Francêsguista

Francês desde o nascimento, carioca desde setembro de 2022. Brasileiro no coração, flamenguista na alma. Uma vez Flamengo, Flamengo além da morte.

  • Ídolos #18: Renato Abreu

    Ídolos #18: Renato Abreu

    Eu comecei a acompanhar o futebol brasileiro e Flamengo em 2005 e apesar da situação difícil do Flamengo, o time estava muito bem servido de ídolos. Claro, o maior para mim era Obina, mas ainda tinha Zinho, Ibson e foi o ano da chegada de dois outros ídolos, Léo Moura e Renato Abreu.

    Carlos Renato de Abreu nasceu no 9 de junho de 1978 em São Paulo e começou sua carreira em clubes de Santa Catarina, a começar pelo Marcílio Dias, onde foi expulso no seu primeiro jogo profissional. Jogou no Joinville, ainda no Santa Catarina, e depois voltou no futebol paulista, em União Barbarense e em seguida Guarani, onde, para seu primeiro jogo com o time, fez dois gols contra… Flamengo, no Maracanã, num 3×3 na Copa do Brasil de 2000.

    Em 2001, Renato chegou no Corinthians, onde conquistou vários títulos, fez gol olímpico contra Palmeiras e, sem ser ídolo, chegou ao Flamengo em 2005. “Quando cheguei ao Flamengo, meu objetivo era vestir a camisa com o maior orgulho e carinho. Lembro que na primeira entrevista disse que eu não podia prometer títulos, mas que prometia vontade de vencer o tempo todo, brigar pela vitória, e isso não ia faltar nunca”, falou Renato Abreu em 2013 para GloboEsporte. Por causa da presença do jovem Renato Augusto no elenco, Renato virou Renato Abreu. E ainda mais, virou ídolo. Camisa 11, Renato Abreu fez seu primeiro gol com o Manto Sagrado num clássico contra Botafogo no campeonato carioca. O segundo, contra Friburguense, veio de pé direito, o terceiro, contra Coritiba, veio de uma falta de longe, de um chutaço de pé esquerdo. As faltas foram a principal caraterística do Renato Abreu. Por isso, e para sempre, é ídolo do Flamengo.

    Impressionante o número de grandes batedores de falta no Brasil. Didi, Pelé, Pepe, Rivelino, Nelinho, Marcelinho, Rogério Ceni, Juninho Pernambucano, Ronaldinho Gaúcho e claro, obvio, Zico. Mas, tem uma coisa evidente, no Brasil, e no mundo inteiro também, o grande batedor de faltas teve a tendência de sumir nos últimos anos. Então Renato Abreu é um dos últimos sobreviventes, faz parte de uma espécie em vias de extinção. Uma falta para o Flamengo na época do Renato Abreu tinha muito mais emoção do que hoje, por causa do Renato Abreu. E qualquer falta, Renato Abreu podia fazer gol de falta de 16 até 40 metros de distância.

    Mas Renato Abreu não foi só faltas. Podia recuperar a bola nos pés do adversário, tinha boa técnica, podia fazer passes na frente e claro, podia chutar de longe. Não foi só faltas, foi também chutaços de longe, só golaços. Era o coração do time e ele foi uma das únicas satisfações do Flamengo em 2005, sendo artilheiro do time, mesmo jogando no meio de campo. E em 2006, de novo ele foi artilheiro do time, com a marca impressionante de 19 gols. E mais, ele fez contra São Caetano um doblete com dois golaços de falta. E ainda mais, contra Fluminense, quando Flamengo estava num jejum de dois anos e meio sem vitória no Fla-Flu, Renato Abreu fez, de novo, dois golaços de falta e Flamengo goleou. E mais importante, Renato Abreu foi artilheiro do Flamengo na Copa do Brasil, fazendo na semifinal o gol da virada contra Ipatinga, vencendo a final conta Vasco. Agora, Renato Abreu não era mais só coração do time, só artilheiro, era também, par a eternidade do Clássico dos Milhões e para os 35 milhões de flamenguistas, campeão nacional com o Flamengo.

    Comecei a acompanhar o futebol brasileiro em 2005 mas realmente comecei a assistir aos melhores momentos de todos os jogos do Flamengo em 2007. Então, o campeonato carioca 2007 foi minha primeira competição mais ou menos ao vivo, e adorei, do início até o fim. Quase todos os jogadores do time viraram meus ídolos., ao menos durante um momento. Bruno, Léo Moura, Ronaldo Angelim, Juan, Claiton, Renato Augusto. E Renato Abreu. A final contra Botafogo foi surreal, um Maracanã lotado, cheio, pronto para se inflamar. E Renato inflamou o Maraca, com um gol de pênalti e uma comemoração do Urubu-Rei que o inscrivia ainda mais na galera dos ídolos rubro-negros, uma comemoração que o eternizava no Flamengo. Vale a pena ler as lembranças de Renato Abreu sobre o Urubu-Rei: “Sempre gostei das comemorações do Viola. Sempre. Acho que era uma coisa que ele representava bem a alegria do torcedor em campo. Saímos comemorando quando marcamos o gol, mas não sabemos a dimensão daquilo para o torcedor lá em cima. Eu era muito torcedor de arquibancada. Ia sempre para os estádios torcer pelo Santos com meu pai e vibrávamos muito, de todas as formas. Nas peladas, a gente imitava o Viola. Quando cheguei no Flamengo, vi que o carioca, o Maracanã tinha muito isso. A geral, onde ficava todo mundo correndo, tinha muita gente fantasiada. Era anjinho, Popeye… Na véspera da final de 2007, contra o Botafogo, estava falando com minha esposa no telefone e pensei: ‘Poxa, queria fazer algo de diferente’. Tinha umas máscaras em casa para brincar com minha filha. Comprei de cachorro, ratinho, elefante, tigre, e tinha uma de galinha. Eu falei com ela: ‘Amor, pega aquela máscara de galinha, pinta de preto e faz uma de urubu para mim. Você é inteligente’. Ela cortou a crista da galinha, costurou, fechou e pintou. Como era de borracha, não tinha problema de colocar no calção. Ninguém estava sabendo. Fui para o estádio já com a máscara na cueca. Na hora de me trocar, botei a toalha, disfarcei, ajeitei e fui para o jogo pensando: ‘Vamos ganhar e vou fazer gol para ser campeão e comemorar com a máscara’. O Botafogo fez 1 a 0, fez 2 a 0 e pensei: ‘Já era’. Até que tabelei com o Souza pelo meio, driblei o goleiro e sofri o pênalti. Peguei a bola para bater o pênalti e pensei: ‘Não quero nem saber, vou comemorar como pensei’. Fiz o gol e botei a máscara. Renato Augusto ficou olhando assustado, o Souza… E vi que a galera levantou, incendiou o jogo, empatamos e fomos campeões nos pênaltis. Aí virou marca registrada. Lembro que subi na trave, comemorei o título, começaram a chamar de urubu, eu batia asa”.

    Quatro dias depois da final, Renato Abreu brilhou muito no jogo de volta das oitavas de final da Libertadores, depois de perder 3×0 no jogo de ida contra Defensor. Como capitão, liderou o time e fez mais um doblete, um chutaço de falta na gaveta para começar, e depois mais um golaço de fora da área, agora um chutaço com bola rolando, na gaveta de novo. Infelizmente, não foi suficiente e Flamengo foi eliminado apesar da vitória 2×0. Foi uma mistura de decepção e de orgulho, orgulho do Maracanã e do time, que lutou muito para a classificação que não veio. Renato ainda jogou alguns jogos do Brasileirão de 2007, fez mais um doblete, contra Sport, de pênalti e de gol olímpico, o Rei das bolas paradas, de qualquer jeito, principalmente de faltas, o Urubu-Rei, Renato Abreu.

    Infelizmente, Renato Abreu saiu do Flamengo nos meados do ano de 2007 para Al-Nasr, nos Emirados Árabes Unidos. Não relembro com certeza, mas acho que fiquei muito chateado com a saída dele, ainda mais para o Oriente Médio. Ainda descobria o futebol brasileiro e achava que todo mundo amava o Flamengo igual eu, que os dirigentes e jogadores estavam aqui para o Flamengo, apenas o Flamengo. A realidade é bem longe disso, e hoje entendo a escolha dele, mas não fui o único a ficar chateado, como fala o próprio Renato Abreu no GloboEsporte sobre a despedida dele da Gávea: “Chorei muito. Despedida é muito triste. Ainda mais quando se cria um laço de amizade forte no clube. E não só com jogadores, mas todas as partes. Roupeiro, massagista, dirigente, torcedor… Deixei uma marca importante. Fiquei feliz porque todos também sentiram. Quando somos queridos, acabamos retribuindo de alguma forma. Além de deixar o país, o clube, deixei vários amigos. Lembro que uns três jogos antes de sair para os Emirados eu tive uma proposta do Bordeaux, mas ninguém sabia. Um repórter até comentou e eu respondi que não sabia de nada. No jogo seguinte, contra o Grêmio, o time estava muito mal e a torcida, não sei se estavam revoltados porque eu ia deixar o Flamengo, pegava no meu pé. Eu pegava na bola e me vaiavam”.

    E finalmente, Renato Abreu voltou na Gávea, em 2010, com a ajuda de Zico, na época diretor de futebol do Flamengo. A segunda passagem, como acontece muitas vezes, foi menos convincente, mas o Urubu-Rei, proibido de fazer essa comemoração, o futebol virando cada vez menos engraçado, ainda fez alguns bons jogos e foi um líder do time, até podia orientar a maior estrela da época, Ronaldinho. De novo Renato Abreu, sobre um gol do Bruxo contra o Galo: “Lembro que ali ele fez um gol e a torcida pegava muito no pé dele há alguns jogos. Não tinha aquele laço de amizade tão forte com o Ronaldinho, mas é um cara totalmente do bem, superamigo, gente boa. No vestiário, falávamos que ele que faria a diferença. Nesse jogo, ele fez o gol e ia fazer algum gesto. Na hora, eu abracei, peguei pela cabeça e falei: ‘Não faz nada porque você é grande’. Por ser mais velho no Flamengo, acho que ele escutou. O carinho dele pelo clube também era grande. É algo momentâneo. Muitos jogadores fizeram isso, esse tipo de comemoração. São coisas de segundos. O torcedor está revoltado lá em cima e nós, às vezes, nos revoltamos também pela derrota e pela luta em campo. Na maioria das vezes, tentamos acertar”.

    Renato Abreu ganhou mais um campeonato carioca, o de 2011, de forma invicta, ainda fez alguns bons jogos, até estreou com a Seleção brasileira com 33 anos num jogo contra a Argentina. Teve depois algumas lesões, teve até cirurgia no coração, mas Renato Abreu voltou e ainda marcou gols com o Manto Sagrado. Na despedida de Petkovic, Renato Abreu fez gol de falta, olha o tamanho da personalidade de Renato Abreu e da homenagem ao Pet. Renato Abreu ainda fez um doblete contra Fluminense e mais um doblete de falta contra Campinense, na Copa do Brasil de 2013. Mas Renato Abreu não viu a final dessa campanha vitoriosa, porque saiu antes. Na verdade, foi mandado embora pelo Flamengo. Entre um jogador e o Flamengo, eu sempre vou do lado de meu clube. Às vezes, eu acho que sou muito fã de um jogador do Flamengo, mas quando ele sai do clube, eu não ligo, fico frio, tanto faz, acabou, obrigado e que vem o próximo. Flamengo sempre é o mais importante. Mas acho que no caso de Renato Abreu, a diretoria errou e o tratou de uma forma deselegante. Algumas semanas antes de ter seu contrato rescindido pela diretoria, Renato Abreu falava isso para GloboEsporte: “Não me vejo em outro clube porque criei uma identificação muito grande, muito forte. Não sei nem como falar. Tenho um dia a dia no clube, olho as categorias de base, os funcionários, procuro falar uma coisa ou outra. Nunca me vi fora do Flamengo. Claro que não sabemos do futuro, mas não penso em sair do Flamengo. Só se me tirarem. O laço é forte. Minhas filhas eu nem preciso fazer força para falar que torcem. Quero viver aqui muitos e muitos anos ainda. Não sei quanto tempo ainda vou jogar. Talvez dois, três anos…”

    Infelizmente, o futebol é assim, às vezes cruel. Depois, Renato Abreu, que encerrou a carreira alguns meses depois no time da infância, Santos, entrou em justiça contra o Flamengo, faz também parte do futebol profissional. O presidente da época, Eduardo Bandeira de Mello, falou na época: “O afastamento dele foi uma decisão do departamento de futebol, foi uma decisão técnica. Em que se entendeu que não seria mais interessante contar com ele no elenco. Tenho o maior respeito pelo Renato Abreu. Eu considero que, talvez, ele seja o melhor cobrador de faltas do Brasil. Ele tem uma história no Flamengo que deve ser respeitada. Eu tenho certeza que ele não está sendo desrespeitado pela diretoria do Flamengo”. No final, as duas partes acertaram as contas em 2015. Ficam desse jeito os títulos, duas vezes a Copa do Brasil e duas vezes o campeonato carioca, fica o Urubu-Rei, ficam os números: 271 jogos e 73 gols, o último, de calcanhar contra o Athletico Paranaense. Eu conheço o número de 73 gols de coração e cabeça porque durante muito tempo, Renato Abreu foi o maior artilheiro do Flamengo do século XXI. Por isso e por muitas outras coisas, Renato Abreu é um dos maiores ídolos da história do Flamengo.

