra Flamengo, quando Silva Batuta brilhou na sua reestreia no Flamengo. Porém, o time rubro-negro decepcionou no campeonato nacional, com nenhuma vitória nos 8 jogos seguintes! Flamengo já estava fora do título e para acalmar a torcida, a diretoria, seguindo o pedido dos jogadores da Seleção brasileira, Silva, Carlinhos e Paulo Henrique, fez uma contratação de peso, Garrincha. Acima do peso de 12 quilos, Garrincha fez apenas um jogo em 1968 no Junior Baranquilla, na Colômbia. Seu amigo João Saldanha avisou o diretor Paulo Calarge que “a única coisa que Garrincha não bebia era querosene”. Mas Flamengo tentou, Garrincha se esforçou, diminuiu a bebida, perdeu peso e, depois de um treino coletivo, estava pronto a estrear com o Flamengo, seu time de coração segundo sua mulher Elza Soares.

A estreia de Garrincha foi marcado no 30 de novembro, contra Vasco. Flamengo já estava eliminado e tinha um limite de ingressos no Maracanã. Mas era o reencontro entre a Alegria do Povo e o Maracanã, agora um Maraca rubro-negro, assim ainda mais lindo. A Nação comprou os 79.894 ingressos à disposição, os cambistas venderam ingressos por um preço três vezes maior. Os torcedores de fora pressionaram o portão do Maracanã, a ADEG abriu as portas e calcula-se que tinha aproximadamente 140 mil torcedores no Maracanã para ver Garrincha com o Manto Sagrado. Chegou a primeira bola nos pés do Garrincha e a Nação explodiu de alegria. Porém, o Anjo de pernas tortas estava bem marcado pelo Eberval, com o apoio de Fontana, que eram vaiados pela própria torcida vascaína, que também queria ver Garrincha em ação! Garrincha saiu no intervalo sem brilhar e Flamengo fechou o Torneio Roberto Gomes Pedrosa com mais uma derrota. O último jogo do ano, de novo com participação discreta de Garrincha, foi um empate 2×2 num amistoso contra o Atlético Mineiro no Mineirão.

Apesar de dois jogos parcelados, Garrincha foi eleito pela Associação dos Cronistas Esportivos do Rio de Janeiro como o “Atleta do Ano”, muito mais pelo que fez antes do que fez com o Manto Sagrado. Flamengo, que não pôs fim a seca de títulos em 1968, não podia mais olhar para o passado, tinha que olhar no futuro. E neste mesmo ano de 1968, ainda no início do ano, um garoto franzino da base, que tinha chegado no clube um ano antes, foi entrevistado pelo Jornal do Brasil e falou sobre seu irmão jogador profissional no America e seus sonhos de jogador: “Quero ser como o Eduzinho, só que com a camisa do Flamengo, até chegar à Seleção Brasileira”. Sim, ele mesmo, Nosso Rei, Deus, Zico. Na matéria, o jornalista Célio de Souza avisou: “Dentro de cinco anos ele será um craque”. Talvez Flamengo tinha um presente difícil, mas tinha um futuro brilhante.

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O autor

Marcelin Chamoin, francês de nascimento, carioca de setembro de 2022 até julho de 2023. Brasileiro no coração, flamenguista na alma.

“Uma vez Flamengo, Flamengo além da morte”