  • Jogos eternos #72: Flamengo 4×0 Burnley 1957

    Jogos eternos #72: Flamengo 4×0 Burnley 1957

    Hoje, a Seleção brasileira joga na Espanha, em Barcelona. É a oportunidade para falar de um jogo do Flamengo em Barcelona, e não qualquer jogo, porque foi um jogo durante a inauguração em 1957 do Camp Nou, ainda hoje o maior estádio da Europa, com uma capacidade para quase 100.000 pessoas.

    Flamengo não participou do jogo da inauguração, que foi entre Barcelona e Légia Varsovia, com uma vitória 4×2 de Barcelona e um gol de Evaristo, antigo ídolo do Flamengo. E foi justamente por causa das boas relações entre Barcelona e Flamengo, Evaristo tinha saído do Flamengo alguns meses antes para o Barcelona, que o clube rubro-negro foi convidado para um jogo amistoso, um dia depois da inauguração do Camp Nou. O Brasil ainda não era campeão do mundo, mas seu futebol já era muito respeitado, com um futebol alegre e ofensivo, cheio de malabarismo e de técnica. E Flamengo também era muito respeitado, por ter ganhado o tricampeonato carioca entre 1953 e 1955. Um gigante, tanto que Barcelona pagou Flamengo 8 mil dólares para vir na Espanha.

    O adversário do Flamengo era um grande time, Burnley, um dos 12 fundadores da Liga Inglesa em 1888. Os ingleses, por ser os inventores das regras do futebol, eram os mais respeitados no futebol. E Burnley ganhou a Copa da Inglaterra em 1914 e o campeonato inglês em 1921. Escreve o Barcelona no seu site oficial em inglês: “Burnley, com uma impressionante time jovem, liderada pelo provavelmente maior jogador a vestir a camisa vinho tinto de todos os tempos, o norte-irlandês Jimmy McIlroy, estava disputando a supremacia da Inglaterra com Manchester United na época”. Aluns meses antes, já na Espanha, Burnley tinha goleado o campeão espanhol de 1956, o Athletic Club, com um 5×1 e três gols de McIlroy.

    Por sua vez, Flamengo estava de reformulação no time. O técnico tricampeão carioca 1953-1955, o paraguaio Fleitas Solich, ainda estava lá, mas além da saída de Evaristo, Flamengo perdeu outros dois atacantes, Paulinho no Palmeiras e Índio no Corinthians. Mas Fleitas Solich não era chamado de Feiticeiro à toa, promoveu no time vários jovens, como Joubert e Milton na defesa e Moacir e Henrique no ataque. Dida, já ídolo do Flamengo com 3 gols na decisão do campeonato carioca 1955 contra o America, ganhava a plena titularidade. Para ir na Espanha, Flamengo conseguiu antecipar um jogo do campeonato carioca, vencido 4×1 contra o Bangu de Zizinho, e embarcou no Galeão com um voo de Air France, sem o capitão Dequinha, lesionado e substituído pelo jovem Milton, e sem o ídolo Joel, doente da gripe asiática e substituído pelo também jovem Luís Carlos. O Mengo embarcou também com os locutores Rui Porto e Jorge de Souza, que iam retransmitir o jogo para o Brasil.

    Os jogadores do Flamengo desfilaram no Camp Nou com a bandeira do Brasil e um dia depois da vitória do Barcelona para a inauguração do estádio, Flamengo entrou em campo no Camp Nou, na época realmente novo. O feiticeiro Fleitas Solich optou por um 4-2-4 ainda pouco visto no futebol, mas que ia marcar a Seleção brasileira campeã do mundo um ano depois. Fleitas Solich escalou Flamengo assim: Ari; Joubert, Pavão, Jadir, Jordan; Milton, Moacir; Luís Carlos, Zagallo, Dida, Henrique. No lado de Burnley, a maior estrela era Jimmy McIllroy, também líder da Irlanda da Norte, que tinha realizado uma sensação, eliminando a Itália e o Portugal no início do ano para se classificar para a Copa do Mundo 1958.

    O jogo, apitado pelo espanhol Gómez Contreras, começou equilibrado, mas Flamengo pouco a pouco mostrou a força e a magia do futebol brasileiro. Na metade do primeiro tempo, num escanteio curto, Luís Carlos abriu para Zagallo, que cruzou perfeitamente na cabeça de Dida para fazer o primeiro gol do Flamengo. Três minutos depois, o contrário. Moacir, que era tão bom que quase tirou Didi do time titular da Seleção de 1958, driblou um jogador e deixou para Dida, que avançou um pouco e abriu na esquerda para o chute poderoso e cruzado de Zagallo, que estufou as redes. No intervalo, Flamengo 2×0 e o ídolo Dida aplaudido a cada jogada.

    No segundo tempo, Burnley tentou reagir, mas numa jogada boba, Winton não percebeu que seu goleiro estava avançado e fez o gol contra tentando dar um passe em recuo. Flamengo fez um quarto gol, de Luís Carlos após jogada de Moacir, mas o juiz o anulou por uma suposta mão de Luís Carlos. O quarto gol do Flamengo finalmente chegou a 15 minutos do final do jogo, um golaço de Henrique, que driblou vários defensores, goleiro incluído, antes de decretar o placar final: Flamengo 4×0 Burnley. Infelizmente, não tem registro desse gol, apenas da imprensa espanhola e do Mundo Deportivo, que escreveu no dia seguinte: “O time do Flamengo se move com facilidade pelo campo, e com um sentido tático que nos impressiona […] A vitória brasileira foi mais uma prova de que os ingleses já não são mais os donos do belo jogo”. Parece exagero, mas talvez o Brasil começou a ganhar sua primeira Copa do Mundo ali, no Camp Nou, com essa atuação magistral do Flamengo sobre os poderosos mas derrotados ingleses.

    Flamengo voltaria duas vezes ao Camp Nou com mais dois jogos eternos, uma vitória 2×0 em 1962, com dois gols do ídolo Dida, e uma derrota 4×5 em 1968 na final da terceira edição do troféu Joan Gamper. Flamengo em Barcelona é sempre um show à parte.

  • Jogos eternos #71: Flamengo 7×1 Rio Negro 1983

    Jogos eternos #71: Flamengo 7×1 Rio Negro 1983

    Com a pausa internacional, eu vou de um jogo contra um time que não deveria jogar no Brasileirão antes de um bom momento, Rio Negro, time de Manaus, que até foi rebaixado do campeonato amazonense. Mas faz agora 40 anos que conquistamos o Brasileirão 1983, com um time histórico, e vale a pena falar sobre um jogo da conquista.

    Flamengo começou o Brasileirão de 1983 com fechou: com vitória sobre Santos no Maracanã. Depois, empatou contra Moto Club e Rio Negro, venceu Paysandu e Moto Club. Precisava da vitória contra Rio Negro no Maracanã e seus 25.181 torcedores. Uma afluência pequena por causa do Carnaval no mesmo fim de semana. Mas Flamengo deu outro carnaval.

    No 20 de fevereiro de 1983, o técnico Paulo César Carpegiani escalou Flamengo assim: Raul Plassmann; Cocada, Leandro, Marinho, Júnior; Andrade, Adílio, Zico; Júlio César Barbosa, Robertinho, Baltazar. Um time histórico, mas perto do desfecho, com a venda de Zico alguns meses depois.

    Curiosidade do jogo é que Flamengo tomou o primeiro gol da partida, uma jogada bem executada e concluída pelo Aluísio Guerreiro. Mas o gol acordou um gigante, que empatou no final do primeiro tempo, com um cruzamento alto de Robertinho e uma cabeçada de Adílio. A geral, único setor cheio do Maracanã, estava feliz, mas ia ver ainda muito mais gols. Ainda no primeiro tempo, Flamengo virou, com uma jogada digna do Flamengo de 1978-1983, toques de efeito, passes curtos e precisos, finalização certa. Andrade com um passe na frente para Júlio César, de trivela para o domínio de joelho de Baltazar, e sem deixar a bola cair, de novo de trivela para Robertinho, chegando em velocidade, chutando forte, virando o jogo.

    E Flamengo fez o terceiro em apenas 4 minutos, Zico na velocidade e na direção do gol, de trivela para Baltazar, que dominou e girou, tentando achar de novo Zico na profundidade. Goleiro demorou muito a sair e quem aproveitou foi Leandro, para fazer o terceiro do Flamengo. A geral bem feliz, só precisava esperar 15 minutos para ver mais gols. Quinze minutos ou um pouco mais, o quarto gol só chegou na segunda metade do segundo tempo. Baltazar para Zico, que recebeu de costas, mas já no domínio estava na frente do gol. Um domínio de um autentico craque, que precisa ser visto mais de uma vez para ser plenamente entendido, plenamente avaliado. Na continuidade da jogada, um carinho para fazer o quarto gol do Flamengo de bico. Numa goleada assim, não podia faltar o gol de Zico.

    E o quinto gol chegou cinco minutos depois, com bola longa de Andrade, falha da zaga do Rio Negro, passe atrás de Júnior, gol de Baltazar. O Baltazar não conseguiu substituir plenamente o ídolo Nunes, mas ele fez jogos muito bons com o Manto Sagrado. Final do jogo pertence ao jogador menos conhecido do time, o lateral-direito Cocada, que fez apenas 9 jogos com Flamengo. Irmão do ídolo são-paulino Müller, Cocada aproveitou de um chute de Baltazar mal defendido pelo goleiro para fazer de cabeça seu primeiro gol no Flamengo. E no final do jogo, uma dupla tabelinha entre Zico e Elder, um drible de Zico e um passe atrás. Cocada chegou firme, chutou forte, fez o doblete.

    No final, uma goleada 7×1, a maior da campanha vitoriosa do Brasileirão de 1983, e mais um carnaval no Rio de Janeiro.

  • Jogos eternos #70: Flamengo 5×0 Grêmio 2019

    Jogos eternos #70: Flamengo 5×0 Grêmio 2019

    Um jogo eterno e uma das minhas maiores emoções como torcedor do Flamengo. Acho que todo mundo relembra onde era quando assistiu a esse jogo. Porque esse jogo tem uma coisa de surreal. Todo mundo esperava uma classificação, mas ninguém esperava de tal maneira.

    O ano de 2019 é histórico e já no decorrer da temporada, já antes do Milagre de Lima, se sentia que esse ano poderia ser histórico. O Flamengo de Jorge Jesus conseguiu fazer duas coisas muito difíceis de combinar: ganhar e encantar. Antes do jogo contra Grêmio, Flamengo vinha de uma sequência de 17 jogos sem perder, o último jogo uma vitória no Fla-Flu. A última derrota era um jogo contra Bahia, quatro dias depois de uma classificação difícil, emocionante e histórica na Libertadores contra Emelec.

    Depois, ninguém resistiu ao Flamengo. Não o Internacional na Copa Libertadores, não os rivais históricos do Flamengo, no Rio, como Vasco, que tomou um 4×1 no Mané Garrincha, ou de fora do Rio, como Palmeiras, campeão brasileiro mas derrotado 3×0, ou o Atlético Mineiro, que perdeu 3×1 no Maracanã. Um futebol alegre e ofensivo, um Maracanã lotado, e um entrosamento entre os jogadores que poucas vezes apareceu num time de futebol, no Brasil ou no mundo inteiro. O Flamengo de Jorge Jesus ganhava, encantava, fazia gols.

    Mas mesmo assim, ninguém esperava um jogo assim contra Grêmio. Na ida, o empate foi até injusto, Flamengo merecia ganhar, mas empatou, e deixava as possibilidades abertas na volta. No Maracanã, Jorge Jesus escalou Flamengo assim: Diego Alves; Rafinha, Rodrigo Caio, Pablo Marí, Filipe Luís; Willian Arão, Gerson, Éverton Ribeiro, Arrascaeta; Bruno Henrique, Gabigol. Uma escalação perfeita, sem nenhum desfalque. Um time histórico, um time que talvez só perde pelo Flamengo de 1981 na história do clube. Do outro lado, o Grêmio com Everton Cebolinha no ataque e uma zaga fortíssima com Kannemann e Pedro Geromel. E no banco, um ídolo dos dois clubes, Renato Gaúcho, campeão da Libertadores dois anos antes com Grêmio. Esse Grêmio era muito perigoso e muito respeitado na América do Sul.

    Todo mundo relembra onde estava nesse 23 de outubro de 2019 porque o jogo foi além das possibilidades. Eu não posso esquecer onde estava nesse dia, até já falei aqui, quando escrevi sobre a criação do consulado Fla Paris. Foi meu primeiro jogo com a Fla Paris, no meio da semana, meio da noite. Fui com meu amigo Piriquito e encontrei pela primeira vez Cidel, Waldez e Felipe, os outros fundadores da Fla Paris. A retransmissão do jogo foi ruim, mas o encontro foi ótimo. O jogo já era especial só por causa disso, iria ser ainda mais especial com bola rolando.

    Jogo começou equilibrado e Grêmio teve primeiro lance de perigo, com Everton Cebolinha driblando na grande área e Maicon parando no Diego Alves. Flamengo reagiu com cabeçada de Bruno Henrique, perto da trave de um antigo ninho do Urubu, Paulo Victor. Depois, numa disputa de bola entre Everton e Willian Arão, Everton tomou o cartão amarelo e jogo quase partiu para briga no meio de campo, com quase todos os jogadores envolvidos. Jogo tenso, jogo equilibrado. Nos minutos seguintes, Éverton Ribeiro deixou em profundidade para Arrascaeta, que chutou, ou cruzou, na direção do gol. Paulo Vitor defendeu, Gabigol tentou uma bicicleta, tocou a bola mas não marcou. Em seguida, num passe de Gerson, Gabigol chutou, Paulo Vitor defendeu de novo. Ainda era 0x0, mas jogo não estava equilibrado mais.

    No minuto 42, no campo do Flamengo, Everton Ribeiro deu o pique para recuperar a bola, para Gerson, para Bruno Henrique. Ainda no campo do Flamengo, Bruno Henrique deu o pique, passou entre vários defensores e achou na profundidade Gabigol. De pé direito, Gabigol chutou, Paulo Victor defendeu de novo, mas Bruno Henrique estava aqui para empurrar a bola nas redes e abrir o placar. No intervalo, 1×0 para Flamengo, placar magro, mas já muita bola e muito futebol do Flamengo.

    Flamengo começou o segundo tempo com 6 jogadores na linha central e os 4 defensores um pouco atrás na mesma linha. Esse Flamengo era ofensivo, queria ir no ataque, para o desespero de Grêmio e de outros times, sempre queria fazer mais gols. Por isso, além dos títulos, o Flamengo de 2019 foi tão especial. Com apenas 20 segundos de jogo, com raça, Bruno Henrique ganhou uma bola dividida no campo de Grêmio e deixou para Éverton Ribeiro, que não fez o segundo gol de pouco. Bola foi no escanteio, e no escanteio, Gabigol fez um de seus gols mais bonito com o Manto Sagrado, com um gol de voleio muito difícil de conseguir. Até foi achar na arquibancada uma placa “Hoje tem gol do Gabigol”. Esse Flamengo era show. Tinha gol de Gabigol, e tinha ainda mais.

    No terceiro minuto do segundo tempo, quando Galvão Bueno falava que Grêmio era imortal, Flamengo quase fez o terceiro, com chute de Bruno Henrique em cima do travessão. No banco, Renato Gaúcho parecia desesperado, sem poder de reação. Seu time também não sabia reagir. Numa chegada na esquerda de Felipe Luís, Bruno Henrique recebeu a bola, evitou o carrinho de Matheus Henrique, tomou o carrinho de Pedro Geromel. O Bruno Henrique tomou o carinho, a bola já estava longe, fora do Geromel, fora do Grêmio, e o juiz não hesitou: pênalti para Flamengo. Sem hesitar também, Gabigol fez o doblete, fez o terceiro do Flamengo. Teve dança com o quarteto mágico, Everton Ribeiro, Bruno Henrique, Arrascaeta e Gabigol, já era muito para Grêmio, mas tinha ainda mais, Flamengo estava além do possível.

    Com uma hora de jogo, Gabigol recebeu a bola na esquerda e abriu para Bruno Henrique fazer o quarto gol. Era um momento surreal, até de ter pena para Grêmio, uma avalanche de gols que relembrava, agora no bom lado, o 7×1. Mas o juiz deu um pouco de normalidade ao jogo e anulou o gol por impedimento. Tanto faz, cinco minutos depois, num escanteio de Arrascaeta, o zagueiro Pablo Marí fazia o quarto gol, agora valido. E cinco minutos depois, também numa bola parada da esquerda, agora de Éverton Ribeiro, teve outro gol do outro zagueiro, Rodrigo Caio. Gosto muito dessa sequência de dois gols dos zagueiros para uma das maiores duplas de zaga que vi no Flamengo, talvez só perdendo de Fábio Luciano – Ronaldo Angelim.

    Mais impressionante ainda, era o placar: Flamengo 5×0 Grêmio. Antes do jogo, tinha um certo favoritismo do Flamengo, mas nada de evidente. Depois, só tinha um Grêmio morto. E Jorge Jesus estava sem piedade, quando Pablo Marí e Gerson começaram a trocar passes laterais no campo de Flamengo, ele entrou numa fúria e pediu o time atacar. Por isso seu Flamengo foi tão vencedor, tão memorável. E Jorge Jesus ainda ofereceu um nome a esse jogo eterno, “o Cincum”, na verdade ele falou isso dez dias antes do jogo, para reclamar da violência dos outros times contra um Flamengo imparável. Não importa o motivo, gosto muito de jogos que têm nomes, e acho “o Cincum” um dos mais legais.

    Com esse nome, “o Cincum” era ainda mais eterno. Flamengo foi muito bonito em 2019, mas mais bonito do que esse jogo durante a temporada, só a própria final da Liberta e o Milagre de Lima. E “o Cincum” é o jogo que representa mais o Flamengo de 2019, de um futebol alegre e ofensivo, com no banco um técnico aborrecido e vitorioso, um jogo que marcou eternamente todos os 69.981 presentes no Maracanã e todos os flamenguistas, no Rio, em Paris e em todos os cantos do mundo.

  • Times históricos #18: Flamengo 1987

    Times históricos #18: Flamengo 1987

    Talvez 1987 é o ano mais polêmico do futebol brasileiro, mais polêmico do Flamengo. Mas polêmica não tem, Flamengo é o campeão brasileiro de 1987. Mas antes do Brasileirão, teve muito jogos em 1987, a começar pelo fim do Brasileirão de 1986. Flamengo começou o ano com uma vitória 2×0 sobre Vitória, Sócrates fazendo nesse dia 2 de seus 5 gols com o Manto Sagrado. Flamengo foi eliminado pelo Atlético Mineiro nas oitavas de final e depois de alguns dias de férias, começou a nova temporada com amistoso contra outro time mineiro, Uberlândia, com um 2×2 e onde a grande novidade era o Renato Gaúcho, vindo do Grêmio onde era ídolo.

    Flamengo ainda fez alguns amistosos e estreou no campeonato carioca com vitória 1×0 sobre Bangu, gol de Renato Gaúcho. Mas Flamengo decepcionou na Taça Guanabara, o primeiro turno do campeonato carioca, o técnico Sebastião Lazaroni foi mandado embora, o ídolo Carlinhos foi nomeado interino, mas Flamengo ficou no 0x0 nos três clássicos e ainda empatou ou perdeu contra times pequenos para um quinto lugar, até atrás de Goytacaz. Na Taça Rio, o segundo turno, Flamengo estreou com vitória 3×0 sobre Mesquita com gols de jogadores de quem a primeira letra do nome era um A: Aílton, Aldair, Adílio, e a estreia do novo técnico, também com nome com A: Antônio Lopes. Flamengo continuou a ganhar, vencendo o primeiro clássico do ano, contra Botafogo, e depois partiu numa excursão na África, conquistando o torneio Air Gabon, no Gabão. Jogou também na França, em Saint-Ouen, na periferia de Paris, e na Argélia. De volta na Taça Rio, venceu Goytacaz e empatou contra Campo Grande antes do Fla-Flu.

    E o Fla-Flu foi especial. No 21 de junho de 1987, exatamente um ano depois do pênalti perdido de Zico na eliminação do Brasil contra a França na Copa do Mundo, Zico estava de volta num gramado de futebol. Foi para Zico um ano muito difícil, até no plano pessoal, com a perda do pai, seu Antunes. Para Zico, foram muitas lágrimas, de suor, de dor e de dúvidas, até de se poderia caminhar de novo. Explica Zico sobre o processo de recuperação no livro Zico conta sua história: “Finalmente, o Ralf Ferreira, que acompanhou minha recuperação física, me liberou para dar uma corrida em volta do campo. Lembro tudo daquele dia e da dor que eu senti. Ele ia correndo do meu lado, e eu chorava, dizendo que estava tudo acabado, que nunca mais conseguiria retornar ao futebol. Não sei como consegui terminar aquela volta. Retornei ao vestiário me desviando de todo mundo que queria me cercar, me perguntar como é que tinham ido as coisas… Para mim, fora péssimo! Era o fim!… Não queria saber de mais nada”. Mas Ralf Ferreira explicou para Zico que fazia parte do processo, e Zico voltou no dia seguinte, ainda com dores, ainda com lágrimas, mas fez duas voltas. E Zico voltou num campo de futebol, para um Fla-Flu. Flamengo ganhou 1×0 e olha a ironia, Zico fez o gol de pênalti. “O futebol precisava dele nos campos para devolver a alegria aos torcedores” falou no dia seguinte Paulo Vítor, antigo goleiro de Fluminense.

    Durante a pausa para a Copa América 1987, Flamengo fez amistosos em vários estados do Brasil, Bahia, Pernambuco, Alagoas, Distrito Federal, Piauí, Maranhão, Pará. Porque Flamengo é do Brasil, Flamengo é uma Nação. De volta no campeonato carioca com o terceiro turno, a Taça Euzébio de Andrade, Flamengo estreou com mais um 0x0 num clássico, contra Vasco, antes de empatar contra Bangu e vencer Fluminense, classificando-se para o triangular final. Antes disso, mais uma excursão, tempo de ganhar o torneio internacional de Angola, com vitórias sobre a seleção de Angola e o time português de Boavista. De volta no Brasil, Flamengo venceu Bangu no placar mínimo mas perdeu o bicampeonato contra Vasco, com gol do antigo ídolo flamenguista Tita. Depois, uma nova excursão, no México, dessa vez com duas derrotas contra Cruz Azul e América no torneio Azteca. Jogou ainda amistosos no México e na Bahia e depois era a vez de olhar em direção do Brasileirão.

    Na verdade, fazia tempo, muito tempo, que se falava do Brasileirão de 1987. E ainda vai se falar por muito tempo. Para a crônica, usei principalmente dois livros, No campo e na moral, Flamengo campeão brasileiro de 1987 de Gustavo Roman para o lado de futebol e 1987, a história definitiva de Pablo Duarte Cardoso para a parte burocrática e jurídica. Confesso que ainda não li o livro 1987 – De fato, direito e cabeça, de André Gallindo e Cassio Zirpoli, que defendem que o título é do Sport. Seria interessante ver os argumentos mas duvido mudar de opinião sobre o Brasileirão 1987. O Brasileirão de 1987 é do Flamengo. O fim da ditadura, onde se falava: “onde a Arena vai mal, um time do Nacional. Onde vai bem, outro também” não ajudou a simplificar o Brasileirão organizado pela CBF. A bagunça vem de longe, já em 1985, com um campeonato com várias taças, grupos, divisões, Placar escreve que a CBF agia como “como aqueles dramaturgos que montam uma situação instigante e conflituosa no primeiro ato e se perdem totalmente antes que a trama chegue ao desfecho”. Em 1986, com a eleição de Octávio Pinto Guimarães com presidente da CBF e o fracasso da Seleção na Copa do México, foi ainda pior.

    O Brasileirão de 1986 foi uma bagunça com vários clubes, como Vasco, Joinville e a Portuguesa recorrendo a vários tribunais, como o da CBF, do CND, o STJD e até a Justiça comum para impedir um rebaixamento ou fazer cair o outro clube, tudo isso por causa de regulamentos complicadíssimos da CBF. O Brasileirão de 1986 teve 80 times, Taças de Ouro, Prata e Bronze, duas fases antes da fase de mata-mata e rebaixados em cada uma das primeiras fases, dentro eles, vale a pena destacar, o Sport. Uma bagunça total. O Conselho Nacional dos Desportos, última instância do futebol brasileiro, publicou resoluções e “desde a publicação das resoluções, a 20 de outubro de 1986, já não era mais possível para a CBF, legitimamente, pretender impor fórmulas, regulamentos e participantes do Campeonato Nacional sem uma consulta formal aos clubes, reunidos em conselho arbitral”. Teve virada de mesa e quando a CBF anunciou os clubes da Série A, os clubes esquecidos foram de novo na Justiça. A Seleção fracassou de novo na Copa América de 1987 e a CBF estava sem dinheiro, depois de gastar muito dinheiro para convidados na Copa do Mundo de 1986, promessas para a eleição de Octávio Pinto Guimarães. No 8 de julho de 1987, Octávio Pinto Guimarães anunciou que “a CBF não tem como fazer o Campeonato Nacional”, acrescentando três dias depois “que o Campeonato Brasileiro deste ano seja disputado apenas pelos clubes que se considerem autossuficientes para participar da competição sem ajuda financeira”. Daí a CBF não organizou o Brasileirão de 1987 e Sport não pode ser o legítimo campeão.

    Teve a fundação do Clube dos Treze com o presidente de São Paulo, Carlos Miguel Aidar, e do Flamengo, Márcio Braga, reunindo os treze clubes mais potentes do Brasil. Teve oposição da CBF, dos outros clubes, teve batalhas na Justiça. Quem considera Sport o campeão dificilmente pode reclamar da corrupção e da desorganização histórica da CBF, que fez tudo para impedir a organização e cooperação dos clubes brasileiros. O Clube dos Treze conseguiu patrocinadores como a Globo, Coca-Cola, Varig e os hotéis Othon para fazer o que a CBF não conseguia, organizar um campeonato estável financeiramente. Os treze clubes até abriram a mão da Loteria Esportiva para a CBF financiar os outros módulos, ou seja, as outras divisões. “As federações do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia apresentaram – e a CBF aprovou – uma nova e praticamente definitiva proposta para a realização do Campeonato Brasileiro, que atenderia às reivindicações do Clube dos Treze e da Confederação. Segundo a fórmula, o futebol brasileiro passará a ter quatro módulos – Verde, Amarelo, Azul e Branco – e, ao final da competição, quatro campeões distintos” escreveu o Jornal do Brasil no 4 de setembro de 1987. O Clube dos Treze elaborou o calendário de um dos maiores campeonatos brasileiros da história, como escreveu o jornalista Juca Kfouri: “Foi o grande campeonato que eu cobri na minha vida. Tinha ali um frescor novo: o frescor da democracia”.

    Flamengo parecia numa transição, com a aposentadoria de Sócrates, a venda de Mozer no Benfica e as lesões de Leandro e Zico. “Por mais brioso e disciplinado que seja, Zico voltará ao time do Flamengo mais como símbolo do que como jogador. Ninguém nega que ele sabe tudo de bola. Depois de certo tempo e de muitas contusões, porém, o saber, simplesmente, deixa de poder” escreveu Cláudio Mello e Souza. Além de Renato Gaúcho, que ainda deixava a desejar no campeonato carioca, e da contratação de Edinho, Flamengo tinha alguns jovens jogadores, como Jorginho, Aldair, Zinho e Bebeto. Flamengo estreou com uma derrota contra São Paulo no Maracanã, ao mesmo tempo que a CBF tentou impor um outro calendário. Mas na época, todo mundo, a não ser os clubes das outras divisões, reconhecia o amadorismo da CBF e a falta de legitimidade para organizar o Brasileirão de 1987. No Flamengo, o técnico Antônio Lopes saiu do time e Carlinhos voltou, com vitória contra Vasco, com gol de Zico no final de jogo. Depois, Zico se machucou de novo: “Não estava mais aguentando esse ‘volto e me machuco’. Se não fosse a minha família, o departamento médico do Flamengo e a confiança que eu tinha naquele grupo, eu talvez tivesse encerrado a carreira naquele momento” explicou Zico no livro No campo e na moral, Flamengo campeão brasileiro de 1987 de Gustavo Roman. Com também lesões de Edinho, Leandro e Bebeto, Flamengo foi mal no primeiro turno, com apenas duas vitórias em 8 jogos. Mas Carlinhos tinha pedido a direção na sua chegada de reformular o time na primeira fase, por exemplo fez subir o jovem Leonardo no time principal, e de ser julgado apenas no segundo turno.

    Flamengo foi mal na primeira fase, mais foi um grande campeonato, com grandes times só. “O bom daquele campeonato é que você sabia que podia perder um jogo e ter recuperação, porque eram todos jogos muito equilibrados, só grandes time” explicou Zico. E para Flamengo, teve um jogo decisivo, uma derrota contra o Atlético Mineiro de Telê Santana, sem Zico, com Renato Gaúcho muito criticado pelo individualismo. Teve reunião na Gávea, Carlinhos pedindo para os outros jogadores o que eles achavam de Renato Gaúcho. Mas teve liderança de Zico. “Eu mandei parar: ‘Carlinhos, não vai fazer enquete aqui do Renato. O Renato tem as suas características e a gente tem que saber usar isso, usá-lo da melhor maneira possível’. Acabei com a reunião. Vambora pra dentro do campo, trabalhar” relembra no livro 1987, a história definitiva Zico, que ainda falou para o atacante: “Olha, Renato, se você sentir confiança, mesmo tendo oito na sua frente, tenta passar pelos oito”. Zico, craque e líder, estava de volta para o jogo seguinte, também contra um time poderoso, Palmeiras, na luta com Flamengo para a classificação na semifinal. Relembra agora Nielson, o treinador de goleiros: “O Carlinhos queria que o Zico, que voltaria ao time contra o Palmeiras, não precisasse se desgastar, ajudando na marcação. Por isso, sugeriu que o Renato passasse a voltar, para compor o meio e marcar o lateral adversário. Nesse momento, o galinho, com toda a visão e liderança que ele possui, pediu a palavra e disse que estava disposto a se sacrificar na marcação, desde que o Renato ficasse livre. Segundo a camisa 10, o ponteiro era a válvula de escape do time. E era quem deveria fazer a diferença para a equipe. Mais uma vez, o Zico provou o seu valor”. Zico provou também seu valor no jogo, com grande partida na vitória 2×0 contra Palmeiras, onde Renato Gaúcho abriu o placar. Flamengo estava de volta no campeonato.

    No último jogo, Flamengo precisava vencer Santa Cruz para ver as semifinais. Santa Cruz era o penúltimo do grupo que tinha só grandes times: Atlético Mineiro, Palmeiras, Botafogo, Grêmio, Bahia e Corinthians. Um nível absurdo de competitividade. E Santa Cruz não trazia boas lembranças para Flamengo, já que em 1975 Flamengo precisava vencer Santa Cruz para se classificar na semifinal e acabou sendo eliminado dentro do Maracanã. O jogo contra Santa Cruz de 1987 merece ser eternizado aqui, é um dos maiores jogos de Zico com o Manto Sagrado, apenas isso. Zico fez de tudo no jogo, principalmente no segundo tempo, onde fez três gols, o último de falta, uma falta que considero no top 3 de Zico, junto com a contra Cobreloa na final da Libertadores e a do Fla-Flu de 1986. A curva da bola é puramente sensacional, um golaço impressionante, e também um drama para Zico, que não podia pular desde a operação e teve de mudar a comemoração histórica dos gols. Mas não foi possível nesse golaço contra Santa Cruz. Explica Zico no livro 6x Mengão de Paschoal Ambrósio Filho: “Estava com os meniscos arrebentados. Tinha que operar, mas aí não jogaria. Os médicos então deram uns pontos no joelho. Não podia saltar e me apoiar na perna esquerda na queda. Mas quando fiz aquele gol de falta contra o Santos Cruz, atravessei o campo para comemorar com o Zé Carlos, que reclamava que nunca participava das comemorações dos gols. Prometi a ele que se fizesse um gol ele receberia o primeiro abraço. Fiz isso. Dei um pulo em cima dele, porém, quando caí, sem querer, me apoiei com a perna esquerda. Os pontos arrebentaram na hora. Nos jogos seguintes, contra o Atlético, meu joelho inchava muito. Ficava o tempo todo com uma bolsa de gelo fazendo tratamento”.

    Na semifinal, de novo o Atlético Mineiro de Telê Santana, que tinha cortado Renato Gaúcho da Copa de 1986 após uma escapada da concentração da Seleção. No jogo de ida, Bebeto fez o único gol da partida no Maracanã e de seus 118.162 espectadores, a Copa União foi muito bem também no aspecto de afluência nos estádios. Na volta, mais um jogo eterno, com Zico decisivo no primeiro tempo e um golaço de Renato Gaúcho para fazer o gol do 3×2 e dar a vitória ao Flamengo. “Desafia-se o torcedor do Sport a referir um, um só momento assim de sua campanha de 1987” escreveu Pablo Duarte Cardoso no livro 1987, a história definitiva. Claro, Renato Gaúcho relembra bem do gol: “Numa dividida entre o Aílton e um jogador deles, a bola caiu no meu pé, no círculo do meio de campo, e eu arranquei. Pensei: é agora ou nunca. Fui driblando, driblei o goleiro e praticamente entrei com bola e tudo. Este é um gol, para mim, que está entre os três gols mais importantes da minha carreira”. Na grande e única final, Renato Gaúcho foi de novo vaiado pelo estádio, agora o Beira-Rio por causa de sua história com Grêmio. E de novo foi decisivo, com um drible e um cruzamento para a cabeçada de Bebeto. O Inter empatou em seguida, mas empate era bom para Flamengo, como falou Zico, que de novo foi substituído no decorrer do jogo por causa das dores: “Nosso time era experiente demais. Sabia o que queria. Fomos pra Porto Alegre para marcar forte e aguentar a pressão do Inter. Só que nossa marcação foi tão eficiente que eles não conseguiram nos atacar. E nós só não saímos de lá com a vitória porque eles conseguiram empatar o jogo dois minutos depois de abrirmos o placar. De qualquer forma, o resultado foi fantástico para a gente. No Maracanã, não perderíamos o título de maneira alguma”. Flamengo podia ganhar o Tetra, no Maracanã, no 13 de dezembro de 1987, exatamente seis anos depois do título mundial.

    No 13 de dezembro de 1987, um dia de muita chuva, Flamengo entrou em campo para mais um título brasileiro. Precisa antes, anunciar a escalação toda de outro ídolo, Carlinhos, para esse jogo: Zé Carlos; Jorginho, Leandro, Edinho, Leonardo; Andrade, Aílton, Zinho, Zico; Bebeto, Renato Gaúcho. Todos, com a exceção de Aílton, que teria merecido uma chance, jogaram na Seleção brasileira. Alguns foram campeões em 1994 como Jorginho, Leonardo, Zinho e Bebeto, outros teriam merecido ser campeões em 1982, como Leandro, Zico e sim, também Andrade. Claro, o time de 1981 é histórico e é o maior da história do Flamengo. Mas gosto muito do time de 1987, talvez o melhor time de um Flamengo campeão brasileiro, com essa experiência de juventude e experiência, e um Zico mais líder que nunca, decisivo e craque como sempre. Fala sobre esse time o próprio Zico: “Nosso time era muito técnico. Talvez, um dos melhores da história do clube. Dominamos a partida e fizemos um jogo brilhante. Atuamos com a cabeça e o coração de um campeão. Foi sensacional. Mostramos que éramos time de chegada”.

    Com mais um jogo eterno em 1987, Flamengo foi campeão. E com um golaço, “um típico gol do Flamengo. Muito toque de bola e finalização precisa” para Galvão Bueno. Uma jogada coletiva, um passe de gênio em profundidade de Andrade, e uma finalização de Bebeto para vencer Taffarel e oferecer ao Fla o Tetra. Incrivelmente, Bebeto fez apenas dois gols na primeira fase, mas marcou em todos os jogos da semifinal e da final. Fala Bebeto no livro Grandes jogos do Maracanã de Roberto Assaf e Roger Garcia: “O jogo decisivo do Brasileirão de 1987 foi um dos mais difíceis de que participei, pois colocou frente a frente o futebol carioca, com sua habilidade e técnica, contra o futebol gaúcho de muita aplicação tática e marcação. Dessa forma, os jogadores do Flamengo não tinham muito tempo para organizar as jogadas como fazíamos nos jogos anteriores. Foi um jogo muito pegado. Porém, num dos raros momentos de descuido na marcação, fiz o gol. A partir daí, o Inter foi obrigado a mudar sua característica, isto é, jogar ofensivamente em busca do empate. Mas conseguimos comandar as ações até o final”.

    Antes do final, como em todos os jogos, Zico foi substituído, sob aplausos e cantos: “Ei, ei, ei, o Zico é nosso rei”. Adoro também, até principalmente, o título de 1987 por causa de Zico, uma história de superação, a volta em cima de um jogador e um ser humano que nunca deixou de ser campeão. Zico recebeu algumas homenagens, do Maracanã, com um torcedor especial, o alemão Franz Beckenbauer: “Fiquei encantado com os toques rápidos do time do Flamengo e, principalmente, com Zico, que mostrou sua genialidade em vários lances”. O técnico Carlinhos foi outro a falar de Zico: “Não posso destacar qualquer jogador na partida, mas não tenho como deixar de falar de Zico. Ele foi de uma importância fundamental para o Flamengo. Mas não apenas pelo nome que possui e que preocupa o adversário. O que destaco nele foi o espírito de união e a foca que transferiu aos mais jovens, fazendo com que estes entrassem em campo psicologicamente em condições de render tudo o que podiam”. Com a modéstia de sempre, Zico falou apenas isso depois do jogo: “Fiquei triste, lendo nos jornais que eu estava acabado, que deveria parar, deixar de enganar o Flamengo. Foi duro enfrentar esses ataques. Eu não me sentia incapaz de continuar jogando. Aprendi a lidar com a minha limitação atual e ser útil ao Flamengo”. Zico foi muito útil ao Flamengo, apesar de limitações sim, ainda era capaz de fazer. Já no dia seguinte do jogo, Zico foi operado de novo no joelho.

    No livro No campo e na moral, Flamengo campeão brasileiro de 1987 de Gustavo Roman, Zico fala mais sobre o Brasileirão de 1987: “Nos últimos jogos do campeonato, Flávio e Henagio se revezaram algumas vezes para me substituir. Na final, inclusive, quando deixei o campo para Flávio entrar estava sentindo muitas dores. Já sabia que teria que operar mais uma vez. E foi no vestiário, logo após o apito final que nos garantiu a taça com gol de Bebeto, que senti uma das maiores emoções da minha vida. Dava para sentir a explosão da torcida com a conquista, seguida por um coro de ‘Zico, Zico’ que ecoava dentro do meu coração. Retornei ao campo coroado para cobrar ao lado dos meus companheiros, mas parecia que o Maracanã inteiro estava me passando energia. Era o ponto final de uma jornada vitoriosa a ser dividida com quem jogou, com quem esteve no banco de reservas, com toda a equipe de apoio e com um décimo segundo jogador que sempre está presente nas grandes conquistas rubro-negras: a torcida”.

    Depois da vibração da torcida e do título no Maraca, foi muita politicagem, muitas polêmicas, mas Flamengo é Tetra. De novo Zico: “Todo vez que ouço alguém questionar aquela conquista, não sei se fico com vontade de rir ou de chorar. Só nós sabemos o que passamos para conquistar aquele campeonato. Jogamos contra os melhores. Derrotamos os melhores. E, se houvesse cruzamento, ganharíamos também. Daquela equipe, só o Aílton não vestiu a camisa da seleção brasileira. E olha que ele jogava muita bola. Nosso time tinha a mescla exata entre experiência, comigo, Leandro, Edinho, Andrade e juventude, com Leonardo, Zinho, Bebeto. E o Renato estava jogando demais. Merecemos aquela conquista. Não vou deixar ninguém desmerecer o que fizemos dentro das quatro linhas. Em 1987, nos sagramos tetracampeões brasileiros de futebol. Quem não conseguiu enxergar dessa maneira, está equivocado”. Basta ler o Jornal do Brasil no dia seguinte que deixou em manchete “Fla colore o futebol de vermelho e preto” e ainda escreveu: “A imediata comoção que tomou contra de todos no Maracanã tratou de impor o direito que a CBF insiste em desprezar. Como deixar de reconhecer o mérito de campeão brasileiro a um time que, mesmo com seus altos e baixos, se destacou entre os 16 melhores do nosso futebol? Como apagar a eufórica vibração? Como torná-la ilegal?”.

    E claro, não foi só o Jornal do Brasil, a imprensa brasileira inteira considerava Flamengo campeão: “Mengo é tetra” para o Jornal dos Sports, “Flamengo tetracampeão” para Globo, “Flamengo é tetracampeão” para O Estado de S. Paulo, “Quatro vezes Flamengo” para Placar. Até o Diário de Pernambuco, jornal de Recife escreveu: “O Flamengo, com todo o merecimento, sagrou-se o primeiro campeão da Copa União, denominado pelo Clube dos 13, correspondente ao Módulo Verde da Copa Brasil e Troféu João Havelange, ao vencer no segundo jogo decisivo o Internacional, por 1 a 0, com um gol de Bebeto, jogador que decidiu as partidas mais importantes. A torcida do Flamengo promoveu um grande carnaval no Maracanã, festejando o inédito título, que lhe valeu pelo tetracampeonato brasileiro”. A Copa União só foi um nome a mais para o Brasileirão, que já foi denominado de Taça de Prata, Campeonato Nacional de Clubes, Taça Ouro ou Copa Brasil.

    Ainda cito dois jornalistas, que não podem ser chamados de flamenguistas, a começar pelo Mauro Beting: “Todos estão errados. A CBF, que não teve a competência para realizar o campeonato brasileiro. O Clube dos 13, que veio com lideranças novas e ideias boas, mas com os velhos vícios da cartolagem antiga. Os dirigentes, que assinaram o acordo de não realizar o cruzamento, fosse qual fosse a final da Copa União e que, hoje, ao requisitar amarelo, que se aproveitou de toda essa confusão para tentar levar vantagem. Para resumir um fato que não tem resolução, na minha opinião, o Sport é o campeão de direito e, o Flamengo, o de fato. O rubro-negro era disparado o melhor time. Se tivesse havido o cruzamento, o clube da Gávea seria o vencedor, pois era mais time que o Inter e muito mais time que Sport e Guarani”. Outro grande nome da imprensa paulista, Juca Kfouri: “Em 1987, a CBF anunciou que não tinha dinheiro para organizar o campeonato brasileiro. Então, os 13 clubes de maior torcida no país resolveram fundar o Clube dos 13 e fazer o campeonato, ao qual se deu o nome de Copa União. A CBF aceitou […] Diante do sucesso do evento – que teve média de 21 mil torcedores e mais o equivalente a 20 mil pessoas por jogo em patrocínio, números europeus – os clubes que ficaram de fora pressionaram a CBF para que fosse realizado um campeonato paralelo, uma espécie de Segunda Divisão, e o SBT se interessou em transmiti-lo. Foi então, já com a Copa União em andamento, que a CBF impôs no regulamento do seu torneio que deveria haver um cruzamento entre o que chamou de Grupo Verde, Copa União, e o Grupo Amarelo, a Segunda Divisão. Os clubes da Copa União, por unanimidade, e muito antes da fase final, resolveram desconhecer a novidade da CBF. E o Brasil inteiro viu a final entre Flamengo e Internacional como a que decidia o título nacional. Daí para a frente, foi só politicagem. O campeão legítimo é o Flamengo, o legal virou Sport”.

    Depois de falar do Flamengo, brilhantemente campeão da Copa União, tem que falar do Grupo Amarelo, a segunda divisão. Não considero Sport campeão brasileiro, nem da segunda divisão. Até antes de brigar com o Flamengo, foi uma vergonha. Na semifinal do Módulo Amarelo, a segunda divisão, vale a pena repetir, Sport eliminou Bangu na intimidação, com invasão de campo e ameaça da polícia. Quem fala isso é o próprio presidente do Sport, Homero Lacerda, na Resenha do Leão: “No meio do campo, não sei se vocês se lembram […], jogaram uma pilha num jogador deles – aí a gente já estava ganhando a partida, de 2 a 0. Aí o juiz foi lá, pegou a pilha, chamou o coronel de novo. Disse: ‘Coronel, jogaram uma pilha num jogador. Se jogar outra, eu suspendo o jogo por falta de segurança’. Aí o coronel foi genial! O Sport deve isso ao coronel. O coronel disse: ‘Olhe – tirou o apito do bolso e disse –, olhe: eu tenho 300 homens trabalhando aqui. Se eu der um apito aqui, em dez minutos não tem mais nenhum aqui, o senhor resolve seu problema com a torcida’”.

    Na final, foi ainda mais vergonha. A final de volta, no novo na Ilha do Retiro, teve uma atuação escandalosa do juiz. “Eu nunca vi ninguém apanhar tanto como o João Paulo, e o juiz seguir o jogo”, explica o craque de Guarani, Evair. Até um jogador de Sport, Estevam Soares, confirma: “Eu dei um soco na boca do João Paulo: ele deu um tapa na minha frente e eu o mandei a nocaute”. Na prorrogação, Guarani fez um gol, mas o juiz anulou o gol por um “impedimento inexistente” até para o Diário de Pernambuco, jornal de Recife! O jogo acabou nos pênaltis, na última cobrança, Rogério perdeu para Sport e Guarani ganhou o título. Por um segundo. O juiz mandou repetir a cobrança, alegando que o goleiro de Guarani se moveu na linha. Guarani se retirou de campo, voltou 8 minutos depois, a disputa seguiu até um 11×11 e acabou aqui. Não tem erro, a disputa de penalidades parou num empate. Nunca existiu antes, e nunca mais vai aparecer de novo. Como se futebol era xadrez, os dois times entraram em acordo para empatar a final! No seu relatório, o juiz escreveu que “todos os atletas do Guarani e do Sport tiraram suas camisas e começará a festejarem juntos, inclusive com os seus dirigentes, uma suposta conquista” e depois de esperar o tempo regulamentar, o juiz acabou o jogo “por suspensa a cobrança das penalidades máximas pela ausência das duas equipes do campo de jogo”. Uma loucura, uma vergonha.

    O título do Sport do Módulo Amarelo só foi confirmado um mês depois, quando precisava um vencedor para o quadrangular final desejado pela CBF. Acho que Flamengo acertou a não jogar o quadrangular, que era ilegítimo. Até o Inter, que poderia ser campeão jogando esse quadrangular, não jogou. Mas teve falta de apoio do Clube dos 13, que perdeu a oportunidade de revolucionar o futebol brasileiro. E Flamengo errou no início a não brigar mais na Justiça o que era dele de direito. E depois era tarde demais, não era mais o momento de apresentar as provas. Sport é o campeão para a Justiça sim, mas às vezes a justiça é injusta. Acho que nem o título do Brasileirão pode ser divido, Flamengo é de fato e direito o campeão da Série A, Sport da Série B. Se tem que dividir um título, Sport tem que dividir o título da segunda divisão com Guarani, com quem empatou 11×11.

    Fazendo uma analogia, seria como se um dia a FIFA anuncia que não tem dinheiro para organizar a próxima Copa do Mundo. Aí, as oito federações já campeões do mundo fundam o G-8, acham patrocínios, abrem a mão da premiação da FIFA e convidam mais oito outros países para uma Copa do Mundo com apenas 16 times, todos grandes, 4 grupos de 4, mata-mata e basta, um campeão. Por exemplo, convidaram Países Baixos, Bélgica, Croácia, Portugal, Camarões, Marrocos, Estados Unidos, Coreia do Sul. Basta, o critério é deles, seja o peso dos times, seja a história, seja o retrospecto recente, a festa é deles, é a primeira Copa do Mundo do G-8. E a FIFA, livrada de redistribuir dinheiro para as grandes nações, faz uma outra Copa do Mundo, com poucas despesas financeiras. Seria justo a FIFA, ontem sem dinheiro, exigir hoje um quadrangular final entre os finalistas da Copa do G-8, vamos dizer Brasil e França, e os finalistas da Copa da FIFA, vamos dizer Senegal e Polônia, sem eles jogar antes contra nenhum time campeão do mundo? Seria brincadeira, como a CBF é brincadeira. Gosto dessa frase de João Luiz Silva no seu livro Flamengo – Uma história divina: “O Sport achar que é campeão brasileiro de 87 é a mesma coisa que o Arcebispo de Recife achar que é o Papa”.

    Gosto também do que escreveu Paschoal Ambrósio Filho no seu livro 6x Mengão: “Se vivo fosse, o tricolor Nelson Rodrigues certamente escreveria: ‘Só os idiotas da objetividade não aceitam o óbvio ululante’”. Os idiotas da objetividade e os idiotas do clubismo. Porque essa polêmica não é sobre a CBF, não é sobre o Sport, é sobre o sentimento de anti-Flamengo. Porque se Flamengo tem uma Nação junto com ele, tem também uma nação de contros, que, não importa o debate, não importa o time, vão torcer contra o Flamengo. De fatos e de argumentos não tem, só Flamengo não pode ser campeão. Cito para fechar Nosso Rei Zico: “Ninguém mentira essa conquista. Quem levou porrada fui eu, quem se sacrificou fazendo tratamento 24 horas para jogar fui eu. Tenho sangue e passaporte português. E se eu chegar em Portugal e contar que aqui no Brasil a CBF não considera esse título porque no campeonato de 1987 o campeão da Primeira Divisão tinha que disputar a condição de melhor do Brasil com o campeão da Segunda Divisão, vão dizer que é piada. E realmente é, não tem jeito. O Flamengo é hexa”. O Flamengo é tetra em 1987, hexa em 2009, octa em 2020 e assim em diante.

    Infelizmente, quando se fala de 1987, se fala muito da polêmica e não do título, não se fala do Flamengo, que teve um de seus melhores times da história. Um time histórico com jogos eternos, como contra Palmeiras, Santa Cruz, Atlético Mineiro e Internacional. Um time histórico com ídolos, como um Renato Gaúcho craque, um Bebeto decisivo no final, um Zico líder, craque e decisivo. E para acompanhar eles, um suporting cast digamos não cinco estrelas, mas quatro estrelas, porque alguns foram tetracampeões do mundo em 1994 e todos foram tetracampeões do Brasil em 1987. Parabéns Flamengo de 1987, você é o campeão.

  • Jogos eternos #69: Flamengo 3×0 Vélez Sarsfield 1995

    Jogos eternos #69: Flamengo 3×0 Vélez Sarsfield 1995

    Eu já escrevi sobre o Flamengo 3×3 Racing de 1992 e para hoje eu vou contra um outro adversário argentino que joga de branco e azul, Vélez Sarsfield. O ano é o centenário de 1995 e a competição a Supercopa Libertadores, que reunia só timaços. Vélez, como vencedor da Copa Libertadores 1994 contra o São Paulo de Telê Santana, participava pela primeira vez. Flamengo participava pela oitava vez, com melhor resultado uma final em 1993, perdida nos pênaltis, também contra o São Paulo de Telê.

    Na estreia do torneio de 1995, já oitavas de final, não contando o triangular da primeira fase entre São Paulo, Olimpia e Boca Juniors, Flamengo começou com uma vitória de virada nos últimos minutos no campo de Vélez, um 3×2 com gols de Edmundo, Sávio e Rodrigo Mendes. Um jogo já tenso, onde o técnico e jornalista Washington “Apolinho” Rodrigues saiu do campo dizendo: “Cuspiram na gente, ofenderam o Brasil, jogaram pedra. Mas ninguém ganha da gente no grito”. Três semanas depois, Apolinho Rodrigues escalou Flamengo assim: Paulo César; Agnaldo, Cláudio, Ronaldão, Lira; Márcio Costa, Djair, Nélio; Sávio, Edmundo, Romário. Flamengo talvez tinha no papel o melhor ataque do mundo, mas o resto do time estava bem longe disso. No lado de Vélez, destaque para o goleiro Chilavert, que eu adorava quando era criança por causa da Copa do Mundo de 1998, e para o técnico Carlos Bianchi, que ainda ia ganhar 3 Copas Libertadores com Boca Juniors.

    Jogo começou com tudo, já com falta dura sobre Romário e em seguida dois dribles de Sávio e um chute na direção do gol, até no gol, com a ajuda do defensor Pellegrino. Num passe sensacional de Edmundo, Romário quase fez o segundo mas seu chute flirtou com a trave. Realmente, poderia ter sido o melhor ataque do mundo, e um dos maiores times do Flamengo, mas faltou muita coisa. Eu não resisto aqui de citar algumas frases do Apolinho, que antes de ser o técnico de Romário, na sua posição de jornalista, criticava o Baixinho, dizendo por exemplo segundo o site Trivela “Romário é que nem dono de sauna, ganha dinheiro com o suor dos outros” ou ainda um sensacional “talvez ele decida suar a camisa tanto quanto sua camisinha”.

    No segundo tempo, depois de tabelinha com Sávio, Edmundo quase fez o segundo mas ele parou no grande goleiro que era Chilavert. Numa contra-ataque mortal, Edmundo passou entre três defensores e abriu na esquerda para Romário, que, sem vaidade, fixou o último defensor e achou de novo Edmundo, fazendo um gol em um toque só. Um golaço digno de um dos melhores ataques do mundo. Alguns minutos depois, de novo num passe de Romário, Edmundo teve boa oportunidade, mas chutou bem longe do gol. Perto do fim, Rodrigo Mendes, que tinha entrado no lugar de Sávio, fez um drible sensacional no Zandoná, perdido no chão, Rodrigo Mendes invadiu a grande área e deu o passe atrás para o gol fácil de Romário. Flamengo 3×0 Vélez, gols de Sávio, Edmundo, Romário. Pena que o melhor ataque do mundo saiu do papel para o campo pouquíssimas vezes.

    O jogo já poderia ser eterno aqui com a atuação do Flamengo, que não rendeu muito em 1995, mas estreou bem na Supercopa Libertadores, uma competição que de novo ia perder na final, perdendo a última oportunidade de ganhar um título no ano do centenário. Mas se esse jogo é eterno e todo mundo lembra das imagens, é por outro motivo. No tempo adicional, num choque com Zandoná, Edmundo teve o supercílio aberto. Passou a mão no sangue e deu tapa no Zandoná. Na hora, Zandoná retribuiu com tapa e Edmundo deu as costas, fim da briga para ele. Não para Zandoná. O argentino tinha razão de revidar a tapa no Edmundo, mas foi além, e quando Edmundo era de costas, atingiu ele com um socão que deixou o Animal no chão. Foi covardia. Romário foi o primeiro a reagir, dando uma voadora também eterna no Zandoná e a briga foi de um quase fim a uma briga generalizada. Teve de tudo em campo, jogadores, reservas, comissões técnicas, jornalistas, policiais.

    No reencontro entre Flamengo e Vélez na Libertadores de 2022, ainda se falava da briga, que já rendeu bandeiras das torcidas e boas histórias, como do próprio Zandoná, que explicou que ele teve um desconto num hotel de Florianópolis pelo dono que não gostava de Edmundo. Para o Flamengo, uma pena que a parceria entre Romário e Edmundo na briga não se estendeu muito em campo. Para fechar, deixo a voz para o folclórico técnico e jornalista Apolinho Rodrigues, falando para GloboEsporte: “Foi uma pega para capar que começou em Buenos Aires e terminou em Uberlândia. Zandoná deu um tapa e fez o Edmundo sangrar. Ele tirou o sangue com a mão e passou no rosto do argentino, mas deu as costas. Foi quando tomou uma pancada que ficou sem som e sem imagem. O Romário daquele tamaninho deu a voadora. Quando a polícia entrou, eu falei que na Argentina eles ficam do lado dele, aqui eles tinham que ficar do nosso lado. Foram dez minutos de pancadaria. Vencemos as duas e foi um duelo que me deu muita alegria”.

  • Jogos eternos #68: Flamengo 3×1 Vasco 2001

    Jogos eternos #68: Flamengo 3×1 Vasco 2001

    Há alguns dias, no 27 de maio, foi o 22o aniversario do Fla x Vasco de 2001, gol de Pet. Conheço algumas datas do Flamengo de coração e de cabeça. 3 de março, dia do nascimento de Zico, claro, e das maiores conquistas, o Mundial de 1981, no 13 de dezembro, as Libertadores de 1981 e 2019, ambos no 23 de novembro, a despedida de Zico, 2 de dezembro de 1989, dia do aniversario do meu pai, o primeiro Fla-Flu, 7 de julho de 1912, dia de meu aniversário. E ainda outras datas, como o 27 de maio de 2001, gol de Pet. Porque é um jogo eterno. Também um minuto eterno, 43 do segundo tempo, quando, para cada jogo do Flamengo, tudo pode acontecer. Tudo isso graças ao Petkovic.

    Começo essa crônica com a palavra de Rodrigo Mandarini, jornalista por Meia Hora, no livro 2001, isso aqui é Flamengo, de Claudio Portella e Roberto Assaf: “O dia 27 de maio de 2001 mudou a minha vida. E não há nessa afirmação qualquer exagero. Desde aquele minuto 43, quando o Pet comprovou a existência de Deus naquela falta, minha vida é outra. Se antes eu não acreditava em santos, Pet me fez virar devoto de São Judas Tadeu. Se eu antes não havia presenciado um milagre, naquela bola ele se fez diante de mim. Não sei como não morri naquela hora. Sei que cheguei com uma faixa do Vasco campeão que arranquei do desconhecido que estava na minha frente nas antigas cadeiras azuis, onde presenciei sozinho aquele momento. Não há dúvida de que aquele foi o momento mais feliz da minha vida. E olha que eu tenho dois filhos, Arthur (homenagem ao Zico) e Theo (que não consegui que fosse Dejan, mas significa Deus, então tá valendo de tamanho milagre), pelos quais sou enlouquecido. Mas nem quando eles nasceram fiquei tão alucinado. Se me perguntarem se quero ser dez vezes campeão do mundo contra o Barcelona, mas esquecer aquele 27 de maio, eu juro que não troco. Não troco nada por aquela alegria, que espero que nenhum Alzheimer me tire. Pode fazer eu esquecer até de mim, mas não daquela tarde. Naquele 27 de maio, então no primeiro período de Faculdade de Comunicação, escrevi um texto e mandei para o site do Flamengo. As minhas linhas emocionadas foram publicadas e muito elogiadas nos comentários. Decidi trabalhar no jornalismo esportivo com uma missão: entrevistar o Pet e falar daquele dia com ele. Consegui poucos anos depois. Já conversei com ele tantas vezes desde então que me honra muito que o meu ídolo seja uma pessoa que me conhece e me trate tão bem. Sempre me sinto um garoto diante da primeira namorada quando estou diante do Gringo. O coração acelera, a boca fica seca, os olhos brilham, o sorriso não sai da boca”.

    Todo mundo sabe o que aconteceu no minuto 43 do 27 de maio de 2001. Sobre o jogo, quase tudo já foi escrito. Momentos difíceis no Flamengo, apesar dos craques em campo. Momentos de muros pichados na Gávea, de salários atrasados, de brigas de ego entre jogadores. Flamengo perdeu o jogo de ida da final do campeonato carioca contra o arquirrival Vasco e Petkovic quase não jogou o jogo de volta, como explica Marcos Eduardo Neves no livro 20 jogos do Flamengo: “Na sexta-feira, insatisfeito com mais um vencimento não honrado na data correta, o sérvio brigou com dirigentes e abandonou a concentração antes do jantar. Só de madrugada voltou ao hotel, tendo sido levado praticamente à força por um amigo, que lhe explicara o significado daquele improvável Tri. O craque, que a princípio não queria jogar, mudou de ideia. Conscientizou-se de que poderia entrar para a história do principal clube do país”. Mais do que o amigo, foi intervenção de Deus. Esse jogo, esse gol, só podem ser coisas de Deus.

    Apesar da derrota no jogo de ida, Flamengo acreditava, porque tinha um técnico de muita fé, Zagallo, acostumado a vencer, inclusive o tricampeonato carioca 1953-1955 com o Manto Sagrado. Um técnico de experiência, de história, que sabia que o título era possível. Um técnico de superstição também, que fez do número 13 seu número de predileção, de sorte. E “Dejan Petkovic” tem 13 letras. Ao lado de Pet, no eterno 27 de maio de 2001, Zagallo escolheu várias pratas da casa, que podiam entender o poder de uma decisão contra Vasco, escalando Flamengo assim: Júlio César; Alessandro, Fernando, Juan, Cássio; Leandro Ávila, Rocha, Beto, Petkovic; Edílson, Reinaldo. Um time histórico para um jogo eterno. Do outro lado, o timaço do Vasco, de Pedrinho, Juninho Paulista, Euller e Viola, campeão brasileiro alguns meses antes. Mas Flamengo é Flamengo, sempre Flamengo.

    Com 20 minutos de jogo, Beto, camisa do Che Guevara por baixo do Manto Sagrado, driblou um, achou Cássio, que achou o pênalti. Sem briga entre Edílson e Petkovic, Edílson pegou a bola, pegou larga distância e chutou forte, chutou no gol. Com esse gol, Edílson chegava ao 15o gol no campeonato, acabando com o reino de Romário, lesionado para esse jogo, e que vinha de cinco artilharias consecutivas. Por causa do critério de desempate, Flamengo ainda estava atrás no placar agregado e numa falta de sorte, Viola recuperou a bola e deixou Juninho Paulista livre para empatar o jogo, para deixar Vasco ainda mais perto do título.

    Mas Flamengo é Flamengo, Zagallo é fé, e nos vestiários, o técnico veterano conseguiu incentivar o time, fazer todo mundo acreditar no título. E no início do segundo, um primeiro brilho de Pet, um drible com pedaladinha sobre Paulo Miranda, e um doce na cabeça de Edílson, para o 16o do campeonato, para o gol da fé. Agora, vamos já no final do jogo, no minuto 43. Uma falta de Fabiano Eller sobre Edílson, a 25 metros do gol vascaíno. Uma falta perfeita, para um craque, brasileiro ou não, um craque como Zico foi, como Petkovic era. Um segundo antes da falta, a cara de ansiedade de Alessandro no banco representa todos os flamenguistas nesse exato momento. No banco, Zagallo e a fé: “Santo Antônio estava no meu bolso, ele anda sempre comigo. Na hora da falta, quando vi que o Pet ia bater, segurei com força meu terço e apelei: ‘Me ajude por favor’. É preciso ter fé sempre”. Cito também o goleiro Júlio César, que falou: “Creio que 35 milhões de pessoas bateram aquela falta junto com o Pet”. E não foi falta de sorte, foi falta de Deus.

    Dejan Petkovic, com 35 milhões de flamenguistas e Deus ao seu lado, chutou, achou um ângulo perfeito, o ângulo de Helton, curto de alguns centímetros e eternizado ao mesmo tempo do que Pet. Petkovic saiu correndo igual louco, colapsou no chão para uma comemoração também eterna. É provavelmente o gol do Flamengo que mais assisti na minha vida, e também um dos gols mais icônicos da história do Flamengo, junto com o gol de Gabigol no Milagre de Lima. Nem o gol de Zico contra Cobreloa ou o gol de Nunes contra Liverpool têm essa coisa. O gol de Pet foi o gol do Tri, um gol contra Vasco numa final sim, mas ainda tem uma coisa a mais, talvez porque seja de falta, seja no final do jogo, seja do Pet, não sei porque exatamente, e talvez é isso, porque esse gol tem uma coisa inexplicável, indescritível, mas com uma certeza: “gol de Pet”, todo mundo sabe de qual jogo é.

    Quando falo com alguns flamenguistas apaixonados, gosto de perguntar qual foi a maior emoção deles no Maracanã. E já encontrei alguns dos 60.038 sortudos presentes no Maraca nesse dia, com para mim a mesma mistura de emoções, um sentimento de inveja e de alegria para o irmão flamenguista. Se podia escolher ir num jogo passado do Flamengo, ficaria na dúvida entre alguns jogos, talvez o gol de Rondinelli contra Vasco em 1978, talvez o Tri e o 3×0 contra Santos em 1983, mas mais provavelmente o Hexa contra Grêmio em 2009 ou o gol de Pet. Talvez com uma dúvida, escolher o gol de Pet seria arriscar demais uma parada cardíaca.

    No final, Flamengo tricampeão em cima do Vasco, Vasco tri-vice, Fla tetra-tri, um título do campeonato carioca mas que valia a Copa do Mundo, até para quem já conquistou o título supremo do futebol, e 4 vezes, como o técnico Zagallo, que falou depois do jogo: “Ficou claro que o preto e vermelho é quem manda no Maracanã. Era minha última oportunidade de conquistar um novo Tri. Este tricampeonato, na minha vida, valeu como se eu tivesse ganho outra Copa do Mundo”. Flamengo é eterno, como esse gol do Gringo, ídolo do Flamengo e que falou de um desejo que sem saber realizaria só dez anos depois: “Já disse que quero encerrar minha carreira no Flamengo, mas isso não depende só de mim. O que sei é que faço parte agora da história do Flamengo, e isso ninguém vai nunca poder apagar”. Ninguém vai apagar, ninguém pode apagar, e todo mundo vai relembrar o gol de Pet, para quem viveu, no Maracanã ou na televisão, ou quem não viveu, mas que sabe do patrimônio do Flamengo.

    Para fechar a crônica, um trecho do livro de João Luiz Silva, Flamengo, uma história divina, que evidentemente fala sobre o gol de Pet: “E chegou o tão esperado dia: 27/05/2001. A princípio, um dia como outro qualquer. Mas que, a despeito do que dizem e pensam os historiadores do Universo, tem antes e depois desse dia. A torcida vascaína, então campeã brasileira e da Mercosul, chegava extremamente confiante ao Maior do mundo. A torcida rubro-negra, apesar da necessidade da vitória, e que ainda não fosse pela diferença mínima, cresce nas adversidades e também chegava confiante. Pelo Vasco, Romário, contundido, não ia jogar. Um problema a menos para o rubro-negro. Mesmo assim, a maioria das opiniões de crítica e público era de que a vitória, ou pelo menos o título, seria cruz-maltina. Também nos céus a torcida se preparava para assistir ao jogo. Primeiro chegou Deus, em segundo, aliás, como sempre acontecia, chegou São Januário. Depois, chegaram os outros. A tensão era grande. E o Vasco, com todo o favoritismo, realmente começou melhor […] Até que acontece o lance que mudou a história do Universo. 43 minutos do segundo tempo. Falta para o Flamengo. A torcida cruz-maltina já comemora o título não acreditando que a falta, que realmente era um pouco longe, pudesse resultar em alguma coisa. No céu São Judas Tadeu vê o técnico Zagallo segurar a sua medalhinha e fazer uma prece. Sem pensar que o técnico não podia ouvi-lo São Judas comenta: – Desculpe Zagallo, mas ao contrário do que você imagina, eu não posso fazer nada. – Nem você, nem ninguém – sorri São Januário, feliz da vida. Será que ninguém mesmo ? Deus assiste ao jogo muito quieto, diferente da Sua maneira habitual. No entanto, tal atitude é confundida com calma ou até com apatia, mas ninguém desconfia do que está para acontecer. A torcida do Flamengo estica os braços e balança as mãos buscando transmitir energia positiva para Petkovic. O comentarista Washington Rodrigues, o Apolinho, informa que São Judas acaba de chegar ao Maracanã. No céu, São Judas, nervoso, ri de brincadeira. O Maracanã aguarda ansioso. O paraíso também. Pet corre para a bola, bate com muita categoria buscando tirar o goleiro Helton da jogada e fazer com que a bola entre no ângulo superior esquerdo da meta vascaína. Mas para infelicidade rubro-negra a bola segue o caminho da linha de fundo. Por pouco, muito pouco, mas mesmo assim para fora. E exatamente neste instante, tudo muda. Deus não vai perder a oportunidade de mais um tri. Sentado onde está, sem nenhum esforço aparente, Ele sopra de leve. Muito de leve. Mas o suficiente para a bola sofrer um desvio milimétrico e morrer no fundo da rede. Fla 3×1. Fla tricampeão. Vasco tri-vice. Êxtase no céu e na terra. A galera rubro-negra comemora enlouquecida no Maracanã, no Rio, no Brasil, no planeta. E além dele. Também no céu onde a maioria rubro-negra pula e grita animadamente até o apito final”.

  • Na geral #15: Uma rifa para uma boa ação

    Na geral #15: Uma rifa para uma boa ação

    Eu já falei que eu sou com muito orgulho um dos fundadores do consulado Fla Paris, que já tem mais de três anos de existência. A Fla Paris me deu irmãos flamenguistas e quando estava em Paris, adorava assistir aos jogos com a galera de sempre, e gostava também de encontrar turistas brasileiros, de passagem em Paris. E tem um outro aspecto do consulado que adoro, é a promoção de ações sociais.

    A participação social sempre foi importante para mim e era um objetivo quando cheguei no Brasil. Consegui na Rocinha, onde estou dando com muita alegria aulas de xadrez num projeto e treinos de futsal num outro projeto. O projeto Craques da Rocinha ajuda mais de 100 crianças e adolescentes, e vejo a necessidade de apoio financeiro. Com treinos todos os dias, as bolas se estragam rapidamente, se perdem nos becos quando a rede da quadra não salva a bola, e tem uma diferença enorme entre fazer um treino com uma bola para cada jogador ou uma bola para o time inteiro só. Sempre precisa de bolas, coletes, cones e outras coisas para fazer o melhor treino possível. E apesar das dificuldades, vale a pena insistir, porque só a educação permite um melhor futuro. Mas claro, para ter um ensinamento de qualidade, precisa de recursos financeiros.

    O consulado Fla Paris apoia a associação Amor ao Próximo, no Complexo de Sapê, em Niterói. Preciso antes falar um pouco da associação, fundada em 2003, mas que teve ainda mais importância e necessidade a partir da pandemia de Covid. A associação, que funcionava com próprios recursos, conseguiu uma parceria com a CUFA e uma fábrica de pão para a distribuição de cestas básicas com produtos alimentares e de higiene. Conseguiu toda a documentação para ser reconhecida oficialmente e ajuda agora cerca de 800 famílias.

    A associação tem também vários, muitos, projetos sociais, para ajudar as pessoas a se autodesenvolver. Tem formações profissionais para pessoas sem emprego para voltar ao mercado de trabalho, tem apoio psicológico e jurídico para famílias, doações para idosos muitas vezes esquecidos nos projetos sociais, uma creche que atende mais de 100 crianças, com reforço escolar e lanche, porque crianças precisam não estar com fome para estudar bem, tem pintura e colagem porque crianças precisam desenvolver autonomia, criatividade e motricidade, tem cine pipoca porque crianças precisam se divertir e ser felizes. Tem com os professores Ana, Léo e Vinícius aulas de dança, futebol (até jogando a Taça das favelas) e artes marciais. Porque crianças e adolescentes precisam fazer atividade física, fazer amizades, aprender uma arte e as regras da arte, aprender a ganhar e a perder, a dividir a responsabilidade numa mini sociedade.

    Sempre adorei o Brasil e sua cultura, mas ao mesmo tempo, sempre fiquei chocado com as diferenças entre a favela e o asfalto. Ninguém escolhe o lugar onde vai nascer, crescer, se tornar um ser humano. E com tanta desigualdade, com (não)chances tão diferentes, é difícil julgar as pessoas que vão fazer as escolhas erradas, pagando com a própria vida e dificultando ainda mais a vida dos outros. O momento da adolescência e da construção como adulto é difícil para todo mundo, não importa o lugar ou a época. Mas sem apoio, econômico ou emocional, sem modelos ou com modelos errados, é fácil pegar o caminho errado, mesmo sem ser uma pessoa de mau caráter. Muitas vidas foram perdidas não por falta de talento, mas por falta de oportunidades, falta de lugares para descobrir o talento deles.

    Infelizmente, por causa da distância, fui só uma vez no Complexo de Sapê. Foi um pouco antes do Natal, quando a Fla Paris tinha conseguido roupas e brinquedos para melhorar o Natal das crianças. Encontrei Renata e as crianças, foi um dos dias mais lindos que passei no Brasil. Renata é de uma energia incrível, e acreditam, eu falando disso só passando algumas horas por semana com as crianças da Rocinha, precisa de toda essa energia, todos os dias. Encontrei as crianças, relembro de um menino que pediu duas vezes uma foto comigo, ele sabia que já tinha uma, mas queria uma segunda. E relembro de uma menina que jogava muito futebol, fiz uma pelada com as crianças e ela era minha parceira favorita. Não relembro dos nomes, mas relembro dos rostos e dos sorrisos. Teve um outro menino e Renata falou que para Natal todas as crianças podiam pedir um presente e ele pediu uma bicicleta. Aí ela falou que ele estava exagerando, que ia ser difícil achar uma bicicleta. Mas no final da história, ela conseguiu a bicicleta para ele, porque Renata faz tudo o que é possível e faz até o impossível.

    Enfim, eu acho a educação primordial e sem boa educação, é a sociedade toda que paga o preço, um preço alto, principalmente as comunidades mais carentes. Hoje a educação ainda depende de iniciativas pessoais, de apoio de institutos e da participação dos cidadãos. Claro, todos esses projetos têm um custo, e precisa de dinheiro para os manter, para manter a ajuda para a comunidade. Têm várias maneiras de participar, entrar em contato com a associação Amor ao Próximo nas redes sociais, ou fazer diretamente um pix (Banco do Brasil agência 1578-4 conta-corrente 31127-8).

    Hoje, o consulado Fla Paris propôs mais uma maneira de ajudar com uma rifa para ganhar uma camisa do Flamengo assinada por diversos jogadores do clube. O presente é lindo, mas a ação ainda mais. Pode entrar com o consulado Fla Paris e seu presidente Cidel Cavalcante para mais detalhes, mas por apenas 2,5 euros na França ou 12,5 reais no Brasil (pix +330601097095), é possível adquirir um dos 200 números possíveis e tentar a sorte da ganhar a camisa e fazer a sorte de muitas muitas pessoas.

  • Jogos eternos #67: Flamengo 4×1 Fluminense 1976

    Jogos eternos #67: Flamengo 4×1 Fluminense 1976

    O Fla-Flu, o clássico mais charmoso do Rio, foi tudo no futebol. Já foi decisão do campeonato carioca, já foi mata-mata numa copa continental, já foi emoção no Brasileirão. Já foi recorde de público para um jogo entre clubes, já foi golaço de Leandro, já foi goleada na estreia do carioca com música de Zico, já foi goleada na despedida de Zico, já foi falta com a maestria do Vovô-Garoto Júnior, já foi virada com a maestria do Vovô-Garoto Júnior, já foi minha maior emoção num estádio, já foi tudo. E o maior clássico do mundo também tem o maior palco do mundo, o Maraca. O Fla-Flu é tudo, até amistoso vira clássico porque é, sempre foi, sempre será, o Fla-Flu.

    No início de 1976, Fluminense vinha de um título no campeonato carioca e de um semifinal do Brasileirão. Não era apenas Rivelino no time, era Félix, era Carlos Alberto Torres, era Edinho, era Gil, era Paulo César. Era um timaço, era uma Máquina. E o presidente Francisco Horta resolveu trocar jogadores com os rivais do Rio. No Flamengo, foram Zé Roberto, Toninho e Roberto, goleiro. Do outro lado, saíram da Gávea para Laranjeiras o também goleiro Renato, Rodrigues Neto e o ídolo Doval. Com as também chegadas de Dirceu do Botafogo e Miguel Ferreira do Vasco, Fluminense era ainda mais Máquina. Era craque a cada linha, até no banco de técnico tinha craque, Didi. Do outro lado, Flamengo tinha Zico.

    Zico festejou seu 23o aniversario quatro dias antes do Fla-Flu, e já era craque consagrado. Melhor jogador do Brasileirão 1974, artilheiro do carioca 1975, estreante da Seleção em 1976 com gol no Centenário, dois dias depois, um golaço de falta no Monumental. Zico era craque, era até par Nelson Rodrigues “o melhor jogador do mundo”. O grande dramaturgo Nelson Rodrigues era justamente o grande nome do pré-jogo, virou nome da Taça, para festejar o Dia do Cronista Esportiva. Era dia de festa no Rio, também dia de reestreia do Maracanã depois de dois meses de obras.

    Antes do Fla-Flu, um amistoso mas a Taça Nelson Rodrigues, Flamengo começou o ano 1976 com outros amistosos, às vezes contra times fracos, às vezes contra os melhores times brasileiros, mas uma coisa não mudava, Flamengo não perdia. Até contra o Internacional campeão brasileiro 1975, Flamengo conseguiu o empate no Beira-Rio, gol de Zico. Foram 10 vitórias e 4 empates do Flamengo de 1976 antes do Fla-Flu. Mas a Máquina era tricolor e o Flu era o favorito do Fla-Flu. Mas Fla tinha Zico, outra máquina.

    Outro detalhe, com a troca de jogadores, chegou no Flamengo o grande lateral-direito e saudoso Toninho Baiano. Assim, o jovem Júnior trocou a direita para a esquerda, melhorou o pé esquerdo, virou ídolo. No 7 de março de 1976, Carlos Froner escalou Flamengo assim: Cantarele; Toninho Baiano (Vanderlei Luxemburgo), Rondinelli, Jaime, Júnior; Merica, Geraldo, Zico; Paulinho (Caio), Luisinho Lemos (Tadeu), Luís Paulo. Fluminense, estava sem Rivelino, doente, mas com Carlos Alberto Torres, Edinho, Gil, Doval e Paulo César Caju. Era o favorito, mas toda máquina pode ser destruída.

    Mesmo apenas um amistoso, o Fla-Flu do 7 de março de 1976 convenceu 87.529 pagantes a ir no Maracanã. Porque era show de bola, era show de craques, com o maior deles, Zico. E foi Zico que brilhou em primeiro, aproveitando da falha do antigo goleiro flamenguista Renato para abrir o placar. Foi o único gol do primeiro tempo. Mas Zico tinha ainda mais coisas para o segundo tempo. O gol de empate do Fluminense, de pênalti de Carlos Alberto Torres, não mudou nada, esse jogo, essa Taça Nelson Rodrigues, eram para ser show de Zico.

    No meio do segundo tempo, começou o verdadeiro show de Zico, com um gol de falta, de qual a perfeição só pode ser comparada com a perfeição do próprio Zico. Uma falta de 25 metros, perfeitamente no meio, uma curva linda, uma bola perfeitamente na gaveta, uma explosão da geral, perfeitamente feliz. Jorge Ben, que já tinha imortalizado o gol de Fio Maravilha contra Benfica em 1972, imortalizava agora, dentro do Maraca, o sentimento de todo rubro-negro: “É falta na entrada da área, advinha quem vai bater, é o camisa 10 da Gávea”.

    Cinco minutos depois, num chute firme, mais um gol de Zico. O terceiro dele no jogo, mas não o último. Nos últimos minutos do jogo, mais um golaço, um toque de calcanhar perfeito do craque e também saudoso Geraldo para o quarto gol de Zico, que assim se juntava ao Pirillo pelo Fla e ao Simões pelo Flu com jogador a fazer 4 gols num Fla-Flu. E até hoje, Zico é o único jogador a fazer 4 gols num Fla-Flu no Maracanã. Também uma palavra para Geraldo, que faleceria no mesmo ano de 1976 com uma operação considerada sem perigo das amígdalas. O Flamengo de 1978-1983 só não foi perfeito porque tinha a falta de Geraldo, não tão craque que Zico claro, mas craque como poucos.

    Zico se tornava o grande nome do pós-jogo, o herói do Fla-Flu, o herói dos flamenguistas e o herói das capas de jornais, destaque para o Jornal dos Sports e seu “Que Zicovardia, pô!”. Mas gosto ainda mais da manchete da Manchete e de um simples “Zico 4 Flu 1”, porque existe uma foto de Zico lendo tranquilamente o artigo no café da manhã do dia seguinte. Mas como a atuação do Zico permitiu ao Flamengo de conquistar brilhantemente a Taça Nelson Rodrigues, fecho essa crônica com duas citações de Nelson Rodrigues, escritor de gênio e eternamente tricolor de coração, mas que nunca deu atenção aos idiotas da objetividade. A primeira, dois dias depois do Fla-Flu, sobre Zico: “Tenho dito e repetido que Zico é o maior jogador do mundo. Há os que negam, cegos pelo óbvio ululante. Mas, se a evidência quer dizer alguma coisa, não cabe dúvida, nem sofisma”. A segunda, sobre nosso eterno Flamengo: “Por onde vai, o Rubro-Negro arrasta multidões fanatizadas. Há quem morra com seu nome gravado no coração, a ponta de canivete. O Flamengo tornou-se uma força da natureza e, repito, o Flamengo venta, chove, troveja, relampeja. Cada brasileiro, vivo ou morto, já foi Flamengo por um instante, por um dia”.

  • Ídolos #17: Zizinho

    Ídolos #17: Zizinho

    Eu já falei que gosto de separar a história do Flamengo do pré-Zico e do post-Zico de tanto ele mudou o clube. E no período de 1912 até 1971, acho que teve três ídolos máximos: Leônidas, de quem já falei aqui, Zizinho, e Dida, de quem falaria um dia. Mas hoje a crônica é sobre Zizinho. Para o descrever, basta dizer que Zizinho foi o maior ídolo de Pelé e a maior inspiração de Didi, que explica na sua autobiografia: “Ziza era pura magia. Além do mais, tinha um dom especial. Colocava a bola aonde queria. Conheci goleiro que não dormia na véspera. Tinha pesadelos com o Zizinho”.

    Começo essa crônica com uma anedota sobre Zizinho, que pelo que eu sei, só aconteceu com ele e o próprio Pelé. Num jogo amistoso, Zizinho foi expulso pelo juiz. Mas o promotor do jogo não deixou e preferiu expulsar o próprio juiz para permitir a volta de Zizinho. Esse era o futebol de Zizinho, que nasceu em São Gonçalo no 14 de setembro de 1921 e cresceu em Niterói. Fez testes em vários clubes do Rio, não foi aprovado, até o teste na Gávea. E a tarefa não era fácil: substituir nada menos que o Leônidas. No jogo-treino, Zizinho perdeu sua primeira bola, fez dois golaços em seguida. Escrevem João Máximo e Marcos de Castro no livro Gigantes do futebol brasileiro: “Passou por um, dois, três, foi avançando até a área, driblou mais outro e chutou forte, no canto. Pouco depois, um lance parecido; nova sucessão de dribles e outro gol. Flávio e todo o pessoal do Flamengo, inclusive Leônidas, não sabiam o que dizer”. O início de uma história muito linda.

    Como um presente, para ele e ainda mais para os flamenguistas, Zizinho fez seu primeiro jogo com o Manto Sagrado no 24 de dezembro de 1939, uma derrota 3×4 contra Independiente, jogo marcado também pelo gol de bicicleta de Leônidas. Zizinho jogou tanto que, completamente exausto, teve que sair a 10 minutos do fim do jogo. Claro, não vi Zizinho jogar, mas gosto de imaginar ele jogando, reinando no meio de campo. Parecia capaz de fazer tudo: defender, driblar, fazer o passe, fazer o gol. Gosto dessa frase no livro Gigantes do futebol brasileiro: “Ser completo, e cada vez mais completo, foi o segredo de Zizinho”. Posso também citar outro craque do meio de campo, outro feiticeiro de Niterói, Gérson: “Uma vez perguntaram sobre o Ziza ao Pelé, e ele respondeu: ‘Esse era o mestre’. Melhor não vai ter. É difícil definir o mestre. É a inteligência, a capacidade, o PHD. O mestre não tem explicação”.

    No Flamengo, foram gols, assistências, carrinhos, corridas. Uma vez, quando pessoas criticavam Zizinho pelo seu estilo boêmio, Flávio Costa pegou a camisa de Zizinho, torceu-a, mostrou a suor e falou que Zizinho podia sair tanto que ele queria se ele continuava fazendo tantos esforços no campo. Zizinho deu vida para futebol, deu vida para o Flamengo. Em 328 jogos no Flamengo entre 1939 e 1950, fez 146 gols, um total que ainda lhe vale o décimo lugar na história do clube. Mas vale a pena repetir, Zizinho foi muito mais do que gols no Flamengo.

    Zizinho também foi história de pernas quebradas. Em 1942, num jogo tenso entre as seleções paulista e carioca, Zizinho quebrou a perna de Agostinho. O próprio Agostinho, o público e a imprensa paulistas nunca o perdoaram. Zizinho chegou a ser condenado a dois meses de prisão com sursis e sempre foi vaiado pelo público paulista, até com jogos da Seleção brasileira. Na estreia do campeonato carioca 1946, Zizinho quebrou a própria perna, num choque com Adauto, jogador do Bangu. Explica Zizinho: “Foi uma estupidez minha. O jogo estava ganho, mas eu queria mais. Fui com toda a velocidade numa jogada na linha de fundo. Quando tentei cruzar, por causa do gramado irregular, acabei furando e acertando a trava da chuteira do Adauto. Ele era meu amigo e tenho certeza que não teve a menor intenção de me machucar. O pessoal do Flamengo criou um clima para que eu o processasse, mas não tinha nada a ver. Tanto que pedi que levassem o Adauto ao hospital para me visitar. Ele foi e parecia meio envergonhado. Fui logo dizendo: ‘Negão, o que aconteceu, aconteceu. Tem gente que quebra a perna andando na rua, sendo atropelado ou descendo uma escada. Eu quebrei no meu trabalho. Nós vamos continuar amigos. Esqueça isso, desça o cacete no próximo jogo, pois o que ocorreu foi um acidente’”.

    Zizinho recusou-se a ir na Justiça, dizendo: “Achar que Adauto tenha me atingido de propósito é admitir má intenção minha no lance com Agostinho”. Um autêntico craque, em todos os sentidos da palavra, ao contrario de Agostinho, que mandou um telegrama para Zizinho, alegrando-se da lesão. “Doeu mais quando rachei a perna do Agostinho do que quando partiram a minha. Fiquei tão chateado que passei uns 15 dias recluso em Friburgo”, ainda fala o craque e mestre Ziza. Zizinho sofreu, trabalhou e voltou, um ano depois, na estreia do campeonato carioca 1947. E já no primeiro jogo, Zizinho quebrou de novo a perna. Ainda Zizinho: “Com o perônio partido, joguei ainda duas partidas. Só que depois da segunda, contra o Olaria, na Gávea, comecei a sentir dores terríveis. Quando saltei da barca em Niterói, não podia mais andar. Fui carregado por torcedores até em casa. Ainda por cima, chovia muito esse dia. Fiquei gelado de tanta dor. No dia seguinte, minha mãe, que era enfermeira, me levou no hospital e ficou constatado que estava mesmo com a perna fraturada. Foram mais não sei quantos meses em convalescênça”. Um guerreiro. Voltou de novo e foi eleito “jogador mais eficiente” do campeonato pelo Jornal dos Sports. Um craque.

    Claro, Zizinho também foi um craque da Seleção, o líder na técnica e na raça. Estreou no campeonato sul-americano 1942 contra a Argentina e fez seu primeiro gol contra o Equador, no mesmo torneio. Em 1945, fez parte de um dos maiores times da Seleção, no campeonato sul-americano no Chile. Escreveu o jornalista Luiz Mendes no livro Os dez mais do Flamengo de Roberto Sander: “Zizinho estava em plena forma. Seu futebol era algo de extraordinário. Vê-lo jogar trazia a todos um prazer indescritível. Fazia coisas com a bola que contando ninguém acredita. Pena que não existia televisão para registrar tudo”. Infelizmente, não foi campeão, mas conquistou a Copa Roca no final do ano contra a Argentina, fazendo gol num eterno 6×2 no São Januário, ao lado de Leônidas, Ademir, Chico e Heleno, todos craques, todos fazendo gol. No início do ano de 1946, outro campeonato sul-americano, na Argentina. Zizinho fez 4 gols contra o Chile, um recorde da seleção brasileira na época, mas no jogo decisivo, a Seleção apanhou da Argentina toda, dos jogadores, do público e até da polícia, que ainda ameaçou o time se não voltava em campo. O técnico Flávio Costa pediu ao time deixar a Argentina ganhar e Zizinho pediu a substituição: “Já havia apanhado muito. Não concordava com aquilo. O Flávio Costa acabou aceitando”. Com a Seleção, o maior título de Zizinho veio no campeonato sul-americano 1949 e a maior decepção no Maracanaço de 1950. Como Leônidas, como Zico, Zizinho merecia ser campeão do mundo, mas o título não veio. Coisa de futebol.

    Como falou o próprio Zizinho, a “maior mágoa de sua carreira” foi em 1950. Mas não foi a perda da Copa, foi a perda de sua maior alegria e maior orgulho, vestir o Manto Sagrado. Em 1950, um pouco antes da Copa do Mundo, Zizinho foi vendido pelo Flamengo no Bangu. Uma história de politica e uma covardia do presidente do Flamengo, Dario Melo de Pinto. Relembra Zizinho: “No início, eu nem acreditei. Foi quando o doutor Silverinha (Guilherme da Silveira Filho era patrono e presidente do Bangu) pegou o telefone e ligou para o Dário Melo de Pinto, presidente do Flamengo. Fiquei pasmo com a confirmação da história. Pedi então que ele colocasse o contrato na mesa que eu assinaria. Estava magoado pela forma com que me dispensaram. Cheguei a jogar um campeonato inteiro pelo Flamengo com o tornozelo enfaixado. Eu tirava a bota de esparadrapo depois das partidas e meu tornozelo ficava enorme, completamente inchado. Passava a semana inteira sem treinar e no domingo jogava de novo. Até com a perna fraturada cheguei a jogar. Eu me sacrifiquei demais pelo Flamengo. Merecia mais consideração”. No Flamengo, foram muitos gols, um tricampeonato carioca 1942-1944, muitas camisas cheias de suor, muitos torcedores fanáticos e conquistados com o futebol de Zizinho, mas no final, foi uma mágoa.

    Foi um grande erro vender Zizinho, que ainda mostrou que ele era craque. No dia seguinte de sua transferência, fez um golaço de voleio para ajudar a seleção carioca a conquistar o Campeonato Brasileiro de Seleções. Mostrou que era craque no Bangu, no São Paulo FC onde conquistou o campeonato paulista 1957, e até na Seleção, quando fez dois gols contra o Paraguai para conquistar a Taça Oswaldo Cruz 1955. Nessa partida, Zizinho jogou ao lado de outro craque, Didi, também maravilhado com o futebol de Zizinho. Relembra Didi na sua biografia, escrita pelo Péris Ribeiro: “Quando vim para o Rio, o Zizinho era o jogador mais famoso do Brasil. Havia se consagrado como o maestro do primeiro tricampeonato do Flamengo, e tudo o que fazia, dentro e fora de campo, logo virava notícia. Era Mestre Ziza pra lá, Mestre Ziza pra cá… Mas o Ziza merecia toda aquela fama. Era seu fã. E fiquei mais fã ainda, depois de vê-lo jogar seguidamente. Com o tempo, criaram uma rivalidade entre nós. Afinal, brigávamos pela mesma posição na Seleção Brasileira. Mas o Flávio Costa, malandramente, ajeitou as coisas. Tanto que, em 1955, o Brasil foi campeão de uma Taça Oswaldo Cruz, comigo e o Ziza jogando juntos. Demos um baile no Paraguai, em pleno Maracanã. Como não podia deixar de ser, nos tornamos grandes amigos. E fico orgulhoso do Zizinho ser o maior ídolo, o grande espelho do Pelé. Quanto aos nossos estilos, costumo dizer que o Ziza levava o recado a domicílio, isto é: gostava de estragar a bola na boa, no pé do atacante. Já eu preferia mandar pelo correio, fazia o lançamento longo, de 40 metros. Além do mais, sempre gostei de pensar mais o jogo, enquanto ele gostava de correr o campo todo, como um guerreiro. Mesmo sendo um gênio da bola. E que gênio!”.

    Claro, não vi jogar Zizinho, o ídolo de Pelé. Então, para fechar essa crônica, deixo a palavra para quem viu jogar, jornalistas do Brasil e de fora, como o italiano Giordano Fatori, que escreveu durante a Copa de 1950 para a Gazzeta dello Sport: “O futebol de Zizinho me faz lembrar Da Vinci pintando alguma obra rara”. Mas quem fala melhor do Zizinho ainda é o craque da literatura brasileira, Armando Nogueira: “Tinha o futebol na medula e no cérebro, no coração e nos músculos. Era, ao mesmo tempo, o pianista e o carregador do piano. Sempre suou a camisa, na derrota ou na vitória – era um operário; mas quanta beleza na transpiração de sua obra”.

O autor

Marcelin Chamoin, francês de nascimento, carioca de setembro de 2022 até julho de 2023. Brasileiro no coração, flamenguista na alma.

“Uma vez Flamengo, Flamengo além da morte